A necessidade de desenvolver uma interpretação de nossa realidade tornou a trajetória do marxismo brasileiro, desviante e impediu que a pesquisa histórica, social, política e econômica fossem deslocadas pela filosofia e pela crítica literária. Pode-se, até mesmo, dizer que a filosofia e a crítica literária brasileiras foram desde cedo marcadas pela análise histórica e social, inclusive no marxismo, ou seja, que o objetivo explícito dessa filosofia e dessa crítica literária foi, senão sempre pelo menos na maioria das vezes, interpretar o Brasil.
Com esse propósito a teoria da dependência em suas diferentes versões foi a mais inovadora contribuição do marxismo latino-americano. Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em Dependência e Desenvolvimento na América Latina (Cardoso e Faletto, 2004) criticaram o dualismo estrutural que caracterizava muito das teorias do subdesenvolvimento e propuseram uma “análise integrada do desenvolvimento”, na qual este era concebido como “o resultado da interação de grupos e classes sociais que têm um modo de relação que lhes é próprio” (2004, p. 34). O foco da análise passava, assim, a ser “o estudo das estruturas de dominação e das formas de estratificação social que condicionam os mecanismos e os tipos de controle e decisão do sistema econômico em cada situação particular.” (Idem, p. 37.)
Ruy Mauro Marini (2000) apresentou fortes objeções à abordagem de Cardoso e Faletto insistindo no papel da superexploração da força de trabalho como condição de manutenção da relação entre dependência e imperialismo. O pressuposto de sua abordagem era o de que a dependência implicava inteiramente em uma subordinação à dinâmica da acumulação nos países industriais. De um modo geral e possível perceber em Marini um esforço mais consistente de mobilização das categorias marxistas no estudo da dependência. Assim, em sua obra é possível encontrar uma resposta à pergunta de João Quartim de Moraes a respeito do “estatuto teórico da teoria da dependência” e, mais precisamente, a respeito da relação desta com a teoria marxista (Moraes, 1972).
A teoria da dependência deixou um importante legado e assentou as bases para uma interpretação da realidade brasileira e latino-americana. Comentando o desenvolvimento deste, Sérgio Lessa afirmava, em 1998, que dois temas polarizavam o debate entre os marxistas brasileiros: a crítica ao marxismo vulgar e o debate político-estratégico sobre reforma e revolução (Lessa, 1998, p. 101-105). A interconexão entre esses temas era forte, uma vez que ambos remetiam à crítica às modalidades do pensamento marxista que predominaram no interior do Partido Comunista Brasileiro e que se fizeram presentes ainda de modo intenso em nosso ambiente intelectual e político.
De certa maneira, para o bem e para o mal, a chamada teoria da dependência em suas diferentes versões colocava-se claramente essa pauta de pesquisa já no final dos anos 1960. Não custa lembrar que até mesmo Fernando Henrique Cardoso chegou a apresentar o conceito de dependência como uma atualização da teoria do imperialismo de Lenin e a situou claramente em seus primórdios no âmbito do pensamento marxista (p. ex. Cardoso, 1972, p. 129). A ascensão na América Latina ao poder de partidos e lideranças políticas com as quais o marxismo teve estreitas relações produziu um fenômeno de transformismo de intelectuais que passaram a ocupar posições nos aparelhos de Estado abandonando qualquer perspectiva crítica (cf. Coggiola, 2005). A teoria da dependência, talvez a mais inovadora contribuição do marxismo latino-americano, não deixou de sofrer as consequências desse processo, sendo eclipsada a partir da década de 1980.
As recorrentes crises econômicas e políticas na América Latina a partir de meados da década de 1990 formataram o contexto que permitiu ao pensamento crítico recobrar sua força. Foi na tentativa de compreender o que estava ocorrendo no Brasil e no mundo que o marxismo brasileiro foi novamente convocado a ocupar um lugar de destaque no debate contemporâneo. As universidades brasileiras não foram o locus exclusivo dessa revalorização, mas têm, sem dúvida, um importante papel. Na Universidade Estadual de Campinas, Ricardo Antunes (1995, 1999 e 2006) e o grupo de jovens pesquisadores que com ele trabalha têm dado importantes contribuições ao entendimento dos processos de reestruturação produtiva e as mudanças no mundo do trabalho. Na mesma Universidade, Armando Boito Jr. e o Grupo de Pesquisa sediado no Centro de Estudos marxistas (Cemarx) tem apresentado uma consistente análise do neoliberalismo (p. ex. Boito Jr. 1999 e Galvão, 2006). No Centro de Estudos da Cidadania, da Universidade de São Paulo, Francisco de Oliveira (2003 e 2003a) e Ruy Braga (Braga, 2003 e Braga e Burawoy, 2009) avançaram significativamente no estudo dos processos de construção da hegemonia e apresentaram importantes contribuições para a teoria social. E no Rio de Janeiro, pesquisadores como Marcelo Badaró Mattos (2002 e 2008), Virginia Fontes (2010) e Sonia Mendonça (2006 e 2007) tem contribuído decisivamente na história tanto das classes subalternas como das classes dominantes. Os exemplos poderiam se multiplicar.
Ao que tudo indica o pensamento crítico brasileiro encontra-se em um ciclo de expansão. O número de revistas marxistas cresceu significativamente, desde meados da década de 1990 e novos espaços de produção e difusão desse pensamento crítico tem sido criados. O Cemarx ocupou uma posição de destaque nesse processo e o quadro poderia ser completado por uma análise do desenvolvimento das revistas marxistas no Brasil, dentre as quais merecem destaque Crítica Marxista, Outubro, Margem Esquerda e Novos Rumos; das editoras, que publicam nessa área, particularmente a Boitempo, Sundermann e Expressão Popular; e das iniciativas de formação política nos partidos e movimentos sociais dentre as quais as mais consistentes são certamente as do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e as da Escola Florestan Fernandes.
A pauta de debates apresentada por Lessa não foi, portanto, esgotada, mas ela é excessivamente minimalista se o objetivo for a reconstrução de um pensamento crítico. Novos desafios foram temas colocados pela situação presente e tem mobilizado o pensamento marxista. Quatro parecem ser as direções sobre os quais esse diversificado movimento de renovação dos estudos marxistas tem fixado a atenção. Em primeiro lugar o desenvolvimento da crítica da economia política tem assumido como objeto as transformações da economia capitalista e, particularmente, os fenômenos de mundialização e financeirização do capital e as novas formas do imperialismo. A caracterização do neoliberalismo como um momento atual do capitalismo tem motivado importantes debates e os problemas teóricos da análise desse momento tem exigido uma abordagem inovadora tanto da teoria do valor, como da teoria do imperialismo.
Em segundo lugar, a crítica da divisão do trabalho enfrenta a análise das transformações nos processos de trabalho decorrentes da utilização de novas tecnologias e da reorganização gerencial do espaço da produção de mercadorias por meio dos processos de reengenharia, terceirização, downsizing, etc., bem como o estudo da reação das classes trabalhadoras a esses processos. Aqui os problemas teóricos mais importantes são a relevância do trabalho como uma categoria chave da análise social, a permanência das classes trabalhadoras como sujeitos sociais ou políticos, o surgimento do precariado e a nova morfologia dessas classes e as práticas de resistência e emancipação afirmadas por elas.
Em terceiro lugar, a crítica da política tem tratado das novas formas que a dominação política capitalista assumiu, bem como os movimentos de oposição a essa dominação, em um contexto no qual o regime democrático liberal dá sinais em nosso país de uma longevidade sem precedentes e o neoliberalismo impõe uma profunda reconfiguração das relações entre política e economia. As questões apresentadas nesta direção dizem respeito fundamentalmente à definição do Estado-nação e da política. Discussões sobre as formas atuais do Estado capitalista e sua relação com as classes sociais, liberdade e igualdade, nação e nacionalidade, estratégia socialista no século XXI e a emergência de novos atores políticos têm recebido forte atenção por parte dos pesquisadores.
Por último, a crítica da ideologia encontra-se às voltas com a análise do processo de mercantilização das relações sociais e o novo lugar funcional que a cultura, aproximando-se da economia, passou a ter na organização do modo de produção capitalista. Na medida em que a produção estética passou a integrar o processo de produção de mercadorias, novos problemas foram colocados para a pesquisa crítica. O debate sobre o pós-modernismo e a lógica cultural do capitalismo embora tenha arrefecido nos últimos anos, permanece importante.
Com que ferramentas empreender essa reflexão? Um novo “retorno” a Marx torna-se necessário para esses estudos merecerem o adjetivo marxista. Torna-se urgente enfrentar de modo crítico os desafios impostos pela sua obra, reconhecer seus limites, encontrar nela novas pistas para a análise do presente e as possibilidades que ela abre para a teoria. De fato, a imperiosa necessidade de responder às exigências da pesquisa teórica e empírica da situação presente não teve como correlato, pelo menos até o momento, um desenvolvimento comparável de uma reflexão crítica sobre a própria obra de Marx e Engels. Mas é justamente a análise da situação presente quem paga o preço por esse desenvolvimento desigual.
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