“Autismo no Brasil: um grande desafio! Insensibilidade e bullying fazem Rafael sair da escola”

Foto encontrada na internet, sem identificação de autoria

Nota: a carta abaixo, enviada por um pai a alguns senadores e deputados, relata a luta de seu filho e de sua família para vencer o preconceito e a discriminação, na vida e na escola, em particular. Não se trata de um pai comum, mas de alguém que teve e continua a ter atuação decisiva nas diversas conquistas legais em relação aos direitos das crianças com autismo. Pensei muito antes de publicá-la (o que faço evidentemente com a permissão de seu autor), mas penso que tirar cada vez mais da invisibilidade as injustiças é sempre um dos primeiros e decisivos passos para vencê-las. E como ele diz no final, mesmo com a Lei 12.764 e “apesar de todo o nosso empenho e dedicação, a realidade brasileira ainda impõe grandes desafios e dores às famílias de pessoas com autismo no Brasil”. (Tania Pacheco)

Carta escrita por Ulisses da Costa Batista para os senadores Paulo Paim, Cristovam Buarque e Lindbergh Farias e para os deputados federais Hugo Leal, Mara Gabrilli, Rosinha da Adefal e Fábio Trad:

“Vimos a força que a sociedade brasileira tem quando se une em prol de valores que mereçam seu empenho.

O resgate da cidadania e dignidade das pessoas com autismo no Brasil e a de seus familiares foi uma questão de honra. Não poderíamos conviver com tamanho descaso e desleixo com essa parcela significativa da população devido aos tremendos sofrimentos impostos pela falta de políticas públicas que lhes garantissem o mínimo existencial para o seu desenvolvimento social e familiar.

A síndrome autista continua a ser um grande desafio para a ciência, porém é dever do governo, da sociedade civil e da família, garantir, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Foi o que fizemos por meio de uma grande mobilização que engajou familiares, amigos e demais membros da sociedade civil organizada, e, como ficou comprovado por meio de documentos que enviei aos senhores, como por exemplo: a denúncia que fiz à Defensoria Pública do RJ e que originou a ação na justiça contra o Estado do RJ devido a falta de tratamento específico, a 1ª Lei municipal do Brasil (Lei nº 4.709) que eu ajudei a fazer, a representação contra o Brasil junto à Organização dos Estados Americanos – OEA devido a falta de tratamento específico, a carta que fiz em abril de 2009 ao presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa – CDH, e que deu origem à audiência pública que mais tarde resultou na Lei Federal nº 12.764, um marco na vida desses cidadãos brasileiros, sem falar na grande mobilização nacional pelos direitos das pessoas com autismo, com iluminação de azul do monumento Cristo Redentor, e que graças a Deus entrou para o calendário oficial, tudo isso fez com que o tema fosse discutido amplamente junto à mídia e sociedade civil,  que poderá resultar em grandes transformações na forma como a saúde e a educação veem e entendem as pessoas com autismo no Brasil.

Face aos grandes desafios que ainda teremos que enfrentar, uma grande reflexão precisa ser feita: “ou investimos de verdade na educação por meio da valorização profissional e salarial de professores, de um ambiente escolar digno, que atenda aos desafios dos tempos modernos, que estimule ao máximo as suas capacidades e faça de nossos jovens verdadeiros cidadãos, ou estaremos expondo-os a frustração e ao sofrimento por não serem capazes de alcançar seus sonhos e projetos devido à falta de políticas sérias que promovam o que temos de mais valioso em uma Nação – SEU POVO!”.

Quero relatar as Vossas Excelências o tanto de dor e sofrimento que minha família está passando em função da falta de seriedade de nossa sociedade.

Rafael, meu filho, no dia 11 de março deste ano, desistiu de estudar em sua escola. Ele estava na 3ª série do 2º Grau (Ensino Médio) e devido aos constantes vexames, brincadeiras que denegriam sua imagem, agressões, bullying…  Fizeram com que ele desistisse de voltar para a sua escola. Ele está vivendo um processo de regressão que não deveria estar passando, pois sempre acreditamos na inclusão de pessoas com autismo, e nos 12 anos em que ele ficou nessa escola, desde o Jardim III, eu paguei uma psicóloga com especialização em inclusão por mais de 10 anos (de 2001 à 2011), pois eles na época não permitiam facilitador ou mediador escolar em sala de aula.  Por isso somos categóricos ao afirmar que “ele enfrentou sozinho” a inclusão escolar, poucas adaptação foram feitas, muito poucas; enquanto isso, eu e minha esposa estávamos todos os dias na escola, eu montava apostilas sobre o que é autismo, com DVDs de palestras de profissionais estrangeiros sobre o que tinha de mais moderno sobre autismo, colocava todo esse material em envelopes individualizados, e os entregava aos professores, sem falar em presentes e lembranças que dávamos, todos os anos, para vários profissionais da escola em função da atenção que esperávamos que tivessem por nosso filho. Fiz isso por 12 anos! Não bastasse tudo isso, informava-os de minha luta particular por políticas públicas para resgatar a dignidade e cidadania das pessoas com autismo, e dizia ainda que a sociedade somente poderá ser melhor quando todos nós assumirmos nosso papel de protagonistas, lutando e exigindo um ambiente mais organizado e justo para se viver.

Apesar de tudo o que relatei acima, as agressões, vexames e bullying aconteciam na escola. Procurava a direção e coordenação para que tais “ocorrências” não voltassem a acontecer. Há dois anos atrás nosso filho disse que iria resolver sozinho “seus problemas” na escola. O caso ficou ainda mais difícil porque fomos orientados pela psicóloga para que tirássemos nossa filha da escola e a matriculássemos em outra, devido ao sofrimento que ela passava ao ver seu irmão ser “molestado” no recreio. Descobrimos que o “banheiro da escola” é o inimigo número um dos autistas, e que o segundo é a “insensibilidade da escola”.

Estamos vivendo um momento de extrema dor. Tudo o que fiz foi justamente por causa desse menino. E agora, com a Lei que ajudei a fazer, com toda a minha luta por mais de 13 anos, dedicação e engajamento, não foram capazes de ajudá-lo…

Por isso que o inciso IV do artigo 2º de nossa Lei 12.764, que garantia “a inclusão dos estudantes com transtorno do espectro autista nas classes comuns de ensino regular e a garantia de atendimento educacional especializado gratuito a esses educandos, quando apresentarem necessidades especiais e sempre que, em função de condições específicas, não for possível a sua inserção nas classes comuns de ensino regular, observado o disposto no Capítulo V (Da Educação Especial) do Título V da Lei n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional;” é tão importante para que as pessoas com autismo sejam protegidas e tenham a sua dignidade respeitadas.

Não restam dúvidas de que muitas famílias Brasil afora estejam sofrendo estas mesmas dores e constrangimentos. Tenho recebido inúmeros e-mail´s sobre dificuldades de manterem seus filhos de maneira adequada nas escolas, devido o “pouco envolvimento” da mesma na inclusão das pessoas com autismo.

A dor e a frustração têm invadido inúmeros lares em nosso país, e a minha família, agora, apesar de todo o meu conhecimento e envolvimento com a causa passa pelas mesmas dificuldades.

Por isso que é preciso fazer uma “grande reflexão” sobre os rumos da inclusão no Brasil. Não podemos permitir que mais e mais famílias sofram com a falta de efetividade de nossas leis e obrigações, principalmente quando voltadas para as pessoas hipossuficientes.

A Lei Berenice Piana, que foi um marco na luta pelos direitos das pessoas com autismo no Brasil, não terá alcançado seu valor caso não tenhamos condições de implementá-la.

Estou procurando agora um curso à distância para que meu filho termine o 3º ano do 2º Grau, pois ele não quer mais entrar em uma sala de aula. Estamos tratando de sua regressão, que jamais teria acontecido, caso a escola tivesse cumprido com o seu papel. Eu e minha esposa já enfrentamos “tremendos desafios”, pois nosso filho falou apenas aos 05 (cinco) anos de idade, após grandes investimentos em novas terapias e tratamentos naturais que perduram até os dias atuais. Agora, nosso filho precisou fazer uso de medicação controlada para tratar desta regressão, insônia e agressividade. Estamos muito apreensivos com a sua recuperação! E este desafio agora nos foi imposto pela escola!

Quero agradecer por todo apoio ao nosso movimento para a aprovação da Lei 12.764, mas, apesar de todo o nosso empenho e dedicação, a realidade brasileira ainda impõe grandes desafios e dores às famílias de pessoas com autismo no Brasil.

Atenciosamente,

Ulisses da Costa Batista”.

Comments (3)

  1. “Tudo o que a gente puder fazer no sentido de convocar os que vivem em torno da escola, e dentro da escola, no sentido de participarem, de tomarem um pouco o destino da escola na mão, também. Tudoo que a gente puder fazer nesse sentido é pouco ainda, considerando o trabalho imenso que se põe diante de nós que é o de assumir esse país democraticamente.”
    Paulo Freire

    A educação é um direito de todos e dever do Estado, assim define a Constituição Federal no seu artigo 205. A constituição diz ainda, que o ensino será ministrado com base no princípio de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, entre outros.

    O capítulo V, artigo 58, da Lei das Diretrizes e Bases Nacionais, LDBEN, O artigo 58, da LDB, classifica educação especial “como modalidade de educação escolar, oferecida, preferencialmente, na rede regular de ensino, para educando portadores de necessidades especiais”.

    No § 1º, do artigo 58, diz: “haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender às peculiaridades da clientela de educação especial”.

    No inciso 1º desse mesmo artigo garante serviços especializados para atender a diferentes “anormalidades” que os portadores de necessidades especiais venham apresentar.

    O artigo 59, também da LDB, garante que os sistemas de ensino assegurarão para o atendimento aos alunos com necessidades educacionais especiais currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específica.

    A bandeira da inclusão ainda não é suficientemente compreendida, principalmente quando se trata do espaço escolar que deveria viabilizar a inclusão de alunos com necessidades especiais, implantar classes comuns e de serviços de apoio pedagógico especializados, de modo a garantir a educação escolar e promover o desenvolvimento das potencialidades dos educandos que apresentam necessidades educacionais especiais, em todos os níveis, etapas e modalidades da educação.
    Mas, a nossa realidade mostra que as leis que garantem a inclusão já existem a tempo suficiente para que as escolas tenham capacitado professores e adaptado a estrutura física e a proposta pedagógica, e não é a instituição escolar em si a culpada, contudo, o próprio sistema, que no papel vem garantir algo e na realidade não cumpre. Entretanto, é o sistema que deve proporcionar as condições necessárias, como salas adequadas, os profissionais qualificados para o atendimento e recursos, de instruções, de instrumentos, de técnicas e de equipamentos especializados, de acordo com suas necessidades.
    Alguns avanços sociais foram sinalizados como a garantia do acesso ao ensino gratuito e obrigatório, a gestão democrática do ensino público, essa garantia perpassa pelos princípios que implica alterarmos a escola que temos e buscarmos a construção de uma nova escola de construção coletiva da autonomia da escola. Entre os mecanismos de participação presentes no interior da escola encontra-se o Conselho Escolar enquanto organismo colegiado, campo pedagógico de aprendizado das noções de direitos e deveres; base da compreensão e desenvolvimento do conceito de cidadão consciente.
    Nesse sentido, o caderno do Conselho de Escola na sua introdução diz: “Nesse processo, o Conselho Escolar pode dar uma importante contribuição ao cumprir sua função de instância de democratização da educação e deconstrução da cidadania; é fundamental que ele acompanhe a aprendizagem das crianças, adolescentes e jovens na escola. O processo de aprendizagem fica muito prejudicado se no trabalho pedagógico da sala de aula não se leva em conta, não se respeita, não se trabalha e não se valoriza o conhecimento do estudante e a cultura de sua comunidade. Para tanto é fundamental que o Conselho zele pelo uso significativo do tempo pedagógico na escola e participe da gestão democrática da instituição escolar. No cumprimento desse seu papel de acompanhar e apoiar, avaliar, fiscalizar e decidir são sugeridos indicadores de qualidade para sua orientação (http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Consescol/ce_cad3.pdf)

  2. Ulisses , o Gustavo é pequeno e já me peguei pensando nisso se for uma lei que obrigue e não efetive a inclusão para mim não serve ,mais tarde os problemas tendem a aumentar só sei de uma coisa se ver que meu filho esta passando por algum problema não terá promotor nenhum que me obrigara a fazer o que é o pior , triste é pensar que pelo tempo lá ele estava bem .

  3. Lamentável. Se empenhar na aprovação de uma lei que não beneficia o seu filho. Não desanime, estamos contigo e vamos vencer esta batalha. Movimento Pró Autista.

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