Beatriz Noronha, do Canal Ibase
A recente decisão da justiça brasileira de obrigar um grupo de centenas de indígenas do povo Guarani-Kaiowá a deixar uma área de fazendas em Iguatemi, Mato Grosso do Sul, fez eco entre os participantes na VII Plataforma Ibase, realizada na semana passada em Vassouras. O evento reuniu ativistas de movimentos sociais do Brasil e do mundo para discutir uma agenda comum de luta diante dos novos desafios planetários. Paulino Montejo, assessor da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), esteve lá representando os indígenas e conversou com o Canal Ibase.
Para Montejo, a situação dos índios no Mato Grosso é o resultado de uma longa história de descaso do Estado brasileiro com os direitos indígenas. A Constituição de 1988 trata, em seu capítulo VIII, das questões indígenas, seus costumes e terras. De acordo com o parágrafo segundo deste capítulo, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. O quinto parágrafo também estabelece que é vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo ad referendum do Congresso Nacional em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do país, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. “Mesmo com a legislação, os índios vêm sendo alvo de ameaças e violência. A lei do agronegócio em Mato Grosso, por exemplo, parece disputar importância com as vidas indígenas. Lá o caso é de violência extrema. Eles estão sendo atacados por todos os lados e isso é uma questão de todos nós”, disse Montejo.
Para o assessor, o efetivo cumprimento da lei de demarcação de terras evitaria recentes conflitos, poupando vidas – o que é imprescindível. “Se a Constituição de 88 que previa a demarcação de terras indígenas tivesse sido respeitada, a questão indígena agora estaria resolvida”, afirma.
Os índios Guarani-Kaiowá vivem conflito com produtores rurais pela disputa de terras que, de acordo com a Constituição Federal, há muito já deveriam ter sido demarcadas. O agronegócio tem influência no acirramento dos conflitos, já que as cadeias produtivas da soja e da cana possuem atividades em terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Duas usinas no estado, São Fernando e Raízen, se comprometeram a não mais comprar a cana produzida em áreas indígenas. “Essa é uma medida de responsabilidade socioambiental empresarial que não resolve o problema, mas deve ser entendida como um primeiro passo no reconhecimento dos direitos indígenas pelo setor produtivo”, observou Montejo. Segundo o assessor da Apib, é urgente que usinas sucroalcooleiras, de biodiesel, traders e cerealistas adotem a mesma postura.
Em 2009 ocorreu a homologação da área de Arroio Korá. A região foi o destino de cerca de 700 Kaiowá. Em agosto, os Kaiowá conseguiram retomar essas terras. No entanto, a demarcação de Arroio Korá foi questionada na Justiça pelos fazendeiros – a decisão final sobre o processo está parada no Supremo Tribunal Federal. A retomada da terra Potrero Guasu, em outubro, também sofreu com o ataque de pistoleiros. Os índios em Mato Grosso do Sul já foram vítimas de agressões, violências físicas e simbólicas de toda ordem. Depois da retomada de terras em agosto, o acampamento indígena foi atacado por pistoleiros. Em entrevista gravada em vídeo, o fazendeiro Luis Carlos da Silva Vieira, conhecido como “Lenço Preto”, declarou que tomaria frente em “uma guerra contra os indígenas”.
A crise instalada hoje em Mato Grosso do Sul representa para a Apib uma situação de desrespeito do Estado de Direito. “A pistolagem está instituída e não há reação em direção ao desarmamento”, declara Montejo. O assessor chama atenção para um quadro real de etnocídio. Montejo se inquieta e se mexe algumas vezes na cadeira quando comenta que “as políticas públicas precisam pagar essa dívida histórica com os povos indígenas, e pagar pela inversão de direitos”. Reforça que os povos indígenas foram expulsos de suas terras e agora querem apenas reaver seus direitos, em especial o direito sagrado à terra.
A comunidade indígena declarou que não sairá de suas terras, e se preciso for, permanecerá até a morte. Em carta, os indígenas falaram das condições desumanas a que estão submetidos, fruto da competição de terras com grandes produtores do agronegócio e de criação de gado. “A situação indígena em Mato Grosso do Sul é caso de direitos humanos, é da ordem do Estado, do judiciário, mas é também do cotidiano, da necessidade do desenvolvimento de uma solidariedade mútua”, disse Montejo. Para ele, falta uma sensibilização real da opinião pública, solidariedade e entendimento de um funcionamento orgânico da sociedade. “O que está em questão é a necessidade de reconhecimento. Não tem como um cidadão não perceber que o que está em curso é uma violação séria, de vida e de direitos de povos que historicamente são donos da terra”, exclama. “É preciso romper com o silêncio”, conclui.
Em nota no site da Secretaria Geral da Presidência da República, divulgada em 26 de outubro, o governo federal informou que “vem apoiando as comunidades indígenas através de ações de segurança alimentar, saúde, segurança pública e reconhecimento territorial através de seis Grupos de Trabalho que estão em campo”.
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