Verenilde Santos Pereira*
O extermínio simbólico que desde o século passado a revista Veja produz contra os indígenas do Brasil – e contra tantos outros excluídos – continua cada vez mais virulento, embora esta produção simbólica justifique e até promova a aniquilação física destes grupos. Embora isto também promova a inconsciência e desinformação em seus vulneráveis leitores. Nas recentes coberturas sobre os Guarany Kayowá a Veja se supera: personifica inquestionavelmente a figura de Adolph Eichmann, o réu nazista que veiculou no mundo a “banalidade do mal”. Como se sabe “banalidade do mal” é um conceito elaborado pela pensadora política Hannah Arendt – que pensou o mal fora da tradição cristã-ocidental que o ligou apenas ao sofrimento e à morte. Neste caso, trata-se de um mal muito sutil, fora da concretude dos atos, portanto, mais perigoso.
Como é sabido, Adolph Eichmann foi o réu nazista condenado à forca após julgamento na corte distrital de Jerusalém, em 1961. Ele foi acusado de crime contra o povo judeu, crime contra a humanidade e crimes de guerra. Para o julgamento – considerado um dos mais importantes do século passado e presenciado por jornalistas de todo mundo -, Hannah Arendt, de origem judia, participou como repórter para a revista The New York. O que causou perplexidade na pensadora é que, ao invés do monstro, de um criminoso cruel ou alguém arrependido pedindo perdão, ela se deparou com um homem dotado de uma excessiva superficialidade.
Eichmann não era sequer dotado de forças demoníacas ou doenças patológicas que explicassem a autorização para mandar exterminar milhares de pessoas nas câmaras de gás. Eichmann era apenas um tenente-coronel fiel à ideologia do Nacional Socialismo, admirava Hitler de quem era um servidor leal: sua obediência era “cadavérica”. Ele era simplesmente alguém incapaz de pensar fora dos clichês, das frases feitas, de colocar-se no lugar do outro, de ter consciência de seus atos. Esta incapacidade de pensar por si próprio essa falta de reflexão é que Hannah Arendt – autora que legou ao mundo reflexões que ajudam a compreender a contemporaneidade – definiu como a banalidade do mal. Irreflexão, incapacidade para o pensamento, era um mal banal, que não tinha raízes em patologias mais profundas embora se espalhasse como fungo em lugares-comuns. Voltemos à revista, a mais vendida no país portanto presente nos lugares comuns de milhares de brasileiros.
1990: A revista (n. 1.148, setembro) publica uma reportagem sobre os Yanomami intitulada “A morte ronda os índios na floresta”, assinada por Eurípedes Alcântara. A década foi marcada pelas invasões de garimpeiros na área e pelos conflitos sangrentos num período em que a luta pela demarcação era uma questão crucial para estes indígenas. Justamente neste contexto a revista define os Yanomami como uma “ indiada que não está nem um pouco empenhada em defender a floresta”; as mulheres “servem a maridos polígamos e infanticidas”; são aqueles que “matam os filhos indesejáveis”. E mais: “são anti-higiênicos”, “extremamente belicosos”, “vingativos”, e por aí vai.
2010: Mês de maio. A reportagem “A farra da antropologia oportunista” (edição 2163, número 18), assinada por Leonardo Coutinho, humilha negros e indígenas numa estereotipação que reflete o automatismo de Adolph Eichmann. O índio Pataxó José Aílson da Silva, talvez por ser liderança, é alvo de chacotas, numa tentativa de descaracterizá-lo como indígena. Leonardo Coutinho o apresenta como “um negro que professa o candomblé” ou “cujo cocar é de penas de galinha, com os que se usam no carnaval”. Esta demonstração da ignorância sobre a complexidade dos índios do nordeste lembra aquilo que no final dos anos 70 se denominou de “Auschitz tupiniquim”. Ou seja, os critérios de indianidade instituídos pelo coronel Ivan Zanoni Haussen, assessor da presidência da Funai que exigia características para o ‘ser” índio: os indígenas deveriam ser baixos, morenos, cabelos lisos, olhos amendoados. Descobriu-se a tempo que isto era manobra para desalojar praticamente todos os indígenas de suas terras dentro da proposta da emancipação. Conseguiu-se engavetar a insanidade.
Em seu simplismo e má fé – e todas as duas possibilidades são graves – a revista fortalece a depreciação contra Aílson que “apareceu tupinambá, povo antropófogo extinto no século XVIII, e sua “tribo” (as aspas contidas na palavra fazem parte depreciação) é composta de uma maioria de negros e mulatos”; um grupo enfim, que invade e saqueia fazendas no sul da Bahia e apesar das contradições e delitos que cometem e revista lamenta que a Funai os reconheça como índios legítimos.
O jornalista ridiculariza os Borai que vivem em Alter do Chão, no Pará, grosseiramente inseridos no que a revista chama de “Teatrinho de Praia”. O cacique Odair José que carrega este nome graças aos “benefícios” da indústria cultural é também alvo de chacotas: o termo cacique vem com aspas, sempre na tentativa de rebaixá-lo. Em outro subtítulo “Macumbeiros de cocar” a revista ridiculariza o índio Francisco Moraes porque “faz macumba” e pratica a dança de São Gonçalo. A revista “informa”: “ a questão é que a origem da macumba é africana e a da dança portuguesa”; assim sendo, nenhum brasileiro poderia sequer jogar futebol porque deixaria de ser brasileiro. Entrevistas forjadas, dados falsos, informações manipuladas foram denúncias feitas por especialistas e pessoas que tiveram seus nomes divulgados na reportagem mas que a revista inescrupulosamente escondeu de seus inocentes leitores.
Pelo fato de muitos Guarany percorrerem a divisa entre Brasil e Paraguai o jornalista Leonardo Coutinho ridiculariza o guarani Milton Moreira. Com o título “MADE IN PARAGUAI” ou seja, uma alusão a artigos contrabandeados e objetos de qualidade duvidosa, ele diz que estes indígenas foram “importados” do Paraguai pelo Conselho Indigenista Missionário.
2012: Outubro. Um Brasil que sequer sabia da existência de indígenas muito menos dos Guarany Kayowá e muito menos que eles se suicidam há décadas surge como uma informação viral nas redes sociais. Marchas em quase todo o Brasil são realizadas em solidariedade a estes indígenas. No dia 30 de outubro, em Brasília, o sociólogo Boaventura Souza Santos ao falar para mais de mil alunos da UNB fez duas convocações: que participassem da marcha em solidariedade aos Guarany Kayowá no dia seguinte, dia 31 de outubro e que deixassem de comprar jornais comprometidos com o agronegócio, com o latifúndio e afins; lembra a existência das mídias alternativas que buscam não distorcer e manipular os fatos. No dia seguinte, 31 de outubro, centenas de estudantes, professores universitários, jovens politizados que lembravam as manifestações da era Collor, funcionários públicos, indígenas de várias etnias, militantes, ambientalistas, jornalistas, se uniram num protesto contra a política genocída que provoca tragédias em toda sociedade brasileira mais especificamente aos povos indígenas. Parte da mídia fez que não entendeu. Ou que não ouviu. Distorceu. Mentiu. Ignorou.
A Veja fez o que há de pior. Leonardo Coutinho voltou à tona com a reportagem “A Ilusão de um Paraíso”, e seu texto começa com uma reclamação contra a suspensão da ordem de despejo feita pelo Tribunal Regional Federal da 3ª. Região que evitou a expulsão dos Guarany Kayowá da Fazenda Cambará em Iguatemi, no Mato Grosso. Desinforma o leitor quando diz que a as terras pertencem à fazenda, desinforma quando afirma que o Cimi “conseguiu aproveitar a ignorância das pessoas” sobre a realidade em Mato Grosso do Sul. Diz que na região dos Guarany são comuns casos de depressão, uso de crack e abuso de álcool. Mas não diz que os Guarany Kayowá vivem nos fundos das fazendas que invadiram suas terras, não fala da condição dos indígenas que trabalham até 10 horas diárias nas usinas de cana-de-açúcar por um salário mínimo. Não fala das estradas que cortaram suas terras e dos botequins onde o álcool é comercializado e ao redor dos quais os indígenas mendigam. Nem da entrada e expansão cruel do agronegócio que desestruturou drasticamente sua forma de viver, sua organização, sua religiosidade, a condição mínima de sobrevivência física, pois, afinal, eles não comem pasto.
A revista ironiza algumas jovens que em repúdio ao estupro de uma índia tiraram a blusa na marcha da Esplanada, mas, segundo Leonardo Coutinho, “ muitas brasileiras não perderam a chance de protestar de peito aberto diante das câmaras”. Sobre o estupro, nada. Não fala de Marçal Tupã morto em 1983 sem punição para seus assassinos; nem de MarcosVeron assassinado em 2008, muito menos de Nisio Gomes, assassinado no dia 18 de novembro colocado na carroceria de uma camionete e levado sem que se saiba para onde; crime que até o momento continua impune. Em determinado momento os autores da matéria confessam a que vieram: “ocorre que o território dessa nação coincide com a zona mais produtiva do agronegócio”.
Leonardo Coutinho não diz que existem na área dos Guarany Kayowá 20 milhões de cabeças de gado que dispõem de 3 a 5 hectares de terra por cabeça enquanto cada índio não chega a ocupar um hectare. Não fala das mortes de Silvana Aquino e Zulmara no simbólico dia 7 de setembro de 1999. As duas, com 14 e 21 anos respectivamente, misturaram Tordon o agrotóxico mortífero adquirido na fazenda de Arce Batista, o misturaram a Sukita e o ingeriram. No dia seguinte Wanderlan Juca fez o mesmo.
Penso no jornalismo como uma representação social da realidade cotidiana e o quanto a mídia produz discursos que passam a ser discursos de verdade, os discursos de poder pensados por Foulcault. Para constituí-los é necessário que os meios de comunicação se apropriem dos sentidos dos fatos o que vai depender de algumas condicionantes: Quem fala por tás dos profissionais da mídia. Quem fala por trás dos jornais. Eichmann era perfeito nas regras de linguagem, Hannah Arendt queria saber o que fez aquele homem parar de pensar. Tão inconsciente era que antes de morrer na forca utilizou as mesmas frases decoradas que tinha ouvido ao longo da carreira. Não zombava, a revista Veja também não. Em sua edição 2295 de 14 de novembro último ela volta a falar contra índios e homossexuais o que ocasionou um certo repúdio pelas redes sociais. É muito pouco. Assim como Eichmann responsável pela burocracia dos extermínios, a condenação não provocou inquietude na sua consciência.
Os textos sobre os quais nos referimos proliferam. Isto quando não é sufocado pelo silêncio dos “bons” como já se reclama nas mesmas redes sociais. Os textos de Veja se proliferam a cada semana e nós leitores vulneráveis ainda não aprendemos a lidar com esta consciência bovina. Não seria a proliferação de Eichamanns (Batistas…?).
*Verenilde Santos Pereira é jornalista e pesquisadora da Faculdade de Comunicação da UNB na linha de Jornalismo e Sociedade.
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Enviada por Pablo Matos Camargo.
http://suadasequelas.blogspot.com.br/2012/11/o-leitor-vulneravel-em-tempos-de.html
Excelente texto.