Jean Lave na Comunidade Dandara? Vejamos. A Dandara começou como ocupação, mas se tornou uma comunidade. Na madrugada do dia 9 de abril de 2009, plena quinta-feira da semana santa, cerca de 130 famílias sem-casa, organizadas pelo MST e pelas Brigadas Populares, com o apoio de uma Rede de Solidariedade, ocupou um terreno – 360 mil metros quadrados -, no bairro Céu Azul, na região da Nova Pampulha, em Belo Horizonte, MG.
Ao entardecer do 1º dia, quando as famílias já tinham se espalhado por todo o terreno, a tropa de choque da Polícia Militar chegou e, com grande aparato bélico e truculência, encurralou o povo em um dos cantos do terreno. Houve risco de massacre, muita tensão. O povo resistiu. A notícia da ocupação ocorrida se espalhou por Belo Horizonte através da TV Record e de várias rádios. Centenas de famílias sem-casa e sem-terra começaram a chegar à ocupação Dandara em busca, inicialmente, de um pedaço de terra para tentar construir uma casinha para morar.
Um déficit habitacional de mais de 100 mil moradias só na capital mineira empurram famílias para a cruz do aluguel, para sobreviver de favor em favelas, em áreas de risco ou nas ruas.
No 5º dia após a ocupação já eram 1.200 famílias que passaram a sobreviver em 1.200 barracos de lona preta. Desencadeou-se assim um importante processo educativo, de formação, misturado com lutas cotidianas em busca de terra e casa para viver com dignidade. Estava nascendo uma comunidade de prática, na linguagem de Jean Lave.
Primeiro passo dado foi cadastrar o povo e organizá-lo em grupos de famílias. Cada barraca recebeu um número. Cerca de 50 Grupos de famílias receberam a tarefa de se reunir todos os dias em horários combinados com todos, discutir todos os assuntos relativos à vida na ocupação, tais como, escolher democraticamente pessoas para integrar as diversas equipes que tiveram que ser organizadas na ocupação. Militantes das Brigadas Populares, do MST e da Rede de Apoio assessoravam todos os grupos, mas sempre envolvendo todos na corresponsabilidade pela gestão do acampamento. Todas as questões eram discutidas nos Grupos de Famílias, depois na Coordenação Geral e, finalmente, deliberada por todos em Assembleias Gerais. Assim, por exemplo, se constituiu um Regimento Interno para a comunidade.
Começamos a perceber o que Jean Lave defende: que a aprendizagem não é basicamente uma questão cognitiva. A experiência concreta, o assumir tarefas na gestão da ocupação e o fato de participar de uma comunidade se tornaram fatores de um intenso processo educativo.
Pessoas que nunca tinham sido respeitadas na sua dignidade, ao assumir tarefas e passar a responder por elas começaram a melhorar a estima própria. Pouco-a-pouco as pessoas – todas aprendizes naquela “comunidade” – começaram a entender que a forma de se autodefender dependia de todos. Todos ali constituíam uma grande corrente que tinha como o elo mais forte o mais frágil. Se um falhasse na sua responsabilidade afetaria negativamente toda a “comunidade”. Ao contrário, se todos (ou pelo menos, a maioria) cumprissem bem suas tarefas e responsabilidades toda a “comunidade” se fortaleceria.
A 1ª experiência de prática, de luta concreta, que fez muitos aprender a força da união foi quando a polícia, após encurralar todas as famílias que estavam dispersas pelo grande terreno, ameaçava expulsar todos do local. Um líder convidou todos a se abraçar e formar uma parede humana na frente da polícia. Assim, cantando e rezando resistiram e a polícia acabou desistindo de expulsar o povo naquele momento. Isso se deu também porque a Rede de Apoio chamou a imprensa que chegou e, caso houvesse violência, estava ali para mostrar para a sociedade. Não dava mais para expulsar sem a presença da imprensa.
Quando a polícia retirou-se o povo explodiu de alegria festejando a 2a conquista: não ser despejado. A 1ª foi ter tido a coragem de cortar a cerca de arame que cercava o terreno. Estava iniciando para centenas de pessoas uma “participação periférica legítima”.
As pessoas inseridas nas diversas equipes foram aprendendo e ensinando em um processo de verdadeira troca e transformação. A equipe de alimentação, por exemplo, coordenava a entrega das doações que começaram a chegar trazidas por pessoas e entidades que apoiavam a causa. Ao ver com os próprios olhos a solidariedade manifestada por tanta gente, muitos se emocionavam e diziam: “não estamos abandonados. Há muita gente que se preocupa conosco e que nos ajuda.” As relações tecidas no contexto – inúmeras e imprevisíveis – acabam tendo uma incidência no processo de aprendizagem. Aqui vejo Jean Lave de novo.
Hoje, após 3,6 anos de caminhada, de processo educativo e de luta pela organização interna e lutas para fora resistindo ao despejo percebemos que muitas lideranças se formaram e estão participando ativamente de lutas apoiando outras comunidades marginalizadas. Muitas pessoas dizem:
“Eu era egoísta, fechado no meu próprio umbigo. Ao chegar aqui na Dandara, eu sonhava apenas em conquistar moradia própria, mas, hoje, percebo que o sentido da vida está em ser solidário e lutar pela construção de uma cidade e de uma sociedade que caibam todos. Hoje, faço parte de uma família: a Comunidade Dandara.”
O depoimento, acima, encontrável em muitas pessoas que fazem parte da Comunidade Dandara revela que a aprendizagem se deu de forma situada, numa comunidade de prática e por participação periférica legítima, combinando pessoa, cultura e mundo social. Vejo nitidamente a análise de Jean Lave acontecendo na Dandara. Por exemplo, de não participação a participação periférica até chegar a participação plena que não pára. É óbvio, que no caso da Comunidade Dandara, muito mais do que habilidades, o que se aprendeu (e se continua aprendendo) é viver em comunidade, crescendo na arte da convivência social, na luta pelos próprios direitos.
A Comunidade já realizou cinco grandes Marchas da Dandara até o centro de Belo Horizonte. Mais de mil pessoas da comunidade marcharam 25 quilômetros a pé. Cantos e gritos de luta entremeavam a manifestação de todos, com faixas, sob um raio de luz que fez o horizonte da capital mineira ficar mais belo. Moradores/ras de Dandara – aprendizes em um processo educativo situado – se revezavam ao microfone dando seu testemunho sobre a justeza da luta de Dandara. Muita gente ouviu, em alto e bom som:
“Somos 1.000 famílias de Dandara e já construíram com fé, coragem e muita luta nossas casas de alvenaria.” “Não aceitaremos ser despejados!” “O terreno ocupado pela Comunidade Dandara estava abandonado há quatro décadas.” “A construtora Modelo devia (ainda deve?) mais de 2 milhões de reais em IPTU.” “Proprietário que não cumpre a função social perde a propriedade.” “Dandara luta pela construção de uma cidade (e sociedade) que caiba todos e todas.” “Povo organizado jamais será pisado.”
Em um contexto de liberdade de expressão onde todos são animados a serem corresponsáveis pelo processo que está em curso, é bonito ver como as pessoas vão se desinibindo (um aprendizado) e descobrindo jeitos novos de ser, antes desconhecidos. Intuo que a “Aprendizagem Situada”, defendida por Jean Lave referenda isso também.
Uma criança dandarense, a Ingrid, ao lado de outras crianças, pediu o microfone. Cantaram “Oh Dandara, oh Dandara oh, a nossa luta aqui vale mais que ouro em pó…” Uma criança dandarense discursou conclamando todos a lutar até o fim pelos nossos direitos. Dizia:
“Antes de Dandara, a gente vivia humilhado. Na Dandara, levantamos a cabeça e vivemos com dignidade. Lá vivemos em comunidade. Não aceitaremos jamais despejo. Quero fazer outra denúncia aqui: A Escola estadual Manoel Costa disse para minha mãe que eu não poderia estudar lá por falta de vaga. Outra colega minha foi lá e conseguiu vaga após eu receber um não. A maioria das crianças da Dandara está indo estudar em escolas de Ribeirão das Neves. Temos que subir morro e descer morro para chegar à escola. Estudamos, porque temos interesse e nossos pais nos incentivam. Mas a diretora precisa fazer uma reforma na escola e o Governo Estadual demorou mais de um semestre para repassar o dinheiro…”
Na Dandara vejo muitas ressonâncias da “Aprendizagem Situada” preconizada por Jean Lave e Etienne Wenger. Lá percebo que, de fato, a aprendizagem acontece como algo inerente à prática social. Não pode ser algo isolado do contexto social vivenciado pelo/a aprendiz. A prática social é o foco central. Os autores propõem que a aprendizagem é um processo de participação em comunidades de prática, participação que é, primeiro, periférica e legítima, mas que aumenta gradualmente em engajamento e complexidade.
O território de Dandara, ao ser ocupado em 9 de abril de 2009, estava abandonado e não produzia nada. Hoje, em centenas de hortas nos quintais das 800 casas de alvenaria já construídas alimentos são produzidos e, acima de tudo, conforme dizem algumas pessoas de Dandara, “o que mais Dandara produz são pessoas”, porque ali quem antes eram coisificado passou a ser respeitado na sua dignidade e se tornou sujeito, protagonista de um viver mais humano. “É convivendo numa comunidade de prática que se aprende”, diria Jean Lave.
Enfim, um significativo processo de aprendizagem situada continua em curso na Comunidade Dandara, com ambigüidades e contradições, é claro. Isso acontece na trama complexa e, muitas vezes imprevisível, entre pessoa, mundo social e prática e se dá por participação periférica legítima em comunidades de prática, onde gradativamente o/a aprendiz vai se envolvendo até chegar a participação plena adquirindo identidade que se constitui no dia a dia da luta que não acaba.
Bibliografia: LAVE, J., WENGER, E., aprendizaje Situado, Participación perifética legítima, Universidad Nacional Autônoma de México, Facultad de Estúdios Superiores, Iztacala, 2003, p. 1-32.Belo Horizonte, 18 de julho de 2011.
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*Frei e padre carmelita. Mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), do Serviço de Animação Bíblica (SAB) e Via Campesina. Autor de alguns livros: Compaixão-misericórdia, uma espiritualidade que humaniza (Ed. Paulinas, 1996), Lucas e Atos, uma teologia da História (Ed. Paulinas, 2004) e co-autores de vários livros do CEBI.