A Comissão Nacional da Verdade tem, desde outubro último, um abacaxi graúdo para descascar. O Exército está sendo acusado de ter eliminado 2 mil índios da nação waimiri-atroari, no Amazonas
Edilson Martins – O Globo
A Comissão tem um relatório com documentos, organizado pelo Comitê da Verdade, do Amazonas, com relatos de índios, militares, funcionários da FUNAI, entre outros testemunhos. Eliminar inimigos de ditaduras, militares ou civis, os chamados subversivos e terroristas, nunca foi novidade, mas exterminar índios em estado de cultura pura, caso proceda a denúncia, é um novo paradigma na história do país.
A psicanalista Maria Rita Kehl, da Comissão da Verdade e indicada para apurar a questão, revelou ao repórter Guilherme Balza, do portal UOL, que “os INDÍGENAS não estavam resistindo no sentido político, já que não sabiam exatamente o que era uma ditadura. A resistência era no sentido de garantir suas terras”.
A pergunta é: o que fizeram para sofrer essa violência? Estávamos em pleno governo militar e as terras desses índios ficavam na conexão do Brasil com o Caribe. Uma rodovia ligando o Amazonas a Caracas (Venezuela) precisava ser construída.
E mais: o governo decidiu construir uma hidrelétrica (Balbina), inundando mais da metade das terras INDÍGENAS. Essa barragem foi um dos maiores desastres ecológicos em todo o século XX, destruindo fauna e flora.
Balbina inundou uma área equivalente à cidade de São Paulo, produz 35 vezes menos energia do que Tucuruí e seu lago é maior que o dessa hidrelétrica. Os confrontos com castanheiros e tropas da PM já aconteciam, mas os índios sobreviveram. No enfrentamento com as tropas do Exército, durante a construção da BR-174 nos anos 70, eles perderam.
Se a Comissão ratificar a denúncia, o número de vítimas da ditadura, hoje na ordem de 457, vai assustar o país. Os índios Parwé e Wamé recordam o lançamento de bombas, naqueles anos, incendiando suas aldeias, não ficando vivo ninguém próximo. No início do século XX, eles viviam a 50 km de Manaus. Foram empurrados pelas frentes (BR-174, Balbina). Hoje algumas aldeias distam até 400 km da capital.
Há um relatório assinado pelo general Gentil Paes, produzido em parceria com a FUNAI, à época subordinada ao Exército, determinando “demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite”. Corria o ano de 1974.
Outro general, Altino Berthier, num livro de memórias compara as ações militares às dos alemães na II Guerra. “Tive o privilégio de perceber, sentir e registrar os efeitos daquela blitzkrieg (tática dos nazistas) sobre território desconhecido, enxotando um povo perplexo, que reagia violentamente ante a desestruturação de sua célula familiar e de seu universo telúrico.”
Confirmada a acusação, a memória de Cândido Rondon terá sido arranhada. O Exército de Caxias e de Deodoro, que sempre se orgulhou de não ter reproduzido o que fizeram as tropas americanas na conquista do Oeste, sairia maculado. Rondon, ele próprio descendente dos bororo, militar que integrou o Brasil com a implantação das linhas de telégrafo no século passado, na relação com essas culturas, cultivava a máxima; “Morrer, se preciso for; matar nunca.”
Apesar da diáspora, sobreviveram e exibem uma das mais bem-sucedidas experiências com o mundo civilizado, mas lutam contra a aculturação. Desenvolveram a própria escrita, estudam português e matemática, e só; o resto é o aprofundamento da cultura walmiri-atroari. Em seu território inexistem armas de fogo, não se mata um animal selvagem e não se derruba uma árvore sem justas razões. É uma experiência única no país.
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Enviada por Janete Melo.