Kadiwéu: com fim da greve da PF, indígenas podem ser despejados de terra homologada

Por Ruy Sposati, de Porto Murtinho (MS)

Famílias indígenas Kadiwéu que reocuparam área invadida por pecuaristas receberam nova ordem de reintegração de posse para 136 mil hectares da Terra Indígena (TI) Kadiwéu. Eles foram notificados ao longo da última semana em ao menos quatro fazendas diferentes. No início do mês, a Justiça havia concedido liminar para outras onze fazendas.

O território, demarcado há 100 anos e localizado no município de Porto Murtinho, na região do Pantanal do Mato Grosso do Sul, estava completamente ocupado por pecuaristas até que, em abril deste ano, os Kadiwéu retomaram a área e expulsaram os fazendeiros.

O prazo para a desocupação terminou no domingo, 14. Contudo, durante a greve da Polícia Federal, o órgão declarou publicamente não ter contingente para realizar a remoção. Com o fim da paralisação na terça-feira,16, a situação pode mudar.

“A Funai [Fundação Nacional do Índio] não entrou com nenhum recurso para defender nós”, conta o presidente da Associação o presidente da Associação das Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu (ACIRK), Francisco Matchua. “O nosso medo é da violência do policiamento. Nós falamos que ia permanecer aqui, e o que eles [Polícia Federal] falaram? Falaram ‘se vocês permanecerem aí, a gente tem mandado, vamos ter que entrar para tirar vocês daí’. Estamos desconfiados que vai vir violência para o nosso lado. Porque o pessoal disse que não vai sair da terra”, expõe.

“A Justiça não é a favor dos índios”

Segundo determinação da Justiça Federal, as cerca de 60 famílias deverão desocupar o trecho da área homologada pelo Estado e invadida irregularmente por pecuaristas.

Numa decisão polêmica, a juíza federal Adriana Delboni Tarrico decidiu em favor dos pecuaristas, justificando que “o entendimento ora adotado não significa, de forma alguma, sinalização de quem esteja com a razão, principalmente porque não será nestes autos que a propriedade será definida, mas, sim, tão-somente a posse”. Ainda assim, as reintegrações contra os Kadiwéu continuam saindo.

“Os brancos falam que tem o título da terra. Na verdade, a gente não tem nem o que discutir. A terra é nossa, foi homologada”. Segundo os indígenas, as terras estão há mais de vinte anos na mão destes fazendeiros. “Os brancos já usaram bastante. Agora, chega”, diz o presidente da associação.

A retomada das 23 fazendas, durante este ano, foi a estratégia encontrada pelos indígenas para sensibilizar a sociedade brasileira sobre a necessidade de solucionar “a excessiva e inexplicável demora na definição da situação jurídica [da TI]”, conforme esclareceu o Ministério Público Federal (MPF), em nota pública.

“A Justiça não é a favor dos índios. A Justiça é a favor dos pecuaristas”, declara o capitão Ademir Kadiwéu. “Sinto muito pela Justiça brasileira não ser a favor dos indígenas. Eu não sei até onde vai isso. A gente está caminhando para o extermínio”.

Guerra do Paraguai

“O oficial de justiça trouxe o documento dizendo que temos que sair da nossa terra, que a gente conquistou lutando pelo país”. O capitão se refere à participação do povo indígena na Guerra do Paraguai.

Documentos históricos comprovam que o território dos Kadiwéu foi doado a eles ainda no Segundo Império, por Dom Pedro II, como recompensa pela  participação dos indígenas, ao lado do Brasil, na Guerra do Paraguai, em 1864.

“Antes, nós lutamos ao lado do Estado, na guerra do Paraguai. Graças à essa luta, o Mato Grosso do Sul faz parte do Brasil e não do Paraguai. É por isso que tem brasileiro lá”, segue o Kadiwéu.

“A gente lutou com o Exército Brasileiro, defendeu a pátria. É por isso que hoje tem brasileiro no Mato Grosso do Sul. Se nao fosse a nossa luta, a dos nossos antepassados, aqui era território do Paraguai”, explica.

“Só que se antigamente a gente lutava ao lado, agora a gente está lutando contra eles. A gente não queria que chegasse até esse ponto, mas agora nossa luta é contra os oficiais, os soldados, o governo”, encerra capitão.

A terra foi oficialmente reconhecida pelo governo brasileiro em 1899. Em contrapartida à participação dos Kadiwéu nos combates da Guerra do Paraguai, o governo do então estado do Mato Grosso (que abrangia também a área do Mato Grosso do Sul, compondo um único estado) delimitou o território e, no ano seguinte, o demarcou. Em 1903, foi aprovada por decreto o reconhecimento da posse indígena da área, bem como foram determinados os limites da terra.

“Os limites são muito claros porque são limites naturais. Ao norte, o rio Naitaca; ao sul, o rio Aquidaban. A oeste, o rio Paraguai, e a leste a Serra da Bodoquena”, explica Francisco.

Invasões

A área dos Kadiwéu tem seus limites invadidos ao menos desde 1914, quando um novo trabalho demarcatório foi realizado, para que parte da terra – cerca de 140 mil hectares – pudesse ser vendida à empresa S.A. Fomento Argentino Sud Americano. Daí iniciaram os diversos conflitos fundiários que os Kadiwéu sofrem historicamente.

Por conta dos conflitos, em 1931, o governo do então estado do Mato Grosso ratificou o ato governamental de 1903, confirmando que aquelas eram terras reservadas ao usufruto dos indígenas. Este novo decreto justifica a demarcação de 1903 de maneira expressiva: “o referido acto governamental foi de alta sabedoria política, pois com elle cessaram as hostilidades entre Caiuéos e civilizados, as quaes chegaram a provocar a mobilizações de forças do Exército com graves danos de ambas as partes”. Ou seja, a garantia do território cessou os conflitos com os indígenas, reacendidos pela nova e equivocada demarcação.

Hoje, ao menos 30% do território indígena está invadido. Dos 538,5 mil hectares, quase 160 mil são usados na pecuária. As invasões dos fazendeiros ocorrem pelo menos desde a década de 1950. Relatos dão conta de que tanto o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) quanto a Funai oficializavam a ocupação territorial, arrendando a terra aos pecuaristas.

Centenas de posseiros ocupavam as terras; invasores registravam, de forma irregular, títulos de propriedade em cima de áreas indígenas, no nome de terceiros, em cartórios de municípios vizinhos; órgãos governamentais de proteção arrendavam terras a grandes fazendeiros. Por fim, incursões jurídicas e pressões políticas dos fazendeiros arrendatários para a expulsão dos Kadiwéu do próprio território.

Registrada em cartório

Em 1984, para por fim à dúvida relativa aos limites da TI causada pela demarcação equivocada de 1914, a Funai realizou a reaviventação dos marcos da demarcação original. Em 1983, o órgão indigenista publicou a planta da terra, com superfície de pouco mais de 538 mil hectares. Em 1984, o presidente da República homologou a terra, registrada em cartório. Depois de identificada, delimitada, demarcada, homologada e registrada em cartório, estava assim definitivamente na mão dos Kadiwéu a terra indígena.

Ainda naquele ano, os pecuaristas, que se encontravam dentro dos limites da área, ajuizaram ação para discutir a nulidade da demarcação da TI. De um total de 585 mil hectares, 155 mil entraram em litígio. Sãoterras registradas em nome da União, de usufruto exclusivo dos indígenas, mas ocupados por cerca de 120 fazendas de gado. Desde 1987, tramita, então, no STF, uma ação que nunca foi julgada. Também a desintrusão da área nunca ocorreu.

Desmatamento

A exploração das terras homologadas pela pecuária tem gerado aguda destruição da fauna e da flora do território. Em 2011, operação conjunta do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e Funai flagrou a destruição de dezenas de hectares de mata em uma fazenda dentro da TI Kadiwéu, além de exploração seletiva de madeira na área. Os responsáveis foram multados e tiveram o maquinário apreendido. Foi descoberta ainda retirada ilegal de madeira em área contígua, de 46,7 hectares. Os responsáveis foram multados em R$ 625 mil e foi apreendido o trator de esteira utilizado para o desmate.

Durante vistoria no último mês de maio, o MPF do Mato Grosso do Sul constatou ainda uma série de irregularidades e crimes ambientais realizados pelos fazendeiros invasores. Para a abertura de pastos, grande parcela de cerrado, bioma típico da região, foi devastado.

Foram encontradas diversas clareiras na mata para a retirada de espécies nativas. Segundo a legislação ambiental, o corte de árvores nativas só pode ser feito com plano de manejo ou autorização do órgão ambiental competente. Em uma das fazendas, também foi encontrada pista de pouso com quase um quilômetro de comprimento. A terras indígenas, mesmo não sendo, nas letras da Constituição Federal, Áreas de Preservação Permanente (APPs), são as mais preservadas do país, de acordo com dados do Ibama, e sofrem com a ação indiscriminada de invasores.

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