Em pleno período de proibição da pesca para reprodução dos peixes, EM percorre as águas do São Francisco e constata que infratores manejam tranquilamente redes e anzóis, capturando espécies ameaçadas na época em que estão mais vulneráveis
Mateus Parreiras
Buritizeiro, Pirapora, São Gonçalo do Rio Abaixo e Três Marias – A proibição da pesca durante a piracema, como é conhecida a estação de reprodução dos peixes, terminou ontem, mas, depois de quatro meses, o que deveria significar uma trégua para a renovação dos cardumes se revelou uma reedição da farra de capturas na época em que os animais se encontram mais vulneráveis. Redes estendidas nos remansos, tarrafas atiradas nas corredeiras, anzóis fisgando exemplares em plena desova encenaram um ritual que se repete ano a ano, à margem de qualquer fiscalização, dizimando espécies ameaçadas de extinção como dourados, surubins e matrinchãs. Foi o que constatou a equipe de reportagem do Estado de Minas ao percorrer, durante o período de restrição pesqueira, trechos do Alto Rio São Francisco. O histórico de pesca no manancial remonta à chegada dos europeus ao Brasil, naquela que ainda hoje é uma das mais importantes fontes de peixes de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Importância insuficiente para determinar uma fiscalização séria em suas águas.
Tanto que a pesca predatória nesta piracema foi especialmente devastadora, segundo o Centro de Transposição de Peixes (CTPeixes) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A rede de pesquisadores de diferentes instituições brasileiras e estrangeiras que forma o centro destaca que as populações de surubins, dourados e outras espécies ameaçadas chegam à época de seca resumidas a 25% do número total de indivíduos. “Um cenário gravíssimo, que deveria ter motivado maior fiscalização. Ainda mais porque a época reprodutiva coincide com as cheias. Mas, como tivemos seca prolongada, os cardumes reduzidos se tornaram alvos ainda mais fáceis da pesca predatória”, denuncia o coordenador do CTPeixes, o biólogo Alexandre Lima Godinho. Neste ano, a falta de precipitações nos meses da estação de cheia castigou o Velho Chico, fazendo reservatórios como o de Três Marias, na Região Central de Minas, chegarem a 30% de sua capacidade.
O baixo nível das águas do São Francisco logo depois da barragem de Três Marias, a 276 quilômetros de Belo Horizonte, prejudica até o tráfego de embarcações. Bancos de lodo invisíveis na superfície barrenta grudam nas hélices de barcos menores, que precisam ser limpas, levando a primeira incursão da reportagem a levar quase uma hora e meia para percorrer 10 quilômetros. O destino era a chamada “cachoeira”, na altura do município de São Gonçalo do Abaeté, uma área de corredeiras de espuma branca entre pedras no meio do curso do rio. O CTPeixes aponta o local como ideal para a reprodução de espécies como o dourado. É em locais como esse que os peixes se reúnem em grandes quantidades para desovar, ficando expostos à captura.
Corredeiras são áreas onde não se pode capturar peixes. De acordo com a Portaria 50/2007 do Ibama, é proibido qualquer tipo de pesca “a menos de 1.000 metros de barragens de reservatórios, usinas hidrelétricas, cachoeiras e corredeiras”. No entanto, já de longe é possível identificar uma dupla de pescadores em uma canoa. Atiravam uma tarrafa entre as pedras e as águas rápidas, sem qualquer preocupação ou incômodo. A armadilha tem chumbadas pesadas na borda, o que a permite se abrir no ar e se fechar rapidamente na água, embrulhando os peixes que encontra encurralados, em plena reprodução. A atividade seguiu ininterrupta, no meio da tarde, sem interferências. Como a área não permite a navegação de barcos movidos a hélice, por causa das rochas, não foi possível uma aproximação com os infratores, que estavam em canoa a remo. Mesma dificuldade têm a polícia e os órgãos de meio ambiente, que só conseguem inibir pescadores por ali usando motos aquáticas.
Outro ponto importante para a desova na piracema, segundo o CTPeixes, é a área de corredeiras de pedras entre as cidades de Pirapora e Buritizeiro, no Norte de Minas. Nesse trecho o Rio São Francisco chega a 680 metros de largura. No meio do leito despontam obstáculos como ilhas de mato alto e pedras escuras capazes de esconder pescadores dispostos a burlar a fiscalização. Para chegar até lá, só mesmo se embrenhando no matagal alto das margens, abrindo caminho por em trilhas bem conhecidas pelos pescadores, mas aparentemente ignoradas pela fiscalização.
Foi em uma dessas incursões nas margens do lado de Buritizeiro que o vigilante A.H., de 34 anos, apareceu no meio da água, atravessando a correnteza entre as pedras, enquanto atirava uma tarrafa. Ele concordou em falar, com a condição de se manter no anonimato. “Estamos na época de proibição (da pesca). Venho pegar peixes, mas não vivo disso. Agora, tem gente que vive, que é profissional e precisa de lançar as tarrafas, por isso não quero prejudicar eles”, justificou. De acordo com A., praticamente não há fiscalização naquele ponto do Velho Chico, embora esteja longe ser uma região remota – a área fica entre duas cidades conhecidas pela procura de turistas e pescadores. “Nem na piracema, nem em outra época”, acrescenta. O homem ainda encontrou uma desculpa para continuar pescando. “Não estou pegando quase nada mesmo. O rio está ruim de peixes. Assim, não vou prejudicar a reprodução deles.”
Nas redes da ilegalidade
Desde ontem, série do Estado de Minas mostra os frágeis instrumentos de proteção à fauna aquática no estado e as fraudes sistemáticas contra os mecanismos criados para evitar a pesca no período conhecido como piracema, dedicado à reprodução das espécies. A primeira reportagem revelou que a principal política oficial para evitar capturas predatórias sustenta uma verdadeira rede de corrupção. A bolsa-pesca, espécie de seguro desemprego que deveria manter pescadores artesanais impedidos de capturar espécimes durante o período de defeso, acaba engordando os bolsos de comerciantes, empresários, políticos e até religiosos, enquanto não chega para muitos dos que realmente necessitam. O EM mostrou que nos últimos dois anos houve 90 mil benefícios suspensos no Brasil e 98.336 carteiras de pesca cassadas por suspeitas de fraudes. Em Minas, 3.757 carteiras foram suspensas, mas nenhuma delas devido a desvios do seguro para o pescador artesanal.
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http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/03/01/interna_gerais,353819/cardumes-sao-dizimados-a-margem-da-fiscalizacao-em-minas.shtml#.UTC13VEHoJg.gmail
Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.