O que vem a ser um ato moral? Em que consiste a conduta ética? No fato de que a pessoa, embora sabendo que uma determinada conduta lhe traz prejuízos, assume-a, porque respeita um determinado valor.
Assim se entende desde que Immanuel Kant conceituou-a, ainda no século dezoito. Paulo Francis, o famoso jornalista de vários veículos de imprensa e da Rede Globo, deu um belo exemplo de conduta ética.
Ele, que era correspondente da BBC em Londres durante a Segunda Guerra mundial, contava dos constantes bombardeios que a cidade sofria de aviões alemães.
Um deles causou um grave dano ao sistema de abastecimento de água da cidade. Foi preciso implantar o racionamento, como meio de conseguir oferecer a toda a população um mínimo de água para atender suas necessidades mínimas.
Em um artigo de jornal, Paulo Francis contou que, assim que isto aconteceu, as autoridades inglesas pediram à população londrina que não usassem água no banho acima de certo limite. No mesmo dia, a dona da pensão em que morava traçou uma linha no banheiro, marcando o limite possível.
Diz Paulo Francis que, embora estivesse morrendo de frio, e sabendo que sozinho morrendo de frio e sozinho no banheiro ninguém poderia vê-lo, não se atrevia a ultrapassar o limite marcado, por respeito ao espírito de luta da população londrina.
A circunstância de não estar sendo vigiado é essencial para a configuração da conduta ética. As pessoas crescem moralmente sempre que praticam um ato ético. Por isso, todos os elogios devem ser dados aos alunos do Colégio Rio Branco, da cidade de São Paulo, que protestaram contra a instalação de câmeras nas salas de aula.
Tal medida, típica das situações de desconfiança, além de deteriorar completamente as relações de respeito recíproco, que devem existir entre alunos e mestres, dificulta a possibilidade de comportamento ético dos alunos. Pois estes ficarão sempre em dúvida se, por exemplo, renunciaram a fazer uso da cola por respeito a si próprios e aos demais colegas ou porque estavam sendo vigiados e poderiam ser punidos caso o fizessem.
Nota dez para os alunos; nota zero para a direção.
Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.
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Não concordo com a apropriação descontextualizada da filosofia kantiana para dar suporte a essa tese.
De acordo com Kant, duas diferenciações aí se fazem necessárias: a virtude e o Direito. A virtude trata do que devo fazer para coagir a minha própria vontade a se conformar e, se possível, aderir ao dever, independentemente se há ou não alguém me vigiando. O Direito, pelo contrário, trata do que posso fazer para obrigar a vontade do outro a se conformar ao mesmo dever, independentemente de ele querer ou não se conformar.
Realmente o dever deve ser cumprido por respeito ao dever e não porque há alguém vigiando, e quem assim pelo menos se esforça para agir mostra que é virtuoso. E quem é virtuoso vai se adequar ao Direito independentemente de estar sendo vigiado. Mas o Direito propriamente dito não pode contar com a virtude, porque se é certo que muitos de nós somos virtuosos (e a maioria de nós o é), também não é menos certo que sempre pode aparecer (e aparece) alguém não virtuoso e que não vai se conformar ao dever se não for vigiado. O Direito deve ser preservado, e se alguém não é capaz de exercer uma coação interna da própria vontade (ou seja, não é virtuoso), deve sofrer a coação externa do Direito. O que tem a temer aquele que é virtuoso com referência à instalação das câmeras? Nada, porque o comportamento dele não vai variar com ou sem as câmeras. As câmeras servem para controlar os não virtuosos, primeiro para que eles não violem a Lei e se conformem ao Direito, e segundo para assegurar a todos (virtuosos ou não-virtuosos) que seu direito não estará sendo violado por alguém mal intencionado. Se fôssemos confiar somente na virtude (que aliás, não vem estampada na testa de ninguém, mas se revela só nos atos), não precisaria sequer ficar um professor na sala durante a aplicação das provas; os alunos poderiam inclusive levá-las para casa, mediante a promessa solene de trazê-la no dia seguinte, resolvida, respeitando o tempo previsto para fazer a prova e não colando, disparate tal que ninguém ainda ousou se comprometer. E em uma prova de concurso público então, o que dizer? Quem é que garantiria a lisura do processo confiando unicamente na virtude dos candidatos?
Mas não é só isso. Todos sabemos que há um problema muito recorrente nas escolas, que é o bullying, que ocorre sempre, invariavelmente, longe da presença de alguma autoridade (os pais ou os inspetores e professores da escola). A presença de câmeras é também uma maneira de fazer a autoridade escolar mais presente e ajudar a coibir o bullying. Qual a diferença entre uma autoridade parcialmente presente para uma autoridade onipresente em um ambiente público, senão que esta é mais eficiente e eficaz do que aquela? Não se trata aqui, portanto, de transformar ninguém em virtuoso, mas apenas de garantir o Direito, que independe do esforço empreendido para as escolas ensinarem a virtude.
E já que Kant foi citado, há também uma máxima kantiana que muitos se esquecem, estabelecida em À Paz Perpétua: “todas as ações que se referem ao direito de outros homens, cujas máximas não resistem à publicação, são injustas.” Ora, a escola é um ambiente público, diferentemente de nossas casas ou outros ambientes privados. Tudo o que ocorre ali afeta (ao menos potencialmente) o direito de outros homens (em geral dos outros alunos). Tudo o que ali ocorre, portanto, deveria resistir à publicação, e o ambiente público não deveria ser um lugar para a realização daquilo que é privado (por exemplo, ninguém deveria trocar de roupas em um ambiente público, porque isso é uma atividade privada, de interesse privado e que não afeta o direito de outros homens, sendo, portanto, coisa para se fazer em um ambiente privado e, aí sim, a instalação de câmeras seria um absurdo). Se algo ocorre em um ambiente público (que potencialmente afeta o direito de todos ou de alguns), e não resiste à publicação, já pode ser considerado aprioristicamente injusto. Qual a diferença então entre algo resistir à publicação e ser público de fato? Somente aquilo, no ambiente público, que não resiste a publicação, ou seja, tudo aquilo que é injusto, tem algo a temer das câmeras.
É claro que as escolas podem e devem ensinar aos seus alunos a serem virtuosos, ensiná-los a se conformarem ao dever por respeito ao dever, e não porque podem estar sendo vigiados. Essa é a missão da escola, assim como dos pais, e que ambos têm sobremaneira negligenciado em todos os tempos, e por isso torna-se necessária a coação externa do Direito. Mas isso não significa que se deva anular os mecanismos do Direito para obrigar a todos, virtuosos ou não virtuosos, querendo ou não, gostando ou não, de se conformarem às Leis. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Uma coisa é ensinar a virtude, e outra é garantir o Direito.
Não concordo, portanto, com essa demonização das câmeras nas escolas. Como eu não quero e nem penso em violar o dever em sala de aula, como todos os meus atos em sala de aula podem ser publicados, as câmeras seriam, para mim, não só indiferentes, mas bem-vindas, não para garantir que eu vou cumprir com o meu dever (porque eu o faria independentemente de haver câmeras), mas para garantir que o meu direito não será violado. Só aquele que pensa em não cumprir com o seu dever (ou seja, quem não é virtuoso) é que deveria estar preocupado com câmeras instaladas em ambientes públicos.