O processo judicial em curso, pela massiva campanha condenatória que o precedeu, tornou-se um processo político e altamente politizado. Foi anulado o significado pedagógico e moral, que ele poderia ter para o futuro democrático do país, se o princípio da presunção da inocência fosse observado e o espírito de linchamento não tivesse sido disseminado, como foi. Não se trata de “defender” Genoino e Dirceu. Trata-se de avaliar como chegamos a uma situação que lembra a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, na era stalinista: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov”
Tarso Genro (*)
Em alguns momentos da história o Direito é testado a respeito da sua verdadeira força constitutiva na vida das pessoas, de um grupo social determinado ou de uma nação. Compartilhei com o Supremo alguns destes debates, na condição de ministro da Justiça e lembro-me de dois deles, que foram lapidares. Testaram os limites do projeto democrático em curso que, como se sabe, não partiu de uma ruptura do regime militar, mas de um acordo “pelo alto”, legitimado pelo processo constituinte, que consagrou as liberdades políticas e produziu a vigorosa Constituição de 88.
O “teste” da importância da Constituição na vida de um povo é tanto político, como jurídico. O teste mais forte, no entanto, sempre faz o “político” e o “jurídico” convergirem para o que grandes juristas designam como “força normativa da Constituição”. Esta força normativa é a síntese entre a “Constituição real” (pela qual o direito realiza-se orientado não somente pela lei, mas também pela força do dinheiro, da cultura, da possibilidade que os grupos e classes tem de influenciar os tribunais), e a “Constituição formal”, ou seja, com aquelas influências limitadas no disposto como direito positivo, declarado pelo poder constituinte.
A demarcação da “Raposa Serra do Sol” e o debate que ficou conhecido como “revisão da Lei da Anistia” (a mídia propagou errônea e deliberadamente que pretendíamos a “revisão” da Lei e não a sua “interpretação”), foram dois destes casos. Ambos poderiam ser decididos livre e coerentemente, na sistemática legal atual, para qualquer lado: poder-se-ia decidir que o território era contínuo e assim beneficiar as comunidades indígenas (que foi a decisão do STF), ou dizer que o território indígena deveria ser descontínuo e segmentado e, desta forma, beneficiar-se-ia os que ali se localizavam de boa fé, cometendo crimes ambientais e ocupando terras da União.
Tanto no primeiro como no segundo caso, dois valores se opunham. No caso “Raposa” o direito imemorial dos indígenas, de um lado e, de outro, a posse de boa fé, das famílias instaladas para produzir para o mercado e para a sua subsistência. No segundo caso (“Anistia para os torturadores”), dois valores também estavam claramente em oposição: o respeito pleno, integral e imprescritível aos direitos humanos, por qualquer estado em qualquer circunstância, de um lado e, de outro, um suposto contrato político na transição. Este contrato, segundo o caminho então tomado pelo Supremo, permitira – “legalmente” – que os promotores ou, no mínimo, os coniventes com as torturas, pudessem “contratar” a anistia para os que torturaram e mataram nos cárceres do estado. E o fizeram contra custodiados indefesos, fora do cenário da luta revolucionária, na qual estes já estavam militarmente derrotados.
A dupla e às vezes múltipla possibilidade de interpretação de um dispositivo constitucional gera oportunidades de escolha do intérprete, a partir de valores que estão pré-supostos na sua história individual e social. Nos casos de grande repercussão sobre os “fundamentos do estado de direito” (igualdade perante a lei e inviolabilidade dos direitos), estas escolhas são sempre de natureza política e balizadas pelas grandes questões históricas que o país enfrenta. Vejamos um caso interessante e muito apropriado, para se refletir sobre o que está acontecendo no país com o chamado julgamento do “mensalão”.
É um caso de direitos civis, famoso na jurisprudência da Suprema Corte Americana (109 U.S. – 1883), no qual a interpretação da Lei dos Direitos Civis de 1875 – que outorgara o direito dos negros americanos usarem hospedarias, teatros, transportes públicos e outros espaços públicos e privados – opunha dois valores bem nítidos: o sistema federal, em construção dolorosa depois de uma sangrenta guerra civil, de um lado, e, de outro, a dignidade da pessoa humana sustentada pela Lei dos Direitos Civis. Principalmente no sul do país, com a reação dos remanescentes racistas e escravagistas – cuja força política persistiu até a década de 60 do século XX – vários estados se negavam à aplicação da Lei dos Direitos Civis e se amparavam no “pacto federativo”, cujas cláusulas permitiriam a independência “interpretativa” sobre o alcance das referidas normas de proteção dos direitos civis.
Nesta atmosfera tensa, a Suprema Corte sentenciou que a 14ª. Emenda não havia dado um mandato claro ao Congresso para “proteger” os direitos civis, “senão o poder para corrigir os abusos dos Estados”. Esta decisão, que diferencia “proteção”, de “correção de abusos”, no caso concreto – das polícias, dos brancos e dos governos – contra os negros, mostra a brutal distinção na aplicação da lei e da Constituição, que pode se originar dos valores que orientam a interpretação de um Tribunal.
O Juiz Bradley – relator do processo – escolheu a visão da processualidade que, segundo ele, estaria contida na 14ª Emenda, pois estava convicto que deveria ocorrer “algum estágio” na transição do ser humano, de ‘coisa’ (o negro), para que todos chegassem à condição do ‘ser humano’ (branco), estatuto reservado para parte da população naqueles estados. O Juiz Harlan, que divergiu, denunciou a trama interpretativa: “Não posso resistir à conclusão que a substância e o espírito da recente Emenda à Constituição tem sido sacrificados pela crítica verbal, hábil e engenhosa”.
O valor “federalismo”, naquele caso concreto, foi escolhido para fundamentar uma decisão racista, “atenuando” os efeitos da 14ª Emenda, que respaldara abertamente os direitos civis e sintetizara uma “revolução democrática”, em curso na nação americana.
O Ministro Celso Mello (Relator da Extradição 633-9, República Popular da China – Pleno – DJ 16.02.01-unânime) já passou por situação análoga, na qual negou a extradição de cidadão chinês, acusado de crimes graves naquele país, porque ali os Tribunais “não levam em consideração os argumentos da defesa, nem consagram o princípio da presunção da inocência”. Neste julgamento o Ministro Celso Mello optou claramente – na escolha entre valores que se apresentam em cada processo concreto – por um valor fundante do Direito Penal, nas sociedades democráticas: “a presunção da inocência”. Ou seja, entre o valor “aplicação correta e formal do direito interno chinês”, de um lado (que seria uma das possibilidades para dar legitimidade à extradição) e, de outro lado, o valor “princípio da presunção da inocência” (que serviria para negar a extradição) o princípio da “presunção da inocência” teve o peso decisivo.
O Ministro Lewandowsky, que escolheu o princípio da presunção da inocência e o fundamentou, nos casos de Genoino e Dirceu, tem sido hostilizado, não só na imprensa como em alguns lugares públicos. O ministro Joaquim Barbosa, guindado à condição de herói nacional pela revista Veja, tem sido aplaudido e incensado pela imprensa em lugares públicos. Conhecendo e respeitando a integridade de ambos, imagino que mesmo em situações – que são meramente conjunturais – diferentes, devem estar se perguntando porquê tudo isso. Ambos cumpriram os seus deveres como Ministros da Corte mais alta da República, mas recebem reações diferenças, na sociedade e na imprensa. Não pende, sobre nenhum dos dois, qualquer mancha moral e ninguém duvida dos seus conhecimentos e da sua capacidade como juristas, mas eles tem um tratamento jornalístico e social desigual. Por quê?
Quero opinar um pouco sobre isso, porque creio estarmos num momento importante da vida democrática nacional. E a minha opinião não é sobre fatos e condutas, que determinaram o processo judicial em julgamento, porque, a não ser a respeito de Genoino, de quem fui amigo pessoal por décadas (poderia depor a respeito da sua integridade moral e sua honestidade e sobre a convicção de que não teve nenhuma conduta dolosa), não convivi, não conheço a personalidade, a vida pessoal e mesmo política de maneira suficiente, de nenhum dos outros réus. Sobre José Dirceu e os demais réus, não posso ter juízo “jurídico” sobre os fatos que ensejaram a ação penal, mas posso afirmar, também sobre José Dirceu -que é a personalidade mais forte do julgamento – que certamente foi condenado sem obediência ao princípio da presunção da inocência.
O processo judicial em curso, pela massiva campanha condenatória que precedeu o julgamento, tornou-se um processo político e altamente politizado. Foi anulado dramaticamente o significado pedagógico e moral, que ele poderia ter para o futuro democrático do país, se o princípio da presunção da inocência fosse observado e o espírito de linchamento não tivesse sido disseminado, como foi. Não se trata, em conseqüência, de “defender” – como foi inculcado no senso comum – Genoino e Dirceu. Ou de atacar, tal ou qual grupo de comunicação, ou mesmo de discutir os argumentos do Procurador Geral ou da defesa dos réus, por dentro do processo: o verdadeiro julgamento foi no paralelo político.
Trata-se, portanto, de avaliar como chegamos – em plena democracia política – a uma situação que lembra a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, na era stalinista: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov.” Lewandowky e Joaquim Barbosa estão sendo eventualmente recebidos de maneira diferente, nos lugares que freqüentam, pelos mesmo motivos: os réus já tinham sido julgados. Um, pelas suas convicções, disse que a sentença midiática estava -vejam bem- apenas parcialmente errada. Outro, pelas suas convicções, disse que ela estava totalmente certa. O julgamento judicial foi um julgamento político e a síntese, que resultou do embate entre valores pré-supostos na interpretação, foi doce para a direita política irracional que dominou a mídia, mas amarga para a esquerda que vem governando o país dentro da democracia.
O embate de valores, que ocorreu neste julgamento, é exemplar para a reforma democrática que nos desafia de imediato, foi o seguinte: de um lado o “princípio da presunção da inocência” e, de outro, o controle “unilateral da formação da opinião”, que, ao não conseguir provas suficientes para condenação, enquadrou o senso comum e o próprio Supremo, na certeza de que o julgamento é feito antes e “por fora” dos Tribunais. E, assim, serão incensados os que aceitarem este controle e serão amaldiçoados os que se rebelarem contra ele.
Talvez este julgamento tenha uma virtude: sirva para coesionar um campo democrático amplo, para atacar a principal chaga da democracia brasileira, que é o sistema político atual, fundado no financiamento privado das campanhas e nas alianças regionais sem princípio. Se não atentarmos para isso, rapidamente, merecemos este julgamento, no qual a presunção da inocência foi sacrificada no altar da “teoria do domínio funcional dos fatos”.
Na verdade, como o julgamento foi principalmente político, embora dentro de todos os parâmetros da legalidade constitucional, ele não terminará em breve. Vai continuar. E o principal erro que poderemos cometer será utilizar esta jurisprudência contra os adversários da revolução democrática em curso, desejando e propagando que eles devem ser condenados sem provas, com linchamentos prévios pela mídia. Aliás, isto é impossível, porque eles é que tem o domínio funcional dos fatos através da grande mídia.
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