Frei Marcos Sassatelli*
No dia 19 do mês de outubro deste ano, cinco mil cruzes foram colocadas no gramado da Esplanada como protesto em defesa dos índios Guarani Kayowá. Na “Carta da Comunidade Guarani Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil”, os índios (um grupo de 170: 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) declaram, com firmeza e sem medo, que irão resistir até o fim à ordem de desocupação (processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro/12, da Justiça Federal), para defender seus direitos.
Afirmam que – pelas informações recebidas – sua Comunidade “logo será atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de Navirai-MS” e, corajosamente, denunciam: “fica evidente para nós que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay”.
Dizem ainda: “Entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas vidas”.
Manifestam, pois, sua decepção: “Queremos deixar evidente ao governo e à Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira”. E perguntam: “A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós”.
Depois, sempre com firmeza, declaram: “Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas”.
Continuam denunciando: “Estamos sem nenhuma assistência, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários dos nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados”.
Demonstrando estar dispostos a dar a vida na luta por seus direitos, afirmam: “Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui”. Enfim, declaram: “Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime”. Que exemplo de altivez e dignidade humana! Que vergonha para a Justiça Federal! A Carta foi amplamente divulgada na mídia nacional e internacional.
Diante de interpretações equivocadas da Carta dos índios Kaiowá e Guarani de Pyelito Kue-MS, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) entende que “não há menção alguma sobre suposto suicídio coletivo, tão difundido e comentado pela imprensa e nas redes sociais. Leiam com atenção – diz o CIMI – o documento: os Kaiowá e Guarani falam em morte coletiva (o que é diferente de suicídio coletivo) no contexto da luta pela terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem todos nelas, sem jamais abandoná-las. Vivos não sairão do chão dos antepassados. Não se trata de suicídio coletivo!”.
A situação descrita chama a atenção para conflitos envolvendo a etnia Guarani Kaiowá, o segundo maior agrupamento indígena do Brasil. Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), são cerca de 45 mil pessoas da etnia espalhadas em pequenas áreas, principalmente no sul do estado de Mato Grosso do Sul. De acordo com a Funai, a disputa em Pyelito Kue não é um caso isolado. Comunidades Guarani Kaiowá de toda a região enfrentam graves problemas e ameaças à vida.
O MPF e a Funai recorreram contra retirada de índios de fazenda em MS. Finalmente, depois de muita luta e mobilização, em 30 de outubro (portanto, há dois dias), foi suspensa a liminar que determinava a retirada do acampamento dos índios Guarani Kaiowá, até que a demarcação de suas terras seja definida. Esperamos que a decisão da Justiça seja mantida (contra possíveis recursos) e a demarcação da terra indígena seja agilizada. “Essa tekoha (terra sagrada) é nossa. Meu avô e meu tataravô estão enterrados lá” (Solano Pires, líder Guarani Kaiowá).
Flávio Vicente Machado, coordenador regional do CIMI, afirma que os constantes conflitos por terra entre índios e fazendeiros têm provocado o aumento da violência nas comunidades. “A situação chegou a esse ponto devido à omissão do Estado brasileiro. A Carta (da Comunidade Pyelito Kue) traz o anseio de todo um povo, um povo que está sendo assassinado pela omissão do governo”. E conclui dizendo: “Os algozes dos índios estão no Mato Grosso do Sul e em Brasília”.
O governo federal não pode continuar submisso aos interesses dos fazendeiros gananciosos (tornando-se conivente com eles), mas precisa tomar as devidas providências, em favor dos direitos dos índios. A esperança nunca morre!
Leia, na íntegra, a Carta dos índios, a Nota do CIMI e outras informações sobre as barbáries praticadas contra os índios (como a do dia 24 do mês de outubro deste ano contra a jovem M.B.R.) em: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=6578.
Leia também, na íntegra, a Nota da Funai: em: http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2012/10/mpf-e-funai-recorrem-contra-retirada-de-indios-de-fazenda-em-ms.html.
“Estamos fazendo esse ato para dizer que muitas lideranças já foram mortas, derramaram sangue pelas suas terras, mas não queremos mais isso. Já decidimos coletivamente, não vamos sair das terras (…)” (Eliseu Lopes, líder indigenista). Em: http://folhadoprogresso.com/portal/?pg=not%EDcia&id=5143.
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*Frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP).
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7795:politica021112&catid=25:politica&Itemid=47