VIOMUNDO – Com efeito, além dos massacres e das epidemias, além dessa singular selvageria que o Ocidente traz consigo, há, ao que parece, imanente à nossa civilização, e constituindo a “escura metade das sombras” onde se alimenta sua luz, a muito notável intolerância da civilização ocidental diante de civilizações diferentes, sua incapacidade de reconhecer e aceitar o Outro como tal, sua recusa em deixar subsistir aquilo que não lhe é idêntico
(Pierre Clastres, “Entre silêncio e diálogo”)
do Coletivo CAUIM*, via e-mail
Nós, membros do Coletivo CAUIM, expressamos publicamente nosso repúdio às ações do Governo do Estado do Rio de Janeiro de expulsar a Aldeia Maracanã do terreno do antigo Museu do Índio, nos arredores do estádio Mário Filho (Maracanã), bem como os projetos de transformar o rico patrimônio público, histórico e cultural que lá se encontra em estacionamentos ou museu do Comitê Olímpico Brasileiro.
Os objetivos do governador Sérgio Cabral atacam frontalmente os direitos dos povos indígenas e a história do Rio de Janeiro e do Brasil, violentando o direito à memória, com o não-tombamento de uma edificação centenária central para a política indigenista nacional, e destruindo seu uso social a fim de entregar o terreno à iniciativa privada.
Assim, o governo acaba com um lugar que servia de abrigo e moradia para os índios residentes ou em trânsito pela cidade, que originalmente fora uma aldeia e que, destinado pelo Estado há mais de um século para atender os ocupantes originais do Brasil, desde 2006 se estabeleceu como ponto de encontro e intercâmbio cultural de indígenas, entre si e com os “brancos”.
Ainda mais grave do que a destruição da Aldeia Maracanã e do patrimônio público, foi a operação de guerra montada pelo governo, através de suas forças policiais, para executar a ação. No dia 22 de março, a sociedade brasileira e a comunidade internacional assistiu, estarrecida, ao ataque de centenas de policiais militares e membros do Batalhão de Choque com vistas à desocupação do antigo Museu do Índio. Munidos de vários blindados, camburões, helicópteros, armas químicas e sônicas, centenas de soldados sitiaram, durante a madrugada, o território habitado pelos indígenas, invadindo-o pela a manhã e iniciando uma violenta batalha campal.
Ninguém foi poupado da barbárie policial: além dos ataques aos ocupantes da Aldeia Maracanã, dentre os quais gestantes, bebês e crianças, todos os presentes durante a invasão do Choque foram atingidos pelas várias bombas de gás lacrimogênio e outras armas químicas; pela primeira vez no Brasil, uma arma sônica foi utilizada. Além dos apoiadores da causa indígena, também foram agredidos os deputados, vereadores, defensores públicos e membros da imprensa pelo armamento que é condenado pela Convenção de Armas Químicas da ONU, de 1997.
No dia seguinte, 23 de março, quando os habitantes da Aldeia Maracanã se dirigiram ao Museu do Índio, em Botafogo, para solicitar um encontro com as autoridades indigenistas da FUNAI, foram outra vez cercados pela polícia, desta vez com o apoio do BOPE. A ocupação, pacífica, novamente foi criminalizada. Assim como ocorrera na véspera, o advogado dos habitantes da Aldeia Maracanã foi impedido pelos policias de chegar até seus representados.
Os eventos narrados acima fornecem um emblema do que vivenciam as populações indígenas no Brasil atual, marcado pelo silêncio das autoridades federais que deveriam resguardar os seus direitos: nem a FUNAI, nem a Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal se pronunciaram sobre o assunto; tampouco o fez o Ministro da Justiça ou a Presidenta da República, Dilma Rousseff.
Em fina sintonia com a violência do Governo do Estado do Rio de Janeiro, o Governo Federal continua tratando os povos indígenas como entraves para as grandes obras que tanto deseja realizar, e, quando não ocupando posição de algoz, prefere manter o silêncio, fazendo-se deliberadamente omisso em relação às atrocidades que acometem as populações originárias no Brasil.
Persiste o genocídio dos Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, sem a devida intervenção do Governo Federal; a ameaça a dezenas de Terras Indígenas com a seca de seus rios, crescente criminalidade em seus entornos e fim dos animais de caça devido à implementação de complexos de mega-hidrelétricas, sem o atendimento de suas mais básicas condicionantes ambientais; e, no momento mesmo de escrita deste texto, articula-se uma ação militar de repressão à resistência Munduruku, habitantes do rio Teles Pires, com vistas à instalação forçada de um conjunto de hidrelétricas na região.
Estas são apenas algumas faces de um mesmo projeto adotado pelo Governo Federal e seus aliados regionais, recuperando o modelo desenvolvimentista da ditadura militar, em que os empreendimentos faraônicos e a grilagem latifundiária gozam não só de respaldo político, como também do uso da força estatal para consolidá-los.
A situação é bem ilustrada pela alteração do artigo 4 do Decreto 5.289 de 2004, que desfigura a Força Nacional de Segurança Pública, tornando-a menos um instrumento de segurança fundado no pacto federativo (entre Municípios, Estados e União, como versa nossa Constituição) do que em uma polícia estabelecida para atender as solicitações diretas do Governo Federal.
Os maiores veículos de comunicação do país também não mostram sensibilidade ou um preparo mínimo para tratar dos assuntos indígenas, como ficou evidenciado pela cobertura jornalística do ataque à Aldeia Maracanã.
O preconceito disseminado em afirmações como “os índios verdadeiros estão na floresta”, “aquilo supostamente é uma aldeia” e “eles deveriam voltar para o lugar deles”, repetidas incontáveis vezes durante as transmissões, estão em sintonia com os policiais que gritavam, durante a repressão, “voltem para o mato, voltem para Roraima, Amapá”.
Ignorantes da complexidade das relações que os indígenas brasileiros estabelecem com as cidades, inclusive de moradia, e reificando uma imagem primitivista dos índios, os “formadores de opinião” (sic) cumprem indiretamente o papel de legitimar a violência contra as minorias étnicas, ao reforçar o preconceito que pesa sobre elas e criminalizar suas demandas.
Entre o pólo da cidade e o pólo da floresta, há uma miríade de possibilidades de vida. E é aí que as vidas indígenas transcorrem, conforme seus modos próprios de pensamento e ação num mundo em constante movimento e transformação. O trânsito entre diferentes espaços desdobra-se numa diversidade de experiências históricas de relação com a alteridade, em que o mundo dos “brancos” (e seu espaço por excelência, a cidade) ocupa posição de destaque.
Ao contrário do que muitos esperam, as culturas indígenas não são artigos empoeirados de museus, ou sobrevivências de um modo de vida arcaico em vias de extinção.
A multiplicidade dos modos de ser indígena no século XXI não se enquadram na imagem preconceituosa que muitos não-índios insistem em cultivar do “homem primitivo” puro e inocente na selva ou do ser em decadência na cidade.
Longe de serem eliminadas pela vivência em centros urbanos e suas margens, as vitalidades indígenas florescem no seio da diferença, reafirmando-se enquanto índios, isto é, enquanto um modo de existir e pensar diferente do nosso. Não à toa, após mais de 500 anos de massacres, perseguição e preconceito, os índios resistem, recusando se render tanto ao genocídio (“ainda vivemos!”) como ao etnocídio (“continuamos sendo índios!”).
Contrariando as previsões de extermínio e aculturação dos colonizadores, desde o Cabral de 1500 até o Cabral de 2013, os índios continuam sendo índios, e o Brasil não é uma nação homogênea: dentro das fronteiras de seu território existem mais de 200 povos diferentes, falando mais de 150 línguas distintas. De modo que a presença de uma aldeia no centro do Rio de Janeiro, ao lado de um empreendimento bilionário e de destaque internacional (o novo Maracanã), resiste como emblema da heterogeneidade sóciocultural existente no país: justamente por isto, indesejado pelo governo, e um entrave para sua política higienista.
Exemplo maior da afirmação sociopolítica da diferença, a Aldeia Maracanã, com sua proposta de ser um espaço de troca de experiência artística e intelectual entre indígenas e não indígenas de todo país (e do mundo), nos faz um generoso apelo no sentido de multiplicar nosso mundo a partir da imagem e da experimentação de outras formas de existir. Em um momento de acelerada destruição do meio-ambiente e do crescimento da monocultura latifundiária, de desrespeito aos direitos constitucionais que resguardam os habitantes das áreas atingidas pelos mega-empreendimentos, além da sofisticação e brutalidade do aparato repressor do Estado contra a população civil, é preciso sempre lembrar das consequências de sermos todos Guarani Kaiowá.
*O coletivo é composto por estudantes de pós-graduação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRJ/ Museu Nacional.
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Compartilhada por Bia N Ca.