Samir Oliveira
A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou nesta terça-feira (23) o relatório final da comissão que analisou a titulação de terras a indígenas e quilombolas no estado. O colegiado, presidido pelo deputado Gilberto Capoani (PMDB), foi criado no dia 5 de junho deste ano e finalizou os trabalhos em setembro, após ter realizado quatro audiências públicas.
O relatório final da comissão traz uma série de sugestões a serem tomadas pelos governos federal e estadual sobre o tema. O texto sustenta que os processos de titulação de terras a indígenas e quilombolas são “viciados” e “parciais”, visando o favorecimento dessas populações em detrimento aos agricultores que produzem nas regiões reivindicadas por esses povos.
Além disso, o texto defende a aprovação, no Congresso Nacional, da PEC 215, que transfere à Câmara dos Deputados e ao Senado a responsabilidade de titular terras a indígenas e quilombolas no país.
Com 79 páginas, o relatório foi aprovado por uma margem apertada de votos. Foram 25 votos a favor e 18 contrários. As bancadas do PMDB, do PP, do DEM, do PPS e do PTB votaram unidas pela aprovação do texto. As bancadas do PT, do PSB e do PCdoB votaram unidas contra o relatório. No PDT, apenas Juliana Brizola e Marlon Santos não apoiaram o texto.
Observa-se uma divisão da base aliada do governo estadual neste episódio. Se o PTB e parte do PDT não tivessem sido favoráveis, o relatório não teria sido aprovado.
Audiências públicas não contaram com participação de lideranças indígenas ou quilombolas
As quatro audiências públicas que foram realizadas pela comissão que discutiu titulação de terras a indígenas e quilombolas no Rio Grande do Sul contaram com baixíssima presença dessas comunidades. Apenas a primeira reunião, em Porto Alegre, teve a participação da FUNAI, do INCRA e de representantes das tribos Charrua e Kaigang, além da Frente Nacional de Defesa dos Territórios Quilombolas – que também se fez presente na última audiência. As outras duas reuniões, realizadas em Getúlio Vargas e em Marau, contaram somente com a presença de sindicatos rurais, produtores e prefeitos dessas regiões.
O presidente da comissão, Gilberto Capoani, assegura que convidou todas as entidades envolvidas no tema. Para o superintendente do INCRA no Rio Grande do Sul, Roberto Ramos, o deputado direcionou a discussão durante a primeira audiência pública – na qual ele esteve presente.
“Na primeira audiência, coordenada pelo Capoani, a comissão, de alguma forma, direcionava o debate, visando à proteção dos atingidos pela política de demarcação de terras. O INCRA não poderia pactuar desse tipo de iniciativa, tendo em vista que possuímos a incumbência de executar essa política”, comenta Ramos.
Durante as duas audiências ocorridas no interior do estado – e narradas no relatório – os deputados federais Alceu Moreira (PMDB) e Luiz Carlos Heinze (PP) se fizeram presentes. O clima sentido nos encontros era de revolta contra as populações indígenas e quilombolas.
O prefeito do município de Mato Castelhano, Solano Ricardo Canevese (PTB), chegou a dizer que as tensões entre indígenas e proprietários rurais tendem a se agravar se a PEC 215 não for aprovada. “Ou a demarcação de terras passa ao Congresso Nacional, ou um derramamento de sangue cedo ou tarde ocorrerá”, sentenciou.
Um agricultor de Marau recitou um poema para externar o receio de ser expulso de sua propriedade. Os versos falam de uma “grande ameaça” que o preocupa dia a dia. “Eu tenho calo na mão e não vou dar terra de graça”, afirma o produtor no poema.
Outro trecho diz que “o agricultor é, com certeza, dono desta terra, vamos fazer uma guerra, tudo o que a FUNAI queria, um processo à revelia, com laudo falsificado”. Ao final, o poema defende que os índios devem “trabalhar e dar pinote” para garantirem seu sustento.
Durante a primeira audiência pública, em Porto Alegre, o representante da FUNAI em Santa Catarina – que cuida da etnia Guaraní no Rio Grande do Sul – disse que “sente vergonha” das posições políticas de alguns parlamentares gaúchos que “não vislumbram a necessidade de dar garantias para que os grupos étnicos acessem seus direitos”. João Maurício Farias alertou que o estado corre o risco de se tornar um novo Mato Grosso do Sul, que ele qualifica como um “estado de barbárie”.
Raul Carrion critica sugestões contidas no relatório
O deputado Raul Carrion (PCdoB) foi vice-presidente da comissão e critica alguns aspectos do relatório final. O primeiro deles é a sugestão feita de que os laudos antropológicos que atestam se um território é indígena ou quilombola sejam acompanhados pela Assembleia Legislativa, por prefeituras e por câmaras municipais.
“Trata-se de um processo administrativo do Poder Executivo federal, é inadequado exigir interferência de outros órgãos estaduais ou municipais”, entende.
Para o deputado Gilberto Capoani, essa medida é necessária para que se fiscalize a atuação dos antropólogos. “O antropólogo vai na região, diz que encontrou um osso de índio e um barro quebrado e isso basta? Ninguém está lá para ver se ele realmente encontrou vestígios”, argumenta.
Raul Carrion também critica a defesa que o relatório faz da PEC 215. “Essa proposta é originada pelos grandes proprietários, cuja maioria das terras é grilada. Eles lutam com unhas e dentes contra qualquer direito que se queira reconhecer aos indígenas e quilombolas. A aprovação dessa PEC significaria o fim de titulações de terras”, lamenta.
O deputado do PCdoB aponta que muitos votos favoráveis ao relatório foram de parlamentares “constrangidos” que reconheciam “que havia pontos absurdos” no texto. Carrion diz que a decisão da Assembleia Legislativa vai “no rumo de setores extremamente conservadores que alegam o direito à sacrossanta propriedade privada e esquecem de povos que foram quase exterminados e escravizados durante séculos”.
Relatório diz que indígenas estavam sob efeito de alucinógenos ao reivindicarem território
Há uma parte do relatório final da comissão que diz respeito à região de Mato Preto, no município de Getúlio Vargas. Os índios Guaranis afirmam que aquele território pertence a seus ancestrais. Atualmente, a FUNAI trabalha na titulação de 4 mil hectares daquela área, sob forte pressão dos agricultores locais.
No relatório da Assembleia Legislativa, há a afirmação de que o direito dos índios sobre aquela terra teria advindo do “consumo de substâncias alucinógenas” por parte da tribo Guarani. “Não há qualquer elemento probatório consistente a ensejar a identificação de uma área de 4.230 hectares como de ocupação indígena, a não ser relatos de partes interessadas, colhidos após o consumo de substâncias reconhecidamente causadoras de alucinações”, diz o texto.
Procurado pela reportagem, o deputado Gilberto Capoani, presidente da comissão, colocou em dúvida a credibilidade do laudo elaborado pela antropóloga responsável pela investigação da presença indígena no local.
“Essa antropóloga é considerada, pelos índios, como integrante da família. Ela ia à noite nas aldeias participar de rituais indígenas. A ideia de que a região de Mato Preto pertence aos índios surgiu durante um ritual com aquele chá, o Santo Daime, onde as pessoas tinham alucinações, vomitavam e choravam”, acusa o deputado, que diz ter verificado essas informações no estudo antropológico.
Capoani sustenta que as 300 famílias que vivem no local não podem ser expulsas para que somente 15 famílias indígenas sejam beneficiadas. “O processo inicial era de 223 hectares e a antropóloga disse que era pouco, que os índios precisariam de 4 mil hectares para caçar antas – um animal extinto naquela região. Há uma média de 11 hectares para cada uma das 300 famílias que vivem lá. Eles serão expulsos para assentar 15 famílias indígenas, que ficarão com 200 hectares cada uma”, critica.
Para o deputado, os índios já ocupam uma porção suficiente de terras no Brasil. “Existe 106 milhões de hectares de reservas indígenas. Eles representam 0,4% da população do país e ocupam 12,5% do território. Tem terra de sobra para eles, o que falta é políticas de inserção dos índios no processo de desenvolvimento nacional”, avalia.
Antropólogo diz que tentam destruir a demanda dos Guaranis pelo território de Mato Preto
Doutor em Antropologia e professor da UFRGS, José Otávio Catafesto de Souza trabalha também como perito em processos de titulação de terras indígenas e quilombolas. Ele diz que os antropólogos acabam sendo desqualificados em seus trabalhos e que a decisão final sobre o reconhecimento das terras é política.
“Não é o antropólogo que inicia o processo de demarcação de terra. São grupos que demandam o reconhecimento de direitos ao Estado, que pede o auxílio dos antropólogos”, esclarece.
Catafesto acredita que a tentativa de desqualificação do trabalho de seus colegas “tem o objetivo de desviar o debate do fato concreto de que existem coletivos em situação de penúria e vulnerabilidade porque suas demandas territoriais seculares nunca foram reconhecidas”.
Ele também critica a tese, apregoada por ruralistas, de que o processo de reconhecimento de terras é parcial, voltado somente ao benefício dos indígenas e quilombolas. “Ao longo da história, o Brasil privilegiou os imigrantes europeus e seus descendentes. Agora que o Estado começa a olhar o outro lado, o processo é visto como parcial. A parcialidade se desconstrói ao constatarmos que o Estado está tentando reverter prejuízos que ele mesmo gerou”, argumenta.
O professor explica que o trabalho do antropólogo no reconhecimento das terras é feito com base na observação da realidade local a ser demarcada e com uma ampla pesquisa histórico-documental nos arquivos da região. “Levantamos documentos históricos do local, junto com a observação da realidade dos indígenas e do levantamento arqueológico. Não é só osso e cerâmica que encontramos. Aparecem vestígios de aldeias antigas, cemitérios e oficinas”, conta.
Sobre o território de Mato Preto, o professor Catafesto diz que conhece a antropóloga que realizou a perícia e ela alega que as pessoas que estão criticando o seu trabalho estão confundindo diferentes estudos realizados. “Recebi uma manifestação de caciques da região repudiando as críticas e afirmando que eles não usam substâncias alucinógenas. Isso é uma invenção. Os Guaranis não usam alucinógenos. A única planta que consomem é o tabaco, que possui um sentido religioso para eles e não provoca alteração de consciência. Estão dizendo tudo isso para destruir a demanda indígena”, condena.
Catafesto considera que a aprovação desse relatório na Assembleia Legislativa foi fruto da “articulação de setores políticos a serviço do latifúndio e da propriedade privada”. “O Estado brasileiro surgiu em cima das ruínas das populações originárias e sempre atuou em prol de interesses privados na destituição dos direitos coletivos de índios e quilombolas. O que vemos agora é a mobilização de setores políticos que negam a reivindicação desses grupos”, critica.
Quilombo de Morro Alto tenta desde 2004 reconhecimento no INCRA
Se, no que diz respeito a terras indígenas, a maior polêmica no Rio Grande do Sul é o território de Mato Preto, em relação aos quilombos, o alvo das críticas dos produtores rurais é Morro Alto, localizado em Osório. O relatório aprovado pela Assembleia Legislativa informa que são cerca de 400 famílias de descendentes de quilombolas reivindicando uma área onde vivem 900 famílias de agricultores.
Mas autoridades ligadas ao tema no governo gaúcho afirmam que o número de produtores na região é superestimado. E o superintendente do INCRA no Rio Grande do Sul diz que são cerca de 500 famílias de “proprietários, posseiros e chacreiros devidamente identificados”.
Desse contingente, aqueles que tiverem títulos de suas terras serão indenizados pelo valor de mercado, em dinheiro e à vista. Os que não tiverem a documentação comprovando a posse da terra serão reassentados em outros lotes.
O caso de Morro Alto chama a atenção pelas proporções. Enquanto a maioria das terras quilombolas em análise no estado possui cerca de 40 famílias em uma região pequena, Morro Alto representa 400 famílias e 4,3 mil hectares. O caso tramita no INCRA desde 2004 e ainda não tem prazo para ser concluído.
Em relação às terras quilombolas, a dinâmica jurídico-institucional é diferente da indígena – que depende da atuação da FUNAI. No caso dos descendentes de negros escravizados, é preciso que, ainda nos dias atuais, a população esteja habitando a região que reivindica como pertencente aos seus antepassados.
No Rio Grande do Sul, cerca de 86 comunidades quilombolas já foram certificadas oficialmente pela Fundação Palmares. Ligado ao Ministério da Cultura, esse órgão tem o poder de reconhecer a origem quilombola de uma comunidade, mas apenas isso não basta para dar a esse povoado a posse da terra.
Após a certificação pela Fundação Palmares, a própria comunidade precisa reivindicar o direito à terra junto ao INCRA – que entrega os títulos a uma associação de moradores do local. Ou seja, não há – assim como no caso dos índios – a figura da propriedade privada, já que o território é de pertencimento coletivo.
No Rio Grande do Sul, há somente três comunidades quilombola com título de reconhecimento territorial do INCRA. A maior delas é a de Casca, no município de Mostardas, onde 78 famílias vivem em 2.387 hectares.
Em Porto Alegre, 13 famílias do quilombo “Família Silva” vivem em 0,65 hectares. E em Canoas, 20 famílias do quilombo “Chácara das Rosas” vivem em 0,36 hectares.
Além desses três quilombos com terras oficialmente homologadas pelo governo federal, outros 77 estão com processos de titulação no INCRA – muitos tramitam no órgão desde 2004.
Em relação às terras indígenas, a reportagem do Sul21 não obteve, por parte da representação da FUNAI no Rio Grande do Sul, os dados referentes ao tamanho dos territórios e à quantidade de habitantes. O escritório da FUNAI no estado cuida apenas das etnias Kaingang e Charrua. A reportagem tentou contato com o escritório de Santa Catarina, que trata das etnias Guarani e Xokleng, mas não obteve retorno.
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Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.
http://sul21.com.br/jornal/2012/10/relatorio-da-al-questiona-titulacao-de-terras-a-indios-e-quilombolas-no-rs/