Guilherme Balza
Do UOL, em São Paulo
A Comissão Nacional da Verdade começou a investigar, em outubro deste ano, o desaparecimento de aproximadamente 2.000 índios da etnia Waimiri-Atroari durante a ditadura militar. O sumiço dos indígenas, cujo território se estendia de Manaus até o sul de Roraima, ocorreu entre 1968 e 1983, época em que o governo federal construiu a rodovia BR-174 –ligando a capital amazonense a Boa Vista– para atrair à região projetos de mineração de multinacionais.
A comissão recebeu um relatório, com 92 páginas e dezenas de documentos anexos, elaborado pelo Comitê Estadual da Verdade do Amazonas. O dossiê reúne relatos dos índios, depoimentos de sertanistas, militares e funcionários públicos, entre outros indícios que apontam para a existência de um massacre dos waimiris-Atroaris, operado pelo Exército por meio de táticas de guerra, inclusive.
Caso a Comissão da Verdade estabeleça a relação entre regime militar e o desaparecimento dos waimiris, o número de vítimas da ditadura pode quintuplicar. Atualmente, os documentos oficiais produzidos pela Comissão da Anistia listam 457 vítimas dos militares –entre mortos e desaparecidos–, a maioria militantes de esquerda.
“Os indígenas não estavam resistindo no sentido político, já que não sabiam exatamente o que era a ditadura. A resistência deles era, de certa maneira, ingênua, no sentido de preservar sua terra. Mas o tratamento dado a eles era violentíssimo”, afirma a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade destacada para apurar os crimes contra povos indígenas e camponeses. “Os indígenas, assim como os camponeses, eram as vítimas da ditadura mais vulneráveis.”
Segundo, Marcelo Zelic, vice-presidente da organização Tortura Nunca Mais de São Paulo, os ativistas dos direitos humanos começaram a receber informações sobre crimes cometidos pela ditadura contra índios recentemente. “Isso tudo só começou a aparecer agora”, diz. “A opressão aos indígenas existe desde sempre, mas se intensificou com o golpe”, acrescenta Zelic.
População waimiri despenca
Por viverem em área próxima a Manaus, os waimiris sofreram, desde a segunda metade do século 19, constantes investidas de expedições militares e de caçadores de índios (chamados “bugreiros”), além de garimpeiros e seringueiros, e acabaram tendo que deixar seus territórios originários.
Registros históricos relatam a ocorrência de banhos de sangue, com centenas waimiris mortos, em 1856, 1873 e 1874 –com direito, inclusive, a exposição de cadáveres em Manaus. Em 1905, 583 índios morreram em duas ações militares. Já em 1949, 72 morreram nas mãos de caçadores de jacarés.
Como instrumento de defesa, os waimiris decidiram se manter isolados, resistindo violentamente às investidas do homem branco ao seu território. Assim, ganharam fama de cruéis e selvagens, o que foi explorado a exaustão por seus algozes brancos ao longo das décadas.
No início do século 20, pesquisa feita por antropólogos alemães estimou em 6.000 índios a população total waimiri-Atroari. Em 1972, a população caiu pela metade, chegando a cerca de 3.000 homens, segundo dados da Funai (Fundação Nacional do Índio). Dois anos depois, entretanto, os waimiris estavam reduzidos a menos da metade, somando entre 600 e 1.000 pessoas.
Em 1982, relatório feito a pedido da Funai contabilizou 571 waimiris. No ano seguinte, censo elaborado pelo pesquisador da UnB (Universidade de Brasília) Stephen Grant Baines contou apenas 332 índios. Ou seja, em menos de dez anos, a população waimiri despencou quase 90%.
A tendência começou a ser revertida entre 1984 e 87, quando a população waimiri cresceu, em média, 6% ao ano, chegando a 420 pessoas. O último levantamento, realizado em 2011 pelo Programa Waimiri-Atroari, criado pela Eletrobras (antiga Eletronorte) em 1987, mostrou que havia 1.515 waimiris.
Apesar do desaparecimento de cerca de 2.000 indígenas, nos registros não consta qualquer morte de waimiri.
Ao longo das décadas, o território dos waimiris foi reduzido drasticamente não só pela construção da BR-174, mas também por conta dos projetos de mineração, das frentes pioneiras e, posteriormente, pela a hidrelétrica de Balbina, considerada um fiasco em razão do grande impacto ambiental causado em troca de baixa produtividade –a área alagada é semelhante à da hidrelétrica de Tucuruí, também na Amazônia, mas o potencial é 33 vezes menor.
Procurada pela reportagem, a Funai não negou, nem confirmou a existência de um massacre contra os waimiris e limitou-se a dizer que apoia o trabalho da Comissão da Verdade.
“A Funai tem colaborado, repassando toda a documentação de que dispõe para o esclarecimento dos fatos sucedidos durante o regime militar envolvendo povos indígenas. Cabe à comissão apontar o ocorrido e os responsáveis por crimes que possam ter sido praticados contra essas comunidades.”
Já o centro de comunicação social do Exército disse não haver “nos registros oficiais fatos com qualquer relação com a morte de índios durante a construção da BR-174.”
Táticas militares
O relatório em poder da Comissão da Verdade sustenta que os militares usaram contra os índios um aparato bélico que incluía aviões, helicópteros, bombas, metralhadoras, entre outros equipamentos. A disseminação de doenças, contraídas pelos índios a partir do contato com os brancos, também causou a morte dos waimiris, segundo o relatório, que cita o desaparecimento total de outro povo indígena que vivia na região: o Piriutiti.
Imagens produzidas pelos militares e pela Funai e cedidas à reportagem pelo jornalista Edilson Martins, diretor do documentário em série “AmazôniAdentro”, veiculado na TV Brasil neste ano, mostram ocas pegando fogo, aldeias incendiadas e cadáveres de supostas vítimas dos índios.
A versão da Funai é que as ocas que aparecem em chamas nas imagens foram destruídas pelos próprios índios, mas o relatório da Comitê Estadual da Verdade pede que as fotografias sejam periciadas em razão da suspeita de que tenham sido bombardeadas.
Para o jornalista, que ao longo de 30 anos fez reportagens pela Amazônia, as ações contra os waimiris criaram um novo paradigma na repressão aos índios.
“Esse episódio produziu um novo paradigma no trato com as populações indígenas: pela primeira vez se registrou o uso oficial de armas, pelo Estado, contra essas culturas. Foi um fato inédito. Até então o extermínio dos índios tinha se dado pelas frentes agrícolas e pelos ciclos econômicos”, afirmou o jornalista, que durante três décadas trabalhou como repórter na Amazônia.
Relatos dos índios
Como a área em que viviam os waimiris foi isolada pelo Exército e o acesso aos indígenas era controlado pelos militares, os primeiros relatos do suposto massacre só apareceram a partir de 1985, quando os indigenistas e missionários Egydio Schwade e Doroti Alice Muller Schawade iniciaram um processo de alfabetização dos waimiris em sua língua materna.
Inspirados no método Paulo Freire, ambos estimulavam os índios a contar suas histórias por meio de desenhos. Em pouco tempo os waimiris começaram a relatar episódios de violência a que foram submetidos durante a construção da estrada e a listar os amigos e familiares mortos nas ações, além de aldeias que desapareceram no período.
Um dos waimiris conta que “o homem civilizado jogou, de um avião, um pó que queimou a garganta dos índios, que logo morreram”. De acordo com o relatório, depoimentos idênticos foram dados por outros waimiris.
No documentário, o waimiri Viana Womé Atroari também cita um ataque aéreo: “foi assim, tipo bomba, lá na aldeia. Dos índios que estavam na aldeia, não escapou ninguém. Ele veio no avião e de repente esquentou tudinho, aí morreu muita gente. Foi muita maldade na construção da BR-174. Aí veio muita gente e pessoal armado, assim, pessoal do Exército, isso eu vi. Eu sei que me lembro bem assim: tinha um avião assim, desenho de folha, assim, um pouco vermelho por baixo. Passou isso aí, morria rapidinho pessoa. Desse aí que nós víamos.”
Militares não escondiam repressão
Durante a ditadura, a Funai estava subordinada ao Exército. Seus principais dirigentes eram militares do alto escalão. Os sertanistas que atuavam junto aos waimiris foram treinados pelo 6º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército, com sede em Boa Vista.
Em 1968, foi organizada uma expedição chefiada pelo antropólogo italiano e padre João Calleri, que, em contrato, prometeu “amansar” os índios e convencê-los a trabalhar na construção da BR-174. Resultado: dos 11 integrantes da missão, dez foram mortos pelos índios, inclusive o religioso.
Após o episódio, reforçou-se a militarização na construção da BR-174 e endureceu-se o tratamento aos waimiris. Pouco tempo depois, os comandantes da operação realizaram diversas solicitações de armamento e munição ao comando do Exército na região.
Em represálias aos ataques e ao avanço sobre seu território, os indígenas chegaram a atacar postos da Funai e matar funcionários: em 1973, três foram mortos em conflito com os waimiris. De acordo com o relatório, houve vítimas também do lado dos índios, mas esta informação foi omitida na época.
Em 1974, o sertanista Gilberto Pinto, tido como muito amigo dos waimiris, também foi assassinado. Na época, os índios foram responsabilizados, mas a versão é questionada pelo funcionário da Funai José Porfírio Carvalho, que trabalhava na construção da rodovia desde 1967.
“É uma história que eu tenho na minha mente um pouco diferente. O Gilberto era muito amigo dos índios”, afirma o sertanista, que crê na possibilidade de a morte ter sido provocada pelos próprios militares.
As reações dos indígenas motivavam novas investidas dos militares. Segundo o relatório, o General Gentil Paes assinou, em novembro de 1974, uma ordem –decidida em conjunto com lideranças da Funai– na qual determinou aos subordinados que, caso avistassem índios, realizassem “pequenas demonstrações de força”, “mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite.”
As táticas foram defendidas publicamente pelo sertanista Sebastião Amâncio da Costa, responsável pela frente Waimiri-Atroari, que em entrevista ao jornal “O Globo”, em janeiro de 1975, reafirmou os procedimentos, acrescentando que os métodos empregados incluiriam o uso de “bombas de gás lacrimogêneo, granadas e o confinamento dos chefes dos índios em outras regiões do país.”
Após as declarações, Amâncio foi substituído por Apoena Meirelles, que meses depois de assumir o posto fez um desabafo ao jornal “O Estado de S. Paulo”: “os índios enfrentam hoje os mais sérios problemas: é a estrada que corta a sua reserva, proliferando o ódio e a sede de vingança contra o branco invasor, foram os assassinatos praticados pelos funcionários da Funai durante os dois últimos conflitos”, disse o antropólogo.
“Os Waimiri-Atroari tombaram no silêncio da mata. Foram sutilmente enterrados e esquecidos no espaço e no tempo”, acrescentou Apoena, que foi afastado do cargo após das declarações.
O general do Exército Altino Berthier Brasil dedicou o seu livro de memórias sobre a construção da BR-174 aos waimiris e comparou as ações militares contra os índios aos métodos empregados pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. “Tive o privilegio de perceber, sentir e registrar os efeitos daquelablitzkrieg (tática de guerra dos militares nazistas) sobre um território desconhecido, enxotando um povo perplexo, que reagia violentamente ante a desestruturação de sua célula familiar e de seu universo telúrico.”
“Quase todos são órfãos”
O sertanista José Porfírio de Carvalho, que participou, desde 1967, da frente criada para a construção da BR-174, hoje é coordenador do Projeto Waimiri-Atroari, criado pela Eletronorte –o território dos waimiris é o único em todo o Brasil que não está sob responsabilidade exclusiva da Funai.
Porfírio mora em Brasília, mas visita os waimiris mensalmente. Uma das principais testemunhas do que ocorreu com o povo indígena, o sertanista afirma que chegou a acreditar que eles haviam sido extintos. “Em 1979, cheguei a dizer que não existiam mais waimiris. Não se os via mais, não se conseguia encontrá-los na mata. Achei que tinham sido exterminados.”
De acordo com ele, os indígenas não gostam de comentar sobre a violência a que foram submetidos durante o regime militar. “Eles não querem falar muito sobre, e eu respeito. E eles também têm medo de falar desse assunto porque nós somos da tribo dos que os atacaram, certo?.”
Quando estão só entre eles, no entanto, o assunto vem à tona. “Eles se referem aos avós com muita emoção. Até hoje eles guardam uma raiva grande dos militares. Quase todos são órfãos. A maioria dos velhos morreu.” Segundo o sertanista, os waimiris souberam recentemente que o caso deles será investigado pela Comissão da Verdade, mas não se empolgaram
“Eles me perguntaram: ‘se forem encontrados os assassinos, o que vai acontecer com eles?’ Respondi: nada. Então, para eles, não vale a pena falar”, contou Porfírio, que relatou o que testemunhou no livro “Waimiri-Atroari: a história que ainda não foi contada”, lançado em 1980. Por conta da obra, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional e preso por três meses.
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http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2012/11/12/comissao-da-verdade-apura-mortes-de-indios-que-podem-quintuplicar-vitimas-da-ditadura.htm
Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.