Batalha das ideias – Carlos Nelson Coutinho (1943-2012): um intelectual incomum

“Carlos Nelson Coutinho – marxista convicto e confesso, expressão do comunista peruano Jose Carlos Mariátegui com a qual se identificava – foi um intelectual incomum porque toda a sua produção desborda os muros da universidade”

Há 13 anos a Editora Expressão Popular vem contribuindo para a batalha das ideias e para o fortalecimento da cultura socialista em nossa sociedade. Nossa contribuição só foi possível por contarmos com a solidariedade e o compromisso de mais de 300 companheiros e companheiras que se juntaram a nós e fizeram/fazem parte deste processo através da cessão de direitos autorais, de trabalhos de revisão, editoração, diagramação, divulgação etc. Seguimos firmes nesta batalha e estamos buscando travá-la cada vez co mais afinco e em mais frentes.

Neste sentido, estamos inaugurando em nosso site a seção “Batalha das ideias”, na qual publicaremos textos de intervenção e de combate, com vistas a fortalecer a cultura socialista em seu mais amplo espectro. Primaremos por conteúdos que estejam para além tanto das discussões do que Antonio Gramsci bem definiu como “pequena política” quanto dos debates estritamente acadêmicos.O intuito desta iniciativa é apresentar de modo mais dinâmico temas que contribuam para uma melhor compreensão da nossa sociedade hoje com vistas a transformá-la, através de textos que recuperem os aspectos atuais do pensamento clássico da classe trabalhadora.

Em seu quarto texto, a seção homenageia o imprescindível Carlos Nelson Coutinho trazendo texto de Marcelo Braz publicado na Revista Retrato do Brasil, a quem agradecemos, no mês de outubro. Leia o texto:

Carlos Nelson Coutinho (1943-2012): um intelectual incomum

Marcelo Braz

Na manhã do último vinte de setembro morreu um dos pensadores mais destacados do Brasil. Carlos Nelson Coutinho, baiano de Itabuna, nascido a 28 de junho de 1943, graduado em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia em 1965, foi um dos maiores e melhores intelectuais brasileiros do último terço do século XX e da entrada do século XXI. Estamos diante de uma produção intelectualque se inicia ainda no início dos anos 1960 e que cobre quase meio século de trabalho.

Em 1975, Antonio Candido, numa entrevista a uma outrora confiável revista semanal (a Veja), quando indagado acerca da crítica cultural feita no Brasil, respondeu sem vacilar: “fora da universidade, eu mencionaria o grupo em torno do jovem Carlos Nelson Coutinho”. Estava Carlito – como era conhecido pelos amigos –, então, com seus 32 anos incompletos… Outros eminentes intelectuais da cultura brasileira – Alfredo Bosi, Nelson Werneck Sodré, Raymondo Faoro, Roberto Schwarz, Michael Löwy – reconhecem que coube a Coutinho a pioneira introdução, em nosso país, da obra de dois pensadores europeus que, no século XX, tornaram-se referências mundiais no debate teórico-filosófico – o húngaro György Lukács e o italiano Antonio Gramsci.

Nos anos 1960, junto a Leandro Konder, o primeiro a divulgar o pensamento estético de Lukács no Brasil, estabeleceu uma parceria intelectual que, assim como a amizade que os unia, durou toda vida. Em colaboração com Leandro traduziu e organizou, de Lukacs, Introdução a uma estética marxista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968). Na década de 1970, Carlos Nelson Coutinho (CNC), pioneiramente traduziu dois capítulos da Ontologia de Lukács, parte importante da inacabada obra lukacsiana que era praticamente desconhecida no Brasil: Os princípios ontológicos fundamentais de Marx A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel (São Paulo: Ciências Humanas, 1979). Ainda que sua dedicação nas décadas seguintes tenha se voltado para a difusão da obra de Gramsci entre nós, isso não o afastou de Lukács. Nos anos 2000, à frente da Editora UFRJ (entre 2004 e 2011), CNC criou a coleção “Pensamento critico”, organizando e traduzindo, juntamente com José Paulo Netto, três coletâneas de ensaios do marxista húngaro: O jovem Marx e outros escritos de filosofiaSocialismo e democratização Arte e sociedade (publicados pela editora em 2007, 2008 e 2009, respectivamente).

Mas foi a Gramsci que nosso pensador baiano dedicou a maior parte de sua vida intelectual. Na segunda metade dos anos 1960, quando o marxista italiano ainda não conhecia o modismo do qual foi objeto entre os brasileiros, CNC traduziu Concepção dialética da história (título dado pelo editor Ênio Silveira à edição brasileira)e Os intelectuais e a organização da cultura (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966 e 1968), além de organizar e traduzir uma compilação de Literatura e vida nacional (idem). Prova maior de seu apreço por Antonio Gramsci foi a preparação, com a colaboração de M. A. Nogueira e L. S. Henriques,da edição brasileira, em dez volumes (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999/2005) das obras de Gramsci: Cadernos do cárcere (6 volumes),Escritos políticos (2 volumes) e Cartas do cárcere (2 volumes),num empreendimento que lhe valeu o reconhecimento internacional (não à toa foi designado para a vice-presidência da prestigiada International Gramsci Society). Foi com a difusão do pensamento gramsciano, já desde os anos 1980, que CNC tornou-se referência nacional – inclusive com a aplicação, criativa e livre de provincianismos, de categorias à análise da sociedade brasileira. É consensual, entre aqueles que estudam a formação social brasileira, reconhecer o papel que teve Carlos Nelson na original utilização de categorias analíticas como revolução passivanacional-popular intelectual orgânico que foram, em seus trabalhos, inteiramente adaptadas à realidade brasileira denotando uma rara capacidade interpretativa.

Cabe destacar que seu impressionante trabalho de tradução nos legou o acesso em nossa língua de autores fundamentais para a formação intelectual brasileira. Entre os muitos autores que traduziu, não apenas marxistas, destaque-se (além de Lukács e Gramsci) Walter Benjamin, Norberto Bobbio, Agnes Heller, Herbert Marcuse, Henri Lefebvre, Adolfo Sánchez Vázquez, Raymond Aron, Levi-Strauss, J. Habermas, L. Goldmann, dentre outros. Registre-se um de seus maiores trabalhos: coube a ele a tradução de cerca de metade do material publicado na edição brasileira do monumental História do marxismo, organizada pelo historiador marxista recentemente falecido, Eric J. Hobsbawm, em 12 volumes, entre 1980-1989.

Mas CNC não se limitou ao ofício de tradução com o qual verteu ao português cerca de 60 títulos em quarenta anos de trabalho. Alguns dos seus textos foram consagrados como verdadeiros clássicos da ensaística brasileira. São os casos de Graciliano Ramos (1967), O estruturalismo e a miséria da razão (1972),Osignificado de Lima Barreto na literatura brasileira (1972) e A democracia como valor universal (1979). Este último obteve, como informa Celso Frederico, “a utilização política mais influente do conceito de via prussiana” na cultura brasileira, tendo sido “talvez o texto mais lido e debatido pela esquerda desde A revolução brasileira de Caio Prado Jr.”.

Seu papel de vanguarda na cultura brasileira é explicitado, entre outros níveis, no pioneirismo na introdução de grandes pensadores europeus entre nós e em sua produção teórica no âmbito das ciências sociais no Brasil, na Europa (principalmente na Itália) e na América Latina (México, Chile, Uruguai, Cuba e Argentina). Seis de seus treze livros foram traduzidos em Cuba, México, Estados Unidos, Chile e Itália. Ademais de seus livros, registre-se que produziu mais de meia centena de ensaios substanciais, publicados em livros de autoria coletiva no Brasil e no exterior (Inglaterra, França, Itália, México, Chile, Japão e Romênia).

Em pouco espaço não se pode dizer muito de alguém tão expressivo. Certamente, muito em breve, o legado de CNC será discutido para ser avaliado pelas gerações futuras. Um primeiro passo já foi dado: em novembro será publicada uma coletânea que organizei (intitulada Carlos Nelson Coutinho e a renovação do marxismo no Brasil) com a chancela da Editora Expressão Popular que reunirá autores diversos (L. Konder, M. Löwy, José P. Netto, C. Frederico etc.) que escreveram textos que discutirão a multifacetada obra de Carlito.

Carlos Nelson Coutinho – marxista convicto e confesso, expressão do comunista peruano Jose Carlos Mariátegui com a qual se identificava – foi um intelectual incomum porque toda a sua produção desborda os muros da universidade brasileira em dois aspectos decisivos. Primeiro porque, foi formado numa rica época que ele gostava de chamar de “os longos anos 60” (compreendendo o final dos 1950 e a entrada dos anos 1970), que no Brasil e no mundo foram marcados por profundos debates teórico-filosóficos que refletiam as fissuras políticas e ideológicas da sociedade. CNC só ingressaria na universidade tardiamente, em fins dos anos 1980, quando já era um intelectual de peso formado naqueles anos. Apesar de sua larga e vasta produção teórica nada tem a ver com o produtivismo fordista que impera na universidade desde os anos 1990. O segundo aspecto que torna CNC um intelectual incomum para os dias atuais se refere à sua militância política. O marxista baiano jamais a deixou. Toda a sua vida intelectual foi conduzida em estreita relação com sua intervenção política, seja no PCB, onde esteve de 1965 a 1982, no PT, de 1989 a 2003, ou no Psol, ao qual se vinculou desde 2004.

É de se lamentar sua morte, pois o surgimento de um intelectual desta envergadura é obra histórica de difícil reposição. Porém, seu legado transcende seu desaparecimento, pois está e estará inscrito na cultura brasileira por muitas gerações.

http://editora.expressaopopular.com.br/noticia/batalha-das-ideias-carlos-nelson-coutinho-1943-2012-um-intelectual-incomum

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