Em memória do Professor Ticuna Constantino Ramos Lopes – Fupeatucü

Sirlene Bendazzoli

Em 19 de outubro deste ano de 2012 faleceu a grande liderança ticuna Constantino Ramos Lopes. No mesmo momento em que fui visitá-lo na sua casa na cidade de Benjamim Constant/AM, ele despedia-se de seus familiares na aldeia São Francisco. A dor pela perda desse incomparável companheiro de luta trava as nossas palavras, todas elas por demais fracas para expressar a dimensão da sua falta, o exemplo de sua competência, o compromisso e a combatividade dedicados à luta pela terra e pela escola específica do povo ticuna.

Constantino levou em seu corpo as balas disparadas pelos assassinos responsáveis pelo Massacre do Capacete em 1988 que deixou cerca de 40 ticunas mortos, feridos e desaparecidos nas águas do Rio Solimões, entre eles diversas crianças. Foi sobre esse processo que pela primeira vez no Brasil se assentou a jurisprudência de crime de genocídio; mesmo assim e sendo as apurações cobradas pelo Cimi, OAB, UNI, comissões de deputados e organismos internacionais, o madeireiro mandante e seus 14 capangas somente foram condenados 13 anos mais tarde sendo, posteriormente, suas penas reduzidas.

Divulgando a cultura ticuna e buscando apoio e recursos para a demarcação da terra, Constantino percorreu diversos paises da Europa. Essas parcerias favoreceram o desenvolvimento de diversos projetos de arte e educação promovidos pela Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngues – OGPTB, da qual foi um dos fundadores e presidente entre 2004 e 2008. Constantino também foi criador e monitor do Museu Magüta premiado internacionalmente. 

Participou dos primeiros cursos de nivelamento oferecido pelo Campus Avançado do Alto Solimões na década de 1970.  Na década de 80 atuou junto a equipe da OPAN e do Museu Nacional organizando os professores indígenas, então leigos, para participarem dos cursos que tinham como objetivo a valorização da língua e da cultura ticuna. Junto aos velhos e narradores tradicionais elaborou os primeiros dos muitos livros escritos em língua ticuna e que guardam uma pequena parte da imensa riqueza da cultura do seu povo e do seu território.

Numa época na qual não havia legislação favorável, Constantino uniu os professores indígenas do Alto Solimões em torno da criação de curso de formação em magistério indígena com o respaldo das lideranças tradicionais dos povos Ticuna e Kokama. A OGPTB foi a única associação indígena autorizada pelo CEE/AM a ministrar curso de formação de nível médio/magistério e emitir diploma para os 200 professores indígenas formados em 2000/01. Essa dura batalha foi vencida por duas grandes figuras da educação entre os ticuna: Constantino Ramos Lopes e sua grande amiga e companheira de luta a professora Jussara Gruber que, com o projeto em mãos, percorreram órgãos governamentais nacionais e internacionais em busca de recursos para o curso e para construir o Centro de Formação Torü Nguepataü, referência no Alto Solimões.

Constantino foi representante indígena do Alto Solimões no Conselho Estadual de Educação Indígena do Amazonas e nas instâncias nacionais de representação dos professores indígenas. Foi personagem principal dos Encontros de Educação Ticuna reunindo MEC, SEDUC/AM e Semeds, nos quais os professores e lideranças indígenas exerceram sua persistência histórica na conquista de concursos específicos, nível médio nas aldeias, inserção da língua indígena nos boletins escolares e, acima de tudo, uma escola indígena que considerasse a cultura dos povos do Alto Solimões e seus modos próprios de aprender e ensinar.

Traduziu textos, colaborou na redação de livros didáticos ticunas, redigiu apresentações de livros produzidos por narradores tradicionais e, como especialista em língua ticuna colaborou na organização e apresentação da coletânea Ore i Nucümaü?gü?– Histórias Antigas.  Foi assessor e administrador do Projeto Educação Ambiental e Uso Sustentável da Várzea em Áreas Indígenas Ticunas do Alto Solimões que culminou na publicação, em 2006, do livro “Ngiã nüna tadaugü i torü naãne – Vamos cuidar da nossa terra” e na divulgação dos livros e 1.626 cartazes em mais de 100 escolas, centros comunitários de aldeias, sindicatos rurais e diversas instituições de saúde e meio ambiente.

Por onde se passava, as pessoas das aldeias ficavam muito alegres e animadas com o trabalho da OGPTB. Crianças, jovens, adultos e velhos iam para os lançamentos, e em muitos lugares as pessoas da comunidade preparavam vinho de açaí ou caiçuma para festejar. Os caciques falavam sobre os temas dos cartazes, da beleza das ilustrações, e assim surgiam muitas conversas entre os presentes sobre a necessidade de conservar as riquezas da várzea, das terras demarcadas, os problemas que existem, o que vem causando esses problemas e como podemos resolvê-los. Foi um trabalho muito emocionante, porque vimos a escola e a comunidade pensando junto os seus problemas ambientais. (Constantino Ramos Lopes, PIB, 2006, p.424)

Mas os professores indígenas queriam formação superior e muitos já assumiam as turmas finais do ensino fundamental e nas turmas de ensino médio que foram – a duras penas – abertas nas aldeias.  Com o projeto pedagógico de curso de licenciatura elaborado pelos professores e caciques, Constantino lançou-se na busca de uma instituição que o acolhesse. De 2003 a 2006 “numa luta muito cansativa” – conforme suas palavras – esperou pela resposta da UEA, chegando a ponto de exigir a devolução do projeto caso aquela universidade não o aprovasse.

Quando a aprovação do Projeto foi liberada em junho de 2006, restavam poucos dias entre a inscrição, realização do vestibular e início das aulas. Sob a orientação de Constantino Ramos Lopes, coordenador indígena do curso, os professores indígenas nas sedes dos municípios se organizaram e voluntariamente realizaram as inscrições, encaminharam os documentos e ajudaram na organização da preparação dos locais do concurso vestibular, uma vez que a Universidade não deslocou pessoal próprio para isso.

O Curso seguiu o rumo traçado pelos professores indígenas que sob a orientação de Constantino reenviaram ao MEC/CGEEI o projeto para o Prolind 2008. Porém a Universidade rompeu a parceria com a OGPTB excluindo não só a equipe pedagógica como o conjunto dos professores indígenas e diretoria da Organização das decisões, transformando um projeto único e original numa mera repetição dos cursos de curta duração destinados a não-índios.

Professora Sirlene, a professora Márcia e o Professor Sebastião, me falaram no dia 13/06/2008 de que o curso tomará outro rumo. Outra coisa que disseram é que só alguns professores poderão vir para o curso, não mais aqueles que vinham, porque a UEA que vai decidir pela escolha dos professores, foi essa a outra informação que me passaram. Abraços. Constantino Ramos Lopes

Desrespeitada a autoria e a competência dos professores indígenas dentro do Centro de Formação Torü Nguepataü, dentro mesmo da terra indígena onde o curso foi ministrado, não mais vieram os velhos, as artesãs, os caciques. Cansado, Constantino recusou-se inclusive a participar da ridícula festa de formatura que deixou nos bancos os caciques e colocou todas as “autoridades” não indígenas na mesa. A festa esperada era outra e daquela encenação ele se recusou a participar.

Aluno perspicaz era o melhor parceiro que nós docentes poderíamos desejar ter em sala de aula. Interlocutor privilegiado articulou-se com grandes indigenistas, professores, promotores da arte e cultura indígena no Brasil e no exterior, mantendo sempre a matriz ticuna como referência de força e persistência. Nos diversos espaços onde atuou levou a voz, a língua, a arte, a cultura do tão numeroso e tão pouco lembrado povo ticuna. Sua serenidade e combatividade são exemplos para todos os professores indígenas e para todos que aprenderam a admirar e respeitar os Ticuna e o professor Constantino como um de seus mais brilhantes representantes.

Comments (2)

  1. Obrigado pela sua luta de abrir caminhos portas para nossa futuro
    A sua luta é valido nos olhares de todas das comunidades escolar indígenas – Largar uma força total para defesa do seu povo, não é facil, mas você é um lutador valente e devorador do nosso diferente e conseguiu. Quero te dizer, que seja brilhante no lugar onde estará. Nós continuaremos carregar a bagagem que voce deixou, mantendo de se mobilizar pelos nossos direitos.

  2. Luta de um lider é realmente incasavel é uma luta para defesa do seu povo, simboliza invensivel, mas isso custa um souor na vida do ser humano.

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