Raffaele Guariniello: O promotor que condenou na Itália os donos da Eternit defende o banimento do amianto

Entrevista a Paolo Manzo

Se o Supremo Tribunal  Federal do Brasil pedisse uma  opinião a Raffaele  Guariniello, promotor  em Turim, na Itália, antes de decidir sobre  a liberação  ou não do uso de amianto  no País, obteria a seguinte  resposta:  ‘A história  do amianto  é um pouco  a história da estupidez  humana  ‘.

Guariniello  fala de cátedra.  Graças  à sua investigação  foram condenados a 1ó anos de prisão dois dos mais importantes  empresários do setor: o suíço Stephan  Schmidhieny, dono da Eternit, e o belga Jean  Louis Marie de Marchienne.  “O julgamento  na Itália foi um marco  histórico  que, espero,  a Justiça brasileira decida  seguir”,  afirmou o promotor a CartaCapital.  “os dados são inequívocos: o amianto  causa mesotelioma,  um câncer mortal,  mesmo  em quem aspira  uma pequena  quantidade  do produto.”  Segundo a Organização  das  Nações Unidas,  o amianto mata anualmente  cerca de 110 mil indivíduos em todo o mundo. No fim de outubro, o STF começou a discutir  se permite  o “uso controlado”,  como querem  os fabricantes, ou mantém as leis estaduais que baniram o produto  usado principalmente  em telhas.

CartaCapital:  o senhor afirma:  a historia do amianto é um pouco a história  da estupidez humana. Por  quê?

Raffaele  Guadniello:  Diante  de provas contundentes como as que temos  colhido  na Itália,   que mostram  como o asbesto provoca o câncer, permitir, como  se discute  no Brasil, o “uso controlado” dessa substância em absoluto  não me convence.

CC:  No Brasil ainda  existem mais de dez empresas que produzem  amianto,  com um volume de negócios enorme  e fortes ínteresses econômicos.

RG: Nada é mais importante  do que  a saúde humana. Por causa  disso,  preparamos na Itália um segundo  processo, chamado Eternit Bis, no qual nos ocuparemos  também de casos de cidadãos italianos que trabalhavam  na filial dessa companhia no Rio de Janeiro.

CC: O que aconteceu  com  eles?

RG: Voltaram  para a Itália  e, infelizmente, morreram  pouco  depois.

CC: Como o senhor  conseguiu  obter os dados do BrasíI?

RG: Você é muito otimista (risos). E verdade que fiz um pedido  de rogatória  internacional  ao Brasil, para conhecer  os nomes dos trabalhadores,  as condições em que lidavam  com o amianto e para ter acesso  aos certificados  médicos com os diagnósticos de mesotelioma.  Infelizmente,  a grande  quantidade  de documentos que recebi  até agora  não incluem nada do que eu esperava e pedi.

CC: Em qual sentido?

RG: Na Itália criamos, por exemplo,  um observatório  para registrar e acompanhar os problemas  de saúde  dos trabalhadores que tiveram contato  com o amianto.  Todo médico  é obrigado  a informar  imediatamente, por meio de um relatório,  quando ele considera existir  um crime relacionado com  as condições  de trabalho  e, neste caso, um mesotelioma  ou seja um câncer de amianto.  Os dados,  portanto,  estão disponíveis tanto para fins estatísticos, a exemplo do processo da Eternit, quando para basear  medidas judiciais.  Ao lado da independência do Poder  Judiciário,  esta foi a arma para condenar os chefes da Eternit. Infelizmente, esse sistema  de controle ainda não existe no Brasil. E isso pode  ser constatado  a partir  das respostas  que recebi após meu pedido  de informações.

CC: Que  conselho o senhor daria para sanar essa lacuna e evitar que o amianto  continue a produzir vitimas inocentes no Brasil?

RG: Meu  conselho  é que se focalizem  nos tumores provocados pelo asbesto  e, até que não haja também no Brasil  um observatório sobre as vítimas do trabalho, que pesquisem nos  arquivos dos hospitais nos municípios.

CC: Quantas  foram as vitimas  do amianto em Casale Monferrato,  a cidade de 15 miI habítantes,  perto de Turim, que até 1980 sediou a maior fábrica  da Eternit na ltalia?

RG: Identificamos  até agora 3 mil óbitos por asbesto, mas  o problema  é que continuam a ser registradas, em média,  50 mortes  por ano. Além disso, e esse é o fenômeno  mais recente, há algum  tempo começaram  a morrer muitos  cidadãos  que vivem perto das fábricas e não  só ex-trabalhadores.  Estes, infelizmente,  estão  quase  todos mortos.

CC: Quais foram as consequências  da condenação de Schmídheiny,  o dono da Eternít, e de Marchíenne?

RG: Infelizmente,  até  agora  a ltália é o único país do mundo  que condenou  as lideranças  da Eternit  que sabiam claramente ser  o asbesto uma substància letal.  E difícil acreditar,  mas existem  cidadãos  como o analista Edward  Luthvak, que em entrevista ao 11 Gíornale  (diário de propriedade do ex-premier Silvio Berlusconi),  me acusou  de pertencer a uma “casta judicial” e de representar  um “perigo” para a Itália.

Por incrível  que pareça  para  esse tipo de cidadão,  ao conduzir  o processo  da Eternit eu contribuí  para a crise econômica  da Itália. Ao  contrário,  pois espero  e acredito que  o processo  vai servir  para salvar  vidas no mundo,  a começar  por países  como China,  Índia e Brasil,  que produzem  e utilizam o amianto  em grandes quantidades.

CC:  Mas os efeitos  da sua iniciativa ainda continuam  restritos, certo?

RG: Sim. Após  a sentença  assisti  a um documentário na tevê que mostrava  um empresário  indiano.  Esse senhor,  após ter “descoberto”  que para os telhados  das casas dos  pobres as coberturas de Eternit  seriam “boas”, comprou toda  a maquinaria  da Fibrocig uma fábrica para a produção  de artigos de amianto  em Bari, no sul da ltália,  e começou a fabricar  telhados de asbesto  em seu país. A minha esperança  é que, em vez da internacionalização  “da morte”,  venha  a internacionalização “da vida”,  e que  se faça a prevenção contra  o mesotelioma  e todos os cânceres  ligados  ao uso desse produto.

CC: O senhor tem um  sonho?

RG: Mais que um sonho, tenho uma proposta:  as grandes organizações  internacionais, a começar  pelas Nações Unidas  e pela Organização  Mundial de Saúde, precisam tomar medidas para monitorar  em cada um dos  países  membros  os casos  de câncer causados  pelo asbesto. Alguns países já o proibiram. Espero que o Brasil possa  ser o próximo. O importante,  porém, é falar sobre esse tema. Fundamental é informar os cidadãos. Mesmo  que  a batalha esteja apenas no começo,  rezo para que,  tanto na Itália quanto no Brasil,  se lute pela vida.

CARTACAPITAL  14 DE  NOVEMBRO

Enviada por Fernanda Giannasi pra Combate ao Racismo Ambiental.

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