LUTA PELA TERRA: Seja no campo, na cidade ou no Congresso Nacional, o latifúndio brasileiro ataca o direito à terra de ocupação tradicional em ações orquestradas que vão de propostas de alteração na Constituição às campanhas contra demarcação de terras indígenas
Por Renato Santana, de Brasília (DF), no CIMI
A ofensiva do setor ruralista contra os povos indígenas está a todo vapor em um ano que antecede outro, o eleitoral, período dos mais emblemáticos para o país. Depois de o governo federal estancar a reforma agrária e dos parlamentares alterarem o Código Florestal, uma série de campanhas, protestos, audiências públicas, ações institucionais e busca por cadeiras e mesas em comissões no Congresso Nacional nutrem um único objetivo: desconstruir os direitos indígenas pela terra e paralisar a já quase inexistente demarcação de territórios de ocupação tradicional. A situação chegou a tamanho nível de tensão que a senadora ruralista Kátia Abreu (PSD/TO) perdeu o controle durante sessão da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (ver texto abaixo).
Durante o governo Dilma Rousseff, apenas dez terras indígenas foram demarcadas no Brasil, sendo todas na região Norte – sete no Amazonas, duas no Pará e uma no Acre, ou seja, áreas que hoje não envolvem os conflitos mais encarniçados entre latifundiários invasores e comunidades indígenas. Os dados são do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com base nas publicações do Ministério da Justiça no Diário Oficial da União. Uma vez que 335 terras estão em alguma das fases do procedimento de demarcação, em dezenas com demora de dez, 20 anos para a conclusão, caso da Terra Indígena Morro dos Cavalos (SC), e outras 348 reivindicadas, a quantidade recente de demarcações é abaixo do esperado pelos povos indígenas e Ministério Público Federal (MPF).
No entanto, e apesar de ter no governo federal um aliado estrutural, os ruralistas não descansam. Na região da divisa entre os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul, nos últimos meses, os latifundiários foram às ruas protestar contra as demarcações de terras indígenas distribuindo adesivos com os dizeres: “Ou o país acaba com as demarcações ou as demarcações vão acabar com o país”. Em Coronel Sapucaia (MS), fazendeiros se mobilizaram nos últimos dias 5 e 6 para definir estratégias de como fazer para a Funai não cumprir Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado junto ao Ministério Público Federal (MPF), que determina a demarcação de terras indígenas no sul do estado.
“Estamos extremamente preocupados. Quanto mais o governo sede, se omitindo na efetivação dos direitos indígenas sobre suas terras, mais os ruralistas atacam esses direitos. As movimentações intensas, sistemáticas e sem qualquer tipo de limite ético demonstram que o ruralismo faz uso de terrorismo político no ataque aos povos indígenas no Brasil. As consequências desse processo são imprevisíveis”, analisou o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto.
“A classe produtora é a favor do indígena e sabemos que eles precisam de amparo social e não de terras”, afirmou o diretor da Federação da Agricultura e Pecuária (Famasul) do MS, Ruy Fachini. Em novembro do ano passado, o MPF encerrou inquérito sobre o assassinato do cacique Nísio Gomes Guarani Kaiowá, ocorrido um ano antes. Mais de 20 pessoas foram presas, sendo seis fazendeiros, entre eles o presidente do Sindicato Rural de Aral Moreira, Osvin Mittanck. Já no assassinato do jovem de 15 anos Denílson Guarani Kaiowá, um fazendeiro assumiu a morte do indígena, apesar de testemunhas afirmarem que o jovem teria sido executado pelo filho do proprietário rural e, ao assumir o homicídio, o pai teria como intenção abrandar possíveis penas judiciais.
No parlamento, comissões viram trincheiras ruralistas
Tal cenário não está demonstrado em outro flanco de ataque à questão indígena no país. Parlamentares ruralistas pedem a criação de uma Comissão Paramentar de Inquérito (CPI), na Câmara dos Deputados, para investigar a Funai e sua função estatal: o procedimento de demarcação de terras indígenas. Informações de sites de organizações ruralistas dão conta de que o número de assinaturas para a abertura da CPI já foi atingido. Por enquanto, o que se tem de notícias é a convocação da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, à Comissão de Agricultura da Câmara Federal para explicar a demarcação de terras indígenas.
“A demanda comum do setor rural brasileiro é a de necessidade de maior transparência nos processos de demarcações de terras indígenas realizados pela Funai. A entidade tem atualmente elaborado processos aos quais os produtores rurais e os municípios não têm acesso”, diz o texto da convocação assinado pelo deputado ruralista Luiz Carlos Heinze (PP/RS). Ou seja, a estratégia adotada pelos ruralistas é de atacar por todos os lados, com proposições desmedidas, inconstitucionais e quase diárias. Uma delas é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 237/13, do deputado Nelson Padovani (PSC/PR), que visa o arrendamento de terras indígenas, onde 50% de área de cada uma delas poderiam ser usadas por fazendeiros para abertura de pasto e monocultivos de soja, cana.
Pelas comissões, ruralistas e aliados, caso da bancada evangélica, movimentam-se contra os direitos dos povos indígenas. As eleições do pastor Marco Feliciano (PSC/SP) para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e do latifundiário Blairo Maggi (PR/MT) para a Comissão de Meio Ambiente do Senado atende a estratégia de desidratação das pautas indígenas– ambos chegaram a tais cadeiras por intermédio de negociações do próprio governo federal, posto que ambos fazem parte da base. Maggi, antes de assumir a presidência da comissão este ano, afirmou que os ambientalistas querem que a sociedade viva em árvores, comendo coquinho, como Adão e Eva.
A ironia do senador, considerado o “Rei da Soja”, porém, se traduz em tragédia no estado do parlamentar, o Mato Grosso, onde fazendas de soja desertificaram centenas de milhares de hectares. “Existem muitos minérios e madeiras preciosas nessas localidades, que estão inseridas na Amazônia Legal”, declarou o deputado estadual Dilmar Dal’Bosco durante audiência pública em defesa da PEC 215.
Aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, sob intensos protestos de comunidades indígenas, a PEC teve comissão formada por decisão do deputado federal Henrique Alves (PMDB/RN), presidente da casa e eleito com o compromisso de encaminhar a PEC 215 para votação. A proposta da bancada ruralista visa transferir do Executivo para o Legislativo o processo de demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e a criação de Áreas de Proteção Ambiental. Com a maior bancada no Congresso Nacional, controlando ¼ da Câmara, ruralistas passariam a ter influência direta nas decisões de demarcações, atendendo aos próprios interesses.
“O que está em curso é exatamente a continuidade daquilo que foi iniciado há 512 anos. Sugar o máximo possível de riquezas para o capital. Para isso, precisam dos territórios indígenas. Precisam expulsar os povos e para isso usam de várias manobras e falcatruas”, salienta o assessor político da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), Paulino Montejo.
Segundo a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), 120 deputados federais e 13 senadores integram a bancada ruralista, perfazendo 23,4% da Câmara e 16% do Senado. Os dados são próximos dos de levantamento feito em 2011 pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), que apontou a existência de 120 deputados e 18 senadores ruralistas. Na última legislatura (2007-2010), de acordo com o DIAP, 117 deputados federais pertenciam ao grupo. Tal fortalecimento se deu na reabertura política, a partir de 1985, quando latifundiários passaram a priorizar a ação no parlamento em vista da garantia da propriedade privada na Constituição, que seria provada em 1988.
Na Comissão de Direitos Humanos, por exemplo, dominada por ruralistas e evangélicos conservadores, requerimento foi apresentado solicitando a visita de integrantes da comissão ao estado do Pará, na Terra Indígena Apyterewa, para “conhecer a realidade dos assentados” da terra, ou seja, ocupantes não indígenas que por lei devem ser, caso pequenos produtores, indenizados e realocados pelo INCRA em outra terra. O pedido é do deputado Zequinha Marinho (PSC/PA). Os ataques estão pulverizados em todos os espaços institucionais possíveis, perfazendo os três poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Em discussão com o senador Roberto Requião (PMDB/PR), Kátia Abreu (PSD/TO) afirmou: “Direito de propriedade é direito humano, de uma minoria”. Na ocasião, a senadora propôs que os governos estaduais tivessem 15 dias, sob penas de crimes de responsabilidades, para cumprirem ordem judicial de reintegração de posse, comuns em situações de retomadas indígenas, por exemplo. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, acompanha toda a conjuntura com uma ideia na cabeça: tirar da Funai a demarcação de terras indígenas e passar para um órgão a ser criado no âmbito do Ministério da Justiça.
PL 3571: ruralistas definem CNPI
Talvez o mais escandaloso dos episódios recentes está relacionado com o Projeto de Lei 3571/2008, que cria o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), hoje apenas uma comissão. No último dia 12 de março, os membros da Comissão de Finanças e Tributação (CFT) designaram o deputado federal Jerônimo Goergen (PP-RS) como relator da matéria. Integrante da bancada ruralista, o deputado, no dia 21 de março, apresentou requerimento de redistribuição do PL 3571 para a Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia para apreciação. O detalhe é que Goergen preside a comissão.
“Perdemos as margens de diálogo com os últimos episódios no congresso e no governo. O PL da CNPI (que criará o conselho no âmbito do que é hoje a Comissão Nacional de Política Indigenista) está prestes a sofrer um golpe, para não falar da PEC215. A conjuntura é delicada”, declara o integrante da CNPI, cacique Marcos Xukuru (PE). Conforme Sônia Guajajara, integrante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, não resta alternativa aos povos indígenas a não ser ir para as ruas e mobilizações. “A Constituição de 1988 está na mira. Precisamos lutar para que ela não seja destruída, mas colocada em prática”, afirma a liderança indígena do Maranhão.
Kátia Abreu se descontrola e acusa MPF, Funai e Cimi de agirem em conluio para ampliar terras indígenas
A senadora Kátia Abreu (PSD/TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Agropecuária (CNA), perdeu o controle no último dia 11 de abril, durante sessão da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária. Acusou o MPF e a Funai de agirem em conluio, sob as vontades do Cimi, para “ampliar” terras indígenas. Declarou que não entrará em negociação com o que chamou de “invasores” de terras e que os latifundiários não podem arcar com problemas sociais que não lhes dizem respeito.
O despautério da senadora atingiu também o Ministério da Justiça. “A Justiça lá (no Ministério) só funciona para os índios, só funciona para o Cimi. Virou uma representação de classe. Não existe Justiça para os fazendeiros. Tinha que ter um ministério para os produtores”, disse a senadora, que desconsiderou o fato de que durante a gestão Dilma Rousseff a demarcação de terras indígenas foi preterida das ações do Executivo, conforme demonstram os números de procedimentos concluídos.
Kátia Abreu demonstrou desconhecimento ao afirmar que a Constituição Federal assegura o direito à terra apenas aos povos indígenas que nelas estavam em 1988. Além de não ser isso que diz o texto constitucional, é majoritária a opinião entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o marco de temporalidade não deve ser levado em consideração, como ficou nítido nos votos dos ministros que votaram pela nulidade dos títulos dos invasores da Terra Indígena Caramuru Catarina-Paraguaçu (BA).
Sem nenhuma comprovação, apenas com especulações de jornalistas ligados a revistas semanais, Kátia Abreu afirmou que está em curso a demarcação de uma “reserva indígena” do tamanho do estado de São Paulo, que se estenderia entre Goiás, Tocantins e Mato Grosso. “Não consigo compreender esse topete da Funai em desobedecer ordens e em não cumprir determinações estratégicas do país. Terra indígena é uma expropriação”, afirmou.
A senadora frisou, em tom de justificativa, que a violência no campo é motivada pelo fato do direito à propriedade privada ser violado com “invasões” de terras. “Se o governo pagar pelas terras pode vender o Brasil inteiro e dar para quem quiser que não vou falar nada”, desdenhou. Com o cinismo que lhe é peculiar, defendeu a suspensão de todas as demarcações de terras indígenas até a votação, pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), dos embargos declaratórios da homologação de Raposa Serra do Sol (RR). A medida seria uma forma de garantir segurança jurídica aos fazendeiros. Numa tentativa de se mostrar compreensiva, a senadora ruralista, proprietária de latifúndios país afora, disse que “todos têm direito à terra, mas o sonho dos índios não pode custar o meu sonho; o sonho dos sem-terra não pode custar o dos produtores rurais”.