Carta dos diplomatas negros, amigos de Joaquim Barbosa, barrados no STF no dia de sua eleição

Por Mônica Bergamo

Os diplomatas Carlos Frederico Bastos da Silva, 45, e Fabrício Prado, 31, ambos negros, foram barrados pela segurança do STF (Supremo Tribunal Federal) no dia em que o ministro Joaquim Barbosa foi eleito presidente da corte. Só conseguiram entrar autorizados por um superior. Desconfiados de racismo, os diplomatas pediram explicações ao secretário de segurança institucional do STF, José Fernando Martinez. Leia, na íntegra, a carta dos diplomatas.

LEIA A CARTA DOS DIPLOMATAS

_Brasília, 11 de outubro de 2012,_

Nós, Carlos Frederico Bastos Peres da Silva e Fabrício Araújo Prado, viemos registrar nossa indignação com o tratamento que recebemos da equipe de segurança do Supremo Tribunal Federal.

O Senhor Carlos Frederico dirigiu-se, por volta das 14 horas do dia 10 de outubro, ao Supremo Tribunal Federal, a fim de assistir à eleição dos novos Presidente e Vice-Presidente da Egrégia Corte. Ao chegar ao Tribunal, passou pelo detector de metais, sem que houvesse nenhuma anormalidade, e seguiu em direção à mesa de identificação e registro do público, a qual dá acesso ao salão plenário. Ao entregar sua identidade funcional de diplomata, foi informado, pela atendente, de que havia um problema no sistema eletrônico de identificação. Ato contínuo, um segurança aproximou-se e reiterou que o sistema de registro havia sofrido pane, razão pela qual não seria possível autorizar a entrada do Senhor Carlos Frederico à plenária.

Causou estranheza que ele tenha sido o único visitante a ser afetado pela pane, uma vez que diversas outras pessoas, brasileiras e estrangeiras, entraram no salão sem empecilho algum.

Diante da demora em ver o problema resolvido, o Senhor Carlos Frederico reiterou a pergunta ao segurança sobre o que estava acontecendo. O segurança repetiu o argumento da pane do sistema e conduziu o Senhor Carlos Frederico até a saída do STF, pedindo que ele aguardasse lá enquanto o problema estava sendo resolvido.

Por volta das 14:10 horas, o Senhor Fabrício Prado chegou ao STF para encontrar-se com o Senhor Carlos Frederico (ambos diplomatas e colegas de trabalho). Ao ver seu colega do lado de fora, o Senhor Fabrício Prado perguntou a um segurança que se encontrava na entrada se haveria algum problema. O mesmo segurança esclareceu que a situação já estaria sendo resolvida e que o Senhor Fabrício Prado poderia passar pelo detector de metais e proceder à identificação. Assim o fez. Ao chegar à mesa de identificação, foi comunicado pela atendente que, também no seu caso, havia um problema no sistema. Logo depois, o Senhor Carlos Frederico foi novamente conduzido por outro segurança (não o senhor Juraci) à mesa de registro e lá se juntou ao Senhor Fabrício, enquanto aguardavam pela solução da “pane”. Passado algum tempo, durante o qual outras pessoas se identificaram e entraram no salão plenário, o segurança Juraci fez ligação telefônica e informou que a entrada havia sido autorizada. Questionado sobre a razão do problema, mencionou “razões internas de segurança”.

Já dentro da plenária, tivemos a oportunidade de conversar com o chefe da segurança, salvo engano, chamado Cadra. Ele explicou que as restrições à entrada remontavam à nossa primeira visita ao salão plenário ao Supremo Tribunal Federal, no dia 3 de outubro. Não entrou em maiores detalhes, mas disse que teríamos demonstrado comportamento suspeito naquela ocasião. No dia 3 de outubro, chegamos juntos ao STF, de ônibus, e passamos por três controles de segurança do STF, a saber: o externo, localizado na Praça dos Três Poderes (a cerca de 10 a 20 metros de distância do ponto de ônibus); o de metais, na entrada do Palácio do STF; e o interno, na mesa de identificação e registro do público geral. Assistimos a parte da sessão de julgamento da Ação Penal 470 e saímos separados.

Ao final da eleição do dia 10 de outubro, deixamos o STF e retornamos ao Ministério das Relações Exteriores. Inconformados com o tratamento constrangedor e sem entender o fundamento da alegação de “comportamento suspeito”, retornamos ao STF, por volta das 16:45 horas, em busca de esclarecimentos. Fomos, então, recebidos pelo Secretário de Segurança Institucional do STF, o senhor José Fernando Nunez Martinez, em seu gabinete. Este último esclareceu que estava ciente de nosso caso desde a primeira visita ao STF, no dia 3 de outubro, ocasião na qual teríamos sido classificados como “dupla de comportamento suspeito”.

No dia 3 de outubro, a “suspeição” teria sido registrada em nossos cadastros pessoais do sistema de segurança da Corte, disse o Senhor Martinez. Esclareceu que, ao retirar o Senhor Carlos Frederico das dependências do STF, o Senhor Juraci teria desobedecido a suas ordem diretas, as quais determinariam que ninguém poderia ser retirado daquelas dependências sem aval da chefia de segurança. O Senhor Martinez afirmou, ainda, que o assunto deveria ter sido conduzido de outra maneira. Disse, literalmente, que a equipe de segurança teria visto “fantasmas”, os quais teriam crescido ao longo do tempo e provocado o incidente do dia 10 de outubro.

Não satisfeitos com a explicação oferecida pelo Secretário de Segurança, perguntamos qual teria sido o “comportamento suspeito” de nossa parte. Após ressalvar que esse é um julgamento subjetivo dos agentes de segurança e que não teria sido ele próprio a formar esse juízo, enumerou os supostos motivos que lhe foram relatados pela equipe de segurança:

1- Que nós teríamos aparência “muito jovem” para ser diplomatas. Registre-se, aqui, que o Senhor Carlos Frederico tem 45 anos e que o senhor Fabrício Prado tem 31 anos de idade, como atestam as carteiras de identidade emitidas pelo Ministério das Relações Exteriores, apresentadas à mesa de identificação já no dia 3 de outubro

2- Que os seguranças suspeitaram da veracidade dos documentos de identidade apresentados

3- Que, na saída da sessão do dia 3 de outubro, as suspeitas teriam sido reforçadas por termos, supostamente, saído “juntos” do STF, “com o passo acelerado”, comportamento interpretado como tentativa de despistar os seguranças que nos seguiam.

Cumpre esclarecer que, no dia 3 de outubro, deixamos o STF em momentos distintos, o que não condiz com o relato que, segundo o Secretário de Segurança, lhe teria sido feito por sua equipe. Além disso, nunca nos demos conta de que estávamos sendo seguidos nem apressamos passo algum. Todas estas revelações nos causaram desconforto ainda maior com relação aos incidentes.

Perguntado se o incidente teria relação com o fato de sermos afrodescendentes, negou veementemente que o comportamento da equipe de segurança tivesse tais motivações. Também pediu desculpas em nome de sua equipe pela sucessão de incidentes.

Diante da gravidade dos fatos relatados, manifestamos nossa indignação com os injustificados constrangimentos aos quais fomos submetidos, a saber: registro no cadastro de entrada como “suspeitos”; remoção temporária do Senhor Carlos Frederico das dependências do STF; obstruções a nossa entrada na plenária; e perseguição por seguranças após nossa saída do STF.

Sentimos-nos discriminados pelo tratamento recebido –e no caso do Senhor Carlos Frederico, profundamente humilhado por ter sido retirado do STF no dia 10 de outubro.

Dada a natureza “kafkiana” dos incidentes, as explicações insuficientes e desprovidas de qualquer lógica razoável prestadas pela Secretaria de Segurança Institucional não nos satisfazem, razão pela qual não nos furtaremos a adotar as medidas cabíveis para fazer valer nossos direitos.

Não poderíamos deixar de expressar nossa tristeza com o fato de termos sido submetidos a tal constrangimento na data da eleição do primeiro negro a assumir a Presidência do Supremo Tribunal Federal, pelo qual temos profundo respeito e admiração.

_Atenciosamente,_

Carlos Frederico Peres Bastos da Silva
Fabrício Araújo Prado

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/1168343-leia-carta-de-diplomatas-negros-barrados-no-stf.shtml

Comments (4)

  1. Esta é mais uma situação constrangedora e repugnante a que são submetidos os cidadãos negros neste país de democracia hipócrita. Todos os dias vemos a repetição de ocorrências desse tipo. è necessária a aplicação das penalidades previstas em lei para que os racistas disfarçados de democratas pensem bem antes de agir como têm feito.Se dois diplomatas são tratados com tanto desrespeito, imaginem o que acontece com os menos favorecidos. Estes elementos da segurança tem de ser punidos exemplarmente.

  2. Espero que esse fato lamentável tenha conseqüências. O cômico no Brasil é que tudo ganha uma explicação circunstancial, mas tudo está inserido em uma lógica racista e discriminatória estrutural. É muito simbólico este fato ter acontecido em um momento tão importante para a igualdade racial no Brasil. Talvez, involuntariamente, por si, sem que ninguém tenha planejado, o fato quer dizer que ainda falta muita estrada, muito suor e muita luta para vivermos de fato em uma democracia racial e não devemos nos enganar com o fato de um negro está assumindo a mais alta corte de justiça do país. Importante, pero no mucho. Os indivíduos podem galgar qualquer posto, mas a porta continua entreaberta para os demais negros e mestiços, para facilitar o trabalho vigilante dos capitães do mato. Chamou-me a atenção o detalhe de terem associado os dois à marginais: isso é um ato falho. É assim que o sistema ainda vê os negros e mestiços e é assim que ainda estão na sociedade: à margem, ou seja, como marginais, como intrusos, como penetras nas festas e nos salões e na sociedade em geral. Argh! Repugnante, elementar e grosseiro. O racismo deve ter o mesmo tratamento e a mesma rejeição que outros crimes. Passar a mão na cabeça como se fosse um incidente sem importância é aceitar que a discriminação racial faça parte do nosso dia a dia.Juca Ferreira

  3. Disseram que os diplomatas aparentavam ser jovens demais para ser diplomatas. Na verdade, eram pretos demais para a diplomacia. Assim sentenciou a cabeça dos seguranças, moldada por anos e anos de História do Brasil!

    Nada disso aconteceria se na elite do funcionalismo público brasileiro não fosse uma coisa do outro mundo a presença de negros em quadros como o da diplomacia. Os seguranças do STF corresponderam à expectativa gerada pela dinâmica da nossa sociedade: um negro se apresentando como diplomata, mostrando carteira funcional e tudo? A identidade ‘só pode ser falsa!

    Diga-se de passagem que o próprio Joaquim Barbosa, no início de sua estadia no STF, foi barrado na porta. Casos como estes evidenciam a exclusão racial e apontam para a necessidade das ações afirmativas. É o único caminho para que um negro se apresentando como juiz, promotor de justiça, auditor fiscal, diplomata etc. não seja tido como um extraterrestre. Ou, sendo mais explícito, como um criminoso que forjou uma identidade falsa, gerando toda uma situação triste como essa do caso dos diplomatas. Uma coisa muito triste para acontecer justamente na posse do ministro Joaquim Barbosa.

  4. Este relato é mais grave quando se tem em conta que os diplomatas são pessoas de destaque na sociedade, têm desembaraço com a oralidade e aparentam bom aspecto no vestiário, além de um corpo provavelmente saudável pela alimentação adequada e pelos cuidados pessoais. Ora, se eles que têm tantas vantagens em relação a outros afrodescendentes sofreram essa violência, o que poderia ter acontecido com uma pessoa pobre e mal cuidada que se aventurasse a querer entrar no STF? Isso não é apenas lamentável, é sinal de que uma grave ameaça ainda paira sobre nós afrodescentes.E pior ainda, por pessoas que com certeza têm suas origens nas classes mais massacradas, a dos trabalhadores sem qualificação, como via de regra são aqueles que trabalham nos setores de segurança.

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