Afrocentricidade em questão

Trazer ao Brasil o Dr. Molefi Kete Asante – um dos maiores intelectuais negro do mundo, foi sem dúvida uma façanha da organização da 10ª Edição do Copene, encontro de intelectuais negros ocorrido em Santa Catarina. Asante foi criador do primeiro programa de doutorado no mundo sobre o continente africano, autor de mais de 200 artigos acadêmicos e fundador do movimento filosófico da Afrocentricidade e do Instituto Nacional Afrocentricidade. Asante se formou na Universidade da Califórnia, trabalhou como jornalista no Zimbábue, foi membro de diversas instituições acadêmicas, discursou em mais de 250 campus, debateu com os conservadores brancos e negros sobre questões como a afrocentricidade, o multiculturalismo e a educação antiga, entre outros. Poeta, dramaturgo e também pintor, Molefi Kete Asante é o maior escritor afro-americano, com mais de 70 livros publicados sobre os mais variados temas. Segundo Elisa Larkin Nascimento, que nos auxiliou nessa entrevista, Asante estava pensando coisas parecidas quando Abdias Nascimento desbravava a questão racial no Brasil.

O que é exatamente afrocentricidade, palavra bastante usada no seu trabalho? 

A afrocentricidade é a teoria que diz que os povos africanos têm que ver o mundo desde sua própria perspectiva, o que significa que a pessoa africana, em todas as situações, é um agente sujeito da sua própria experiência, não só nas margens da Europa. Durante 400 anos, os povos africanos têm sido removidos de estar no centro da sua própria experiência. A afrocentricidade é uma perspectiva que permite aos povos africanos se relocalizarem ao centro de sua própria experiência.

De que forma essas experiências podem impactar no cotidiano da diáspora africana?
Não há nada mais correto para os povos africanos ou pessoas africanas no Brasil, Colômbia, Estados Unidos, Jamaica e África, do que a nossa própria experiência histórica. Se nós estamos engajados no processo de maturidade, então precisamos estudar a nossa própria cultura, a nossa filosofia, precisamos honrar nossos ancestrais, precisamos respeitar as tradições filosóficas que durante milhares de anos produzimos. Não podemos simplesmente jogar isso fora, mas a experiência da escravidão, escravatura do colonialismo, o idealismo nos colocaram longe de nós mesmos, ficamos desorientados e, consequentemente, nos tornamos imitações da Europa. A afrocentricidade é um projeto para a sanidade, para resgatarmos esse orgulho milenar que o processo do escravismo desvirtuou.

A experiência brasileira na criação de núcleos negros nas universidades é recente, tem pouco mais de uma década. E nas universidades americanas, como foi a criação desses núcleos?
Nos Estados Unidos o gesto inicial de criar os departamentos de estudo afro-americanos foi contra o sistema, porque normalmente os departamentos são criados pelo corpo docente, mas esses foram criados pelos estudantes que, depois de passar pela universidade, rejeitavam as doutrinas disciplinares convencionais racistas, como estudantes da Universidade de Califórnia, em Los Angeles. Eu estava junto dos estudantes, que acreditavam que precisávamos de uma educação mais relevante, queríamos aprender sobre os filósofos mortos brancos, mas queríamos também aprender sobre os filósofos negros, queríamos aprender sobre teorias psicológicas do mundo ocidental, mas nós nos perguntávamos: “onde estão as teorias africanas?” Queríamos aprender a literatura do mundo ocidental e também a literatura do mundo africano. Não havia espaço para isso na tradição acadêmica antiga, surgiu daí a ideia em cima da necessidade de criar esses núcleos.

Mas vocês tiveram a experiência de universidades negras com mais de 100 anos. Como se dava as disciplinas e a política neste campo, dentro dessas universidades?

Você tem razão. Quando iniciamos esse movimento, já tínhamos sim as faculdades e universidades tradicionalmente negras, mas todas eram semelhantes às instituições convencionais, pois imitavam as faculdades e universidades “brancas”, que não eram revolucionárias. O grande poeta da negritude era professor da Howard Universty, em Washington DC e ele se perguntava: “Isso aqui é uma plantação ou fazenda colonial?” Só agora estamos vendo algumas dessas faculdades negras seguirem o conteúdo que nas instituições mais convencionais tem sido implantado para novos estudos afro-americanos.

Concretamente, o que o grupo que o senhor liderava nos anos 60 e 70 reivindicava nessas universidades?
Queríamos que as nossas universidades nos dessem umas respostas, não só a nossa diversidade, mas também as nossas ideias, opiniões e diversos conceitos próprios. Não havia razão para que Duke Ellington, por exemplo, um compositor musical com três mil obras, não fosse estudado nos departamentos de música. Você podia se formar, se graduar em música e nunca ter ouvido falar de Duke Ellington – o compositor mais produtivo da história da música americana. Perguntamos na área da música qual é a relevância desse diploma. Em todos os campos era a mesma coisa, muitas universidades pediram para desenvolver bibliografias e programas, porque os professores brancos nunca tinham se informado nessa área, eles não conheciam essa história, nós tivemos que desenvolver isso.

Mas fazer esse tipo de mudança não é ir contra toda a tradição, o formato e a ideologia da academia?
Marcus Garvey, um dos grandes ativistas e intelectuais americanos, disse que o mundo branco promove suas ideias na base do chute, na base do blefe. O formato acadêmico é o blefe, podemos criar esses formatos de qualquer discurso, de qualquer cultura, desde a China, Índia, África… Nós somos todos seres humanos que temos a possibilidade e habilidade de promover o pensamento avançado, mais o blefe é dizer que você não pode fazer isso, por que não aprendeu a maneira correta de fazê-lo, então, é uma estrutura imposta, o movimento dos estudos negros foi antiestrutural. O movimento sugere, por exemplo, que nós poderemos começar uma discussão de todo o pensamento da cultura clássica africana, da mesma maneira que os europeus começaram da Roma, da Grécia clássica, da mesma forma que os asiáticos começam com a China. Nesse trabalho está muito claro para nós que não era necessário seguir uma linha de pensamentos de que a Europa é particular.

Que se pode ter uma resposta diversa aos fenômenos humanos.
Sim, fazer as pazes ancestrais africanas ou europeias. A Europa pode aprender com a África, a Europa não é simplesmente o professor e nós os alunos. Nós todos podemos ser mestres e alunos nessa revolução, porque muitos de nós, negros nos Estados Unidos, nunca tínhamos visto a nós mesmos como os possíveis mestres, mas quando nós trouxemos o nosso conhecimento à mesa, vimos que ele não é inferior ao conhecimento que eles trouxeram.

Voltando um pouco ao “blefe” acadêmico branco, o senhor não acha que alguns negros na academia – mestres ou doutores – quando decodificam esses “blefes”, também reproduzem essa forma de impor o seu conhecimento?
Sim, claro, existe isso nos Estados Unidos, na África também, no continente europeu e no Brasil, em todas as sociedades onde você tem tido dominação branca sobre a academia, por que nós, como estudantes, procuramos fazer a nossa correria dentro dessa academia. Precisamos seguir os procedimentos e os formatos que eles criaram para esse sucesso, entretanto, aquilo que resiste, o indivíduo consegue criar uma nova maneira de abordar o conhecimento que nos traz revelação nova, como Abdias do Nascimento. Ele foi uma pessoa desse quilate, não só no Brasil como também nos Estados Unidos. Em muitos aspectos, talvez Abdias não tenha seguido o formato, estava colocado. Ele criou nos Estados Unidos e no Brasil novas correntes de pensamentos, partiu daquilo que estava dentro da cultura afro-brasileira e criou conceito como aquela história do quilombismo, que passa a ser um conceito da ciência social. Agora que uma pessoa branca nos Estados Unidos ou no Brasil quer falar desse conceito passa a fazer parte da corrente principal do discurso africano. O quilombismo é uma ideia intelectual, é importante dizer que o que ele fala não é referente apenas aos fenômenos dos quilombos das comunidades, é uma proposta para a organização do estado brasileiro da nação.

O senhor não acha que a pressão do mundo acadêmico, os prazos, as tarefas e a atmosfera eurocêntrica o tempo todo fazem embranquecer qualquer teoria?
Eu recebi uma educação boa, como de um menino branco e passaram muitos anos para limpar a minha mente daquela coisa, por que eu estava no caminho de ficar igual a uma dessas pessoas padronizadas negras, por estar separando a minha própria cultura e história do interesse do meu povo. É isso o que acontece, é isso o que faz esse ensino com você. A maneira que eu me reorientei, tive que ler e estudar sobre Luiz Gama, Luiza Mahin, João Cândido, voltar a esse aí para aprender e reaprender.

Por isso a importância de reforçar esses núcleos?

Sim, sem dúvida, ainda mais porque nossas crianças, nossos filhos precisam de confiança, eles também têm que chegar ao mundo com o conhecimento de quem eles são e quem foram os seus ancestrais, saber que esses são valores importantes de conhecimento e que não são cidadãos de segunda classe.

Quando o senhor fala em crianças, estamos falando em ensino fundamental e ensino médio. Como trabalhar esses conceitos? No Brasil existe uma lei direcionando o ensino afro para esse público.
Vamos começar com ensino fundamental para depois chegarmos à universidade. Eu também sou consultor de 12 escolas nos Estados Unidos, na educação básica no Brasil, seria muito útil para todos os alunos ter uma disciplina com alguns fundamentos africanos desde a pré-escola até o ensino secundário. As crianças podem ser introduzidas primeiramente aos heróis nacionais e eventos significantes da história afro-brasileira, no nível de livros, jogos, esse tipo de coisas. No ginásio, deve ter uma introdução às grandes civilizações africanas no Egito, em Gana, Mali e Sungai, uma introdução ao mundo pan-africano, os africanos no Uruguai, Peru, Equador, na Colômbia, Guiana, no Caribe e no continente africano. Aí, no final do ensino secundário, pode ser uma introdução aos assuntos mais sérios envolvendo o continente africano na sua relação com o restante do mundo. É isso que estamos propondo nas escolas dos Estados Unidos.

Gostaria que o senhor desse um panorama sobre o COPENE 2012.
Esta reunião é única nos tempos contemporâneos, temos gente do Uruguai, Peru, Costa Rica, Jamaica, África, França, Estados Unidos, de vários outros lugares aqui reunidos e isso faz com que o Brasil avance, impulsione uma posição de liderança que já deveria ter tido há muito tempo. Vocês têm aqui o dobro de números de africanos do que nós temos nos Estados Unidos, vocês precisam assumir a sua liderança. Se fizerem isso, jamais deixarão essa posição. Esse é o destino de vocês no mundo!

fonte: Raça

Afrocentricidade em questão

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