Preocupação com direitos básicos de comunidades que mantêm estreita relação com territórios em que vivem foi tema do Fórum Social Mundial, na Tunísia
Maurício Hashizume – Repórter Brasil
Túnis (Tunísia) – O fenômeno do “apoderamento de terra e água” por parte de agentes econômicos internacionais se destacou como um dos temas “fortes” do Fórum Social Mundial (FSM) 2013, realizado na semana passada no Norte da África. Diversos debates e oficinas trataram da questão do land/water grabbing (na denominação em Inglês), que ameaça os direitos básicos de comunidades, povos e nações que mantêm estreita ligação com os respectivos territórios em que vivem, não apenas no continente africano, mas em diversas regiões do globo, inclusive no Brasil.
Movimentos sociais, entidades da sociedade civil e organizações não-governamentais (ONGs) presentes no FSM reforçaram a gravidade do problema que, especialmente com o cenário de crise (não apenas econômico-financeira, mas também ambiental, energética e alimentar), tem se intensificado substantivamente nos últimos anos. Segundo estimativas da organização Oxfam, que lançou um relatório em 2011 e mantém uma campanha dedicada a tratar publicamente do tema, grandes negócios de comércio de terras realizados desde 2000 envolveram 227 milhões de hectares, mais que o dobro de toda a área do Egito.
A preocupação com o problema que atinge escala global fez com que a Via Campesina – articulação de 150 organizações locais e nacionais provenientes de 70 países da África, Ásia, Europa e Américas que, juntas, representam mais de 200 milhões de camponesas e camponeses – escolhesse o “apoderamento de terra e água” como uma de suas prioridades na esteira da realização do Fórum. A questão, que já havia motivado um chamamento no FSM 2011 realizado em Dacar (Senegal), traz consigo a discussão de fundo sobre o poderio da indústria extrativista dentro do modelo agro-exportador e desenvolvimentista.
“Temos cobrado autoridades e empresas acerca das violações decorrentes deste fenômeno de mercantilização das terras, como se fossem mais um produto qualquer. Quanto pode valer, afinal, um território que vem, há séculos, significando a vida de comunidades?”, salienta a indiana Nandini Jairam, da organização Karnataka Rajya Raitha Sangha, que integra a Via Campesina, que defende a proibição desse tipo de operações em larga escala.
A Índia, assim como o Brasil, experimenta uma situação peculiar com relação ao fenômeno. Ao mesmo tempo em que, no plano interno, vê um numeroso contingente de pessoas serem desvinculadas de suas terras por conta de interesses econômicos (sejam eles do agronegócio, da mineração, da construção de grandes obras de infra-estrutura ou meramente de especulação imobiliária), no plano externo, atua como um dos mais vorazes compradores de terra em outras partes do mundo, especialmente na África.
No contexto específico da Índia, Nandini conta que um conjunto de movimentos tem organizado protestos para que os poderes instituídos na Índia tomem ao menos algumas medidas básicas – veja panorama internacional elaborado pela organização Grain, uma das que, juntamente com a FIAN, mais vem trabalhando o tema -, como a contabilização do total de terras adquiridas por agentes econômicos estrangeiros, a definição de um marco legal mais sólido que estabeleça parâmetros consistentes para o setor e a garantia dos direitos do grande número de pessoas que vêm sendo afetadas pela compra de terras.
No Brasil, apesar da definição de procedimentos relativos à venda de terras a entes estrangeiros definidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no ano passado, advertências quanto às possibilidades de fraudes em áreas de expansão agropecuária (confira reportagem sobre a Região Centro-Oeste, “Império da conveniência”, do Mapa Social) vêm sendo reiteradas por juristas como a ex-corregedora nacional da Justiça Eliana Calmon. De outro lado, organizações moçambicanas criticam o patrocínio do país a empreendimentos de incentivo ao agronegócio como o ProSAVANA, que abrange 10 milhões de hectares, em parceria com investidores japoneses.
Relação com a natureza
Assim como muitos analistas, o padre italiano Alex Zanotelli, que vem se dedicando a denunciar o problema, atribui o quadro atual à combinação de três fatores: o aumento de preços dos alimentos, a expansão da produção de agrocombustíveis e o aguçado interesse de investidores do sistema financeiro pelo mercado de terras. Além da participação de governos – como ficou patente no simbólico caso no ano de 2008 ocorrido em Madagascar, quando os mandatários daquele país decidiram “conceder” (pelo sistema de leasing) o direito de usufruto de 3,2 milhões de hectares por 99 anos para a transnacional sul-coreana Daewoo -, as transações contam com o suporte de instituições multilaterais como o Banco Mundial.
Misturam-se inclusive – e por isso são frequentemente tachadas de “neocoloniais” – com acordos de ordem comercial (com ares de programas de ajustamento estrutural) envolvendo não só grandes corporações, mas também coalizões poderosas como o G-8, o grupo dos oito países mais ricos do mundo.
“A Arábia Saudita, por exemplo, está avançando sobre a Etiópia. China e Índia vêm desempenhando um papel muito ativo, assim como a própria Itália. O recém-criado Sudão do Sul é, por exemplo, um espaço de excelência para o apoderamento de terras”, cita o comboniano Alex. Como nos casos em que bancos foram envolvidos, denunciados e responsabilizados judicialmente por conceder financiamentos ligados a conflitos armados, o padre ativista almeja que instituições financeiras também possam ter o ônus (especialmente em termos de imagem) por fazer parte desses negócios.
De acordo com outra cartilha sobre o tema distribuída no FSM 2013, quatro mitos infundados sustentam a “contra-reforma agrária” em escala global. O primeiro deles é a de que existe um “excedente de terras” desocupadas e à disposição para uso econômico em países em desenvolvimento; o segundo é o de que a atividade agrícola requer grandes investimentos de capital; o terceiro é o de que apenas investimentos em grande escala são capazes de dar respostas às crises de abastecimento alimentar e produção energética; e o quarto é o da pretensa “segurança jurídica” propiciada pelas concessões de grandes extensões de terra a empresas privadas.
Para a economista mexicana Ana Esther Ceceña, que acumula participações em Fóruns Sociais Mundiais, o fenômeno do apoderamento de terra e água, bem como a ênfase no extrativismo, são formas de apropriação que fazem parte da lógica do capitalismo. O que impressiona, segundo a Investigadora da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), é a escala e a velocidade em que ocorrem. Paralelamente à sedução do progresso da acumulação de bens materiais, porém, alternativas vêm sendo cada vez mais discutidas, dentro e fora do processo do próprio FSM. “Há muitas experiências que praticam outras lógicas, que não partilham da separação categórica entre as pessoas e a natureza, assim como da necessidade das primeiras de dominar a última. Hoje, a noção de bem viver (buen vivir) presente entre povos indígenas da América Latina, por exemplo, é muito mais conhecida do que antes”.