Carta ao povo negro e de ascendência indígena e aos LGBTs que fazem lutas em Fortaleza

“Prezados companheiros de ‘de copo e de cruz’,

Vivenciamos um processo político cujas escolhas nos encurralaram. No 1º turno muitos de nós nos engajamos em campanhas, acreditamos num ou noutro candidato. No 2º turno, muitos pensaram que poderiam ainda, pela malfadada via do voto, garantir ao menos que, se não ganhássemos de fato, não perderíamos o pouco conquistado e já tão carregado de contradições e antinomias. Uns tantos acharam que já não valia a pena votar. Fato é que, o cenário político da cidade, com os resultados das urnas no 2º turno, mais que nunca, pode ameaçar a existência de nossos corpos.

A realidade mostrou toda a sua implacável crueldade. A sensação é de sombras. Oxalá nos ajude que não, mas estamos à mercê do recrudescimento da força e do aceleramento no ritmo dos chicotes que sempre sangraram nossas costas. Aos LGBT, infelizmente, mais homo, les e transfobia institucional. Aos pretos, mais armas na cabeça e racismo institucional; aos mais pobres, menos possibilidades de resolver algumas das tantas infelizes pendengas do dia-a-dia.

Agora é hora de acionarmos nossas forças, herança de nossos ancestrais, dos quais recebemos nossa resistência e nossa própria existência, para interpretar e se defender do desgraçado mundo que nos renega. E embora não sejamos obrigados a sempre ter que extrair aprendizado da nossa desgraça, se essa é a condição, que a utilizemos para organizar ainda mais a nossa luta, e, Fortaleza, nesse cenário, nos dar a chance de fortalecer nossa voz.

O processo político muito nos revela e ensina. Aprendemos que a forma da política oficial não nos cabe. A não ser num apertado jogo de sobrevivência.

Aprendemos mais sobre a força do dinheiro e daqueles que o possuem para determinar nossas possibilidades e restringir nossa voz; manipular o voto de nosso povo, a preço de duas ou três cédulas (e até pedras de crack) que fazem tanta diferença na vida cotidiana ao ponto de fazer com que o próximo dia pareça tão distante, ante a necessidade do agora.

Aprendemos que a disputa político partidária é uma armadilha permanente e um “vexame” circunstancial, que guarda em sua estrutura um pensar e um fazer político descolado de nossa realidade. E, pior, se impõe a pensar e a decidir sobre nossa vida. Em nome de alguns de nós, se põe a esbravejar e a fazer promessas mirabolantes.

Aprendemos que não se pode esperar que façam a política por nós. Que as regras e a cultura política de esquerda e de direita, herdeiras de modelos colonialistas, patriarcais e racistas nos tornam reféns. Na naturalização da corrupção, ou na lógica binária e cartesiana do bem e do mal, somos situados como pormenores, como meio-de-campo. Obrigados a pensar e agir num pequeníssimo campo de possibilidades, nossa pauta se torna fantasiosa e promíscua para uns, ou pelega e conformista para outros. Eis a condição política que nos impõem: nossa cabeça cortada pra entrar na caixa, do bem ou do mal.

Aprendemos que as teorias, leituras e discursos políticos de transformação que predominam na esquerda partidária nos ajudam a pensar e a nos mobilizar; muito aprendem conosco, mas não podem vestir nossas peles. Se mostram incapazes de compreender o nosso cotidiano vivido, e por que não dizer, até de se solidarizar com o que a classe e a raça implicam no dia a dia de nossa gente; de compreender que um sofrimento a menos é um alívio para quem a luta é imposição de sobrevivência e não apenas argumentação ideológica, para muitos um sacrifício de esforço intelectual, que nos aproxima e separa.

Aprendemos que o caráter nazifascista do conservadorismo em ascendência, aliás, no mundo todo, e que atinge todo dia nossa pessoa e nossos pares, são minimizados frente às esperanças generalistas que talvez desejem partilhar o “bolo” da felicidade, depois que ela crescer, sendo a luta social fermento de paciência no padecer, principalmente para as mães de cor. Esperança que, mesmo quando julga querer, não se libertou ainda do patriarcado racista.

Aprendemos que a solidariedade construída entre as lutas sociais não tem sido suficiente para que as discriminações e interdições que nos são impostas no dia-a-dia, de fato sejam, na vida real, tratadas e contextualizadas com as complexidades que elas implicam.

Aprendemos que nesses processos todos, nossa gente sempre é tratada como “zonas de sacrifício” para os modelos pensantes e praticantes da política tradicional (no mal sentido da palavra), de direita e de esquerda. Nossas vidas sendo aquelas que sempre podem esperar. Para a direita, porque vamos ter um emprego, e para a esquerda, porque algum dia tudo vai melhorar inteiramente e num único golpe abolicionista, onde, tal como no sec. XIX, os brancos aparecem como os que fazem e pensam por nós. Nesse modelo, sempre ficaremos no nível mais baixo da decisão, seja porque não merecemos, seja porque considerar o hoje de nossa vida e a nossa “legítima defesa” é visto como uma perspectiva atrasada, suspeita de não compreender o que está de fato em jogo, enfim, como um atraso cognitivo.

Nesse jogo, se por um lado se coloca a violência de um modelo desenvolvimentista que nos impõe a obediência  e nos nega a existência por sermos um obstáculo aos seus níveis de lucro e suas condições de privilégio, do outro lado um discurso de esperança que não percebe que ela só é possível quando entre um sofrimento e outro vemos que caminhamos pelo menos um pouco.

Em tal jogo, nos resta a sobrecarga da luta. Para nossa gente, a lida da existência. Mas como temos mostrado, desde sempre, somos fortes e parte de nós tem a “estranha mania” de desobedecer à ordem geral vigente, e existir.

Existir com todas as nossas questões, com todas as nossas estranhezas, com toda a nossa coragem. Não nos resignemos, pois. Se não vamos prevalecer, pelo menos que não seja tão fácil para eles. Mas se é pra acelerar nossa morte na pista, na boate, na boleia de caminhão, na cozinha, no beco da favela, na pracinha, na pedra ou em qualquer lugar esquecido dessa cidade, que morramos lutando, como nos inspira o povo Kaiowá Guarani, espelho para nossa persistência. Nossa fé e nosso mais profundo respeito a todos os parentes que nos ensinam que a perversidade contra qualquer um de nossa gente, morta ou viva, nos atinge a todos! Fortaleza não tem sido nossa Tekoá, mas é o chão onde existimos.

Temos pois a tarefa de organizar nossa luta. Somos nós agora que teremos que, não só manter nossas ralas conquistas, mas, daqui pra frente, reconstruir, com sabedoria e autonomia, as bases e as estratégias de nossas revoluções.”

Fortaleza, 29 de Outubro de 2012

Cris Faustino, Lídia Rodrigues, Lila M., Raylka Franklin, Elizangela Pinto (Novinha), Nêga Meiry, Abiglacy Rodrigues, Lúcia Paulino, Alessandra Guerra e outros que se sentirem identificados.


Enviada por Cris Faustino.

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