Antonio Carlos de Souza Lima*
No Brasil contemporâneo, sabe-se – ou se quer saber – muito pouco sobre os 817.963 indivíduos que se autodeclararam indígenas para os pesquisadores do iBGe no Censo de 2010. sabemos que estão distribuídos em 230 povos, falando 180 línguas distintas, compondo cerca de 0,4% da população brasileira e habitando o território de todos os estados da Federação. Mais de duas décadas após a Constituição de 1988 e de sua declaração do Brasil como um país pluriétnico, é possível dizer que o “cidadão brasileiro médio” tem parcas informações sobre os povos indígenas no Brasil. Isto é reflexo da formação obtida desde o ensino fundamental até o médio, perpetuada no nível universitário, tanto na graduação quanto na pós-graduação.
Os que habitam em grandes cidades são-lhes, em geral, simpáticos, baseados em toda uma estereotipia romântica, presente em nossa literatura e reproduzida nos livros didáticos, que os coloca(va) como os proto-brasileiros – ironicamente! –, assegurando a soberania portuguesa e brasileira sobre o imenso território do país, apagando o passado não só colonial, mas também do Brasil que ecoa ainda hoje em grandes empreendimentos como a usina Hidrelétrica de Belo monte, que melhor se caracteriza pelas palavras invasão, genocídio, espoliação e escravidão.
Quando lhe é simpática, a mídia os mostra como habitantes das florestas, em simbiose com a natureza, o que ou não existe, ou se aproxima apenas de algumas situações na Amazônia, quando temos indígenas em todos os pontos do país, inclusive nas nossas grandes capitais. Mas ainda quando nelas habitam, mantêm vínculos com suas terras de origem: são populações autóctones, cujos direitos à terra a legislação reconhece, são originários, antecedem a presença de brancos e negros vindos pela colonização e o tráfico de africanos.
Os povos indígenas, cujas variadas formas de ação política viabilizaram mudanças significativas tornadas lei na Constituição de 1988 e na ratificação da Convenção 169 da organização internacional do trabalho, têm sido marcos contra desmandos dos poderes públicos que em todo esse período não cessaram de existir. Os povos indígenas pensam e reagem a tais imagens com indignação e com a clareza de que precisam se fazer presentes na esfera pública brasileira. Para isso, precisam estar preparados, como dizem muitas vezes, substituindo arcos e flechas, bordunas ou enxadas e machados, por canetas, computadores e diplomas.
Em função de muita luta desde os anos de 1970 até hoje, os indígenas tiveram suas demandas por terra materializadas em 678 terras indígenas dispersas por quase todos os estados da Federação brasileira, numa área total de
112.703.122 hectares. Na região da Amazônia legal, localizam-se 414 dessas terras, num total de 110.970.489 hectares que ocupam 21,73% desse espaço do território brasileiro, segundo estimativas do instituto socioambiental. As terras indígenas perfazem em torno de 13,1% de todas as terras brasileiras, sendo das mais ricas – e das mais cobiçadas – em recursos naturais (biodiversidade e recursos minerais), e das raras áreas preservadas num país cada vez mais devastado pelo extrativismo selvagem, pelas queimadas de florestas para transformá-las em carvão, ou abrir pasto a gado, à cana e à soja pelo agronegócio, pela exploração mineral. Na prática, muitas delas estão invadidas e os povos indígenas nelas encerrados não têm contado com políticas governamentais de suporte à sua exploração em moldes sustentáveis. Quando chegamos a estados da Federação de intensa presença indígena, sobretudo em municípios próximos a esses, de nossos “guardiões ancestrais do território”, os indígenas passam a inimigos que estariam melhor mortos, que são obstáculos ao progresso, à melhoria do Brasil, que há “muita terra para pouco índio”, e que “lugar de índio é em aldeia e não na escola”.
Em 2004, a Fundação Nacional do Índio estimava (imprecisamente) em 1.300 estudantes a presença de indígenas no nível superior. De lá para cá, o MEC, cumprindo determinações do Plano nacional de educação e de outras diretrizes que consolidavam os direitos indígenas a uma educação intercultural, bilíngue e diferenciada, investiu na abertura de editais que propiciaram a criação de 26 cursos de licenciatura intercultural dispersos pelo Brasil, atuando em regimes muito específicos de acordo com as realidades indígenas específicas a que se destinam. E, sim, nesse meio tempo, até a decisão de maio do STF, as ações afirmativas sob a forma de cota proliferaram, e temos hoje, na avaliação do MEC e dos movimentos indígenas, em torno de 8.000 estudantes indígenas no ensino superior.
Assim, se é indiscutível que a luta pelas cotas empreendida pelo movimento negro foi essencial para a ampliação da presença de indígenas na universidade, a demanda por inclusão no mainstream sociocultural, de formação para melhoria das condições de renda, de reparação histórica, tal luta não esgota nem dá conta das demandas indígenas no ensino superior. É preciso chamar a atenção de que a pauta das ações afirmativas não pode ser a mesma para todos os ditos “excluídos”. Não existe uma mesma e única exclusão, as razões históricas são distintas, os sistemas de preconceitos idem. Se tanto estudantes negros quanto estudantes indígenas precisam de suporte sob a forma de bolsas especiais, ou de acompanhamento de supervisores, que lhes permitam ultrapassar a necessidade de trabalhar em tempo integral e, em geral, o fraco ensino fundamental e médio por que passaram, se considerarmos que os indígenas podem ser falantes nativos de línguas ágrafas, tendo sido portadores de cosmologias que explicam o universo de modo radicalmente distinto da nossa forma, os pontos de contato e a grande proximidade aparente da exclusão ficam para trás.
Em primeiro lugar, na demanda indígena pelo ensino superior está colocada a busca de reconhecimento da necessidade do diálogo com seus conhecimentos tradicionais, o que implicaria uma verdadeira revolução do sistema de ensino superior no país, surgimentos de outros saberes, outros cursos, outras grades curriculares. Em segundo lugar, eles têm reivindicado a universidade enquanto espaço de formação qualificada de quadros não apenas para elaborar e gerir projetos em terras indígenas, mas também para acompanhar a complexa administração da questão indígena no nível governamental, distribuída entre diversos ministérios. Querem ter condições de dialogar, sem mediadores brancos, pardos ou negros, com essas instâncias administrativas, ocupando, de modo qualificado, autônomo e em prol de suas coletividades, os espaços de representação que vêm sendo abertos à participação indígena em conselhos, comissões e grupos de trabalho ministeriais em áreas como as de educação, da saúde, do meio ambiente, da agricultura, dos direitos humanos, para citar as mais importantes. desejam poder viver de suas terras, mesmo quando fora delas, aliando seus conhecimentos com outros oriundos do acervo técnico-científico ocidental, que lhes permitam enfrentar a situação de definição de um território finito.
Para isso, querem apreender seletiva e criticamente os conhecimentos da “grande tradição ocidental”. Querem participar de uma vida política da qual não se percebem parte, fazê-lo de modo a entendê-la e instrumentalizá-la, sem incorporá-la, senão ao seu modo e na medida de suas tradições e vontade de mudança. Bastam as cotas? Cremos que não. Há muito por começar a fazer.
* Antonio Carlos de Souza Lima é Co-coordenador do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED)/Setor de Etnologia/Departamento de Antropologia do Museu Nacional da UFRJ
–
http://www.flacso.org.br/portal/infoflacso/infoflacso30/GEA_OPINIAO_N5.pdf
Enviada por Henyo – IEB para a lista superiorindigena.
Urgência e abragência temática de alta necessidade numa abordagem muito bem cingida e articulada. Parabéns Prof. Antonio Carlos de Souza Lima, pelo excelente artigo!