À Presidenta Dilma Rousseff
Aos governadores dos Estados no Semiárido Brasileiro
Aos Prefeitos Municipais
À População Brasileira
“A luta contra a miséria e a fome tem dupla dimensão: a
emergencial e a estrutural. A articulação entre as duas
dimensões é complexa e cheia de astúcias. Atuar no emergencial
sem considerar o estrutural é contribuir para perpetuar a miséria.
Propor o estrutural sem atuar no emergencial é praticar o
cinismo de curto prazo em nome da filantropia de longo prazo”.
(Betinho)
O Semiárido brasileiro neste momento está mergulhado em uma das secas mais cruéis e devastadoras dos últimos 30 anos. Da chegada dos portugueses aos dias atuais, já se somam 72 grandes secas com características similares.
As secas são previsíveis e seus efeitos sobre a população são extremamente graves com consequências em todos os setores da região. Quadro que não é nenhuma surpresa para quem conhece a história e realidade do Semiárido brasileiro.
Estamos diante de um momento extremamente grave de longa estiagem, uma das maiores e mais intensas das últimas três décadas, que deverá se prolongar até 2013. Em situações como essa os grandes proprietários têm prejuízos, mas os sem terra e pequenos agricultores são os que mais sofrem perdas que colocam em risco as suas vidas, a de seus rebanhos e suas reservas de sementes e alimentos.
Mais de 500 municípios encontram-se em estado de emergência. As plantas cultivadas no entorno das casas, quintais produtivos, estão morrendo, os rebanhos dizimados e as reservas de sementes, organizadas em casas e bancos comunitários ou familiares, correm o risco de desaparecer frente à necessidade de alimentação da população. Desde o ano passado não chove o suficiente para acumular água nas cisternas para consumo da família e para a produção.
O quadro atual é grave! Há que se priorizar o socorro imediato às famílias que estão sem água, mas há a mesma urgência em investir em ações estruturantes para que essas famílias possam enfrentar os períodos de longa estiagem, cíclicos e previsíveis, sem passar fome ou sede.
No Brasil e no Semiárido, as secas sempre foram oportunidade fértil para as oligarquias aumentarem suas posses de terras, se locupletarem dos recursos públicos, conseguirem, com recursos públicos, obras vultosas e caras para beneficiar suas propriedades e de seus comparsas políticos, enraizarem seu poder político à custa da miséria da população, exposta em filas à busca de gotas de água e migalhas de alimentos. Aliado a este quadro, as secas expulsam de suas terras e de seu torrão natal centenas e milhares de cidadãos do Semiárido, que se tornam errantes na busca e na esperança de melhores dias.
A oligarquia e os políticos dela oriundos e a ela ligados sempre explicaram este fenômeno como algo de responsabilidade da natureza, esquecendo-se, intencionalmente, das decisões políticas deles próprios e dos governantes. Creditam, assim, à natureza, aquilo que é responsabilidade e resultado das decisões políticas.
Esta seca, no entanto, embora ainda mantenha enraizadas muitas destas mazelas e injustiças, traz consigo outro viés que tem tornado a população mais capaz de resistir, de ser cidadã e deixar de ser manipulada.
Efetivamente muitas políticas e programas se espalham pelo Semiárido, tornando-o, de certo modo, diferente, mais humano, mais adequado à convivência com o clima e suas intempéries. Evidentemente nem todos os programas oficiais a que nos referimos se revestem de características de convivência com o Semiárido, mas todos eles dão sua parte para a garantia mínima da dignidade das pessoas. Eis alguns exemplos:
a) O bolsa família, acrescido do bolsa estiagem, enquanto ações emergenciais, tem desempenhado papel chave na alimentação das pessoas, sem que para isso necessitem de engordar filas de miseráveis, mendigando alimentos que, mesmo adquiridos com recursos públicos, eram distribuídos por prefeitos, vereadores e cabos eleitorais, reforçando seu (deles) poder político.
b) A extraordinária malha de captação de água construída no Semiárido através das cisternas, quer sejam elas da ASA, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), dos Governos Estaduais e Municipais, da Fundação Banco do Brasil e de vários outros atores e parceiros; esta malha armazena milhões de litros de água outrora literalmente desperdiçados.
c) A malha de captação e distribuição de água para produção e dessedentação de animais, cisternas calçadão, barragens subterrâneas, tanques de pedra, barreiro-trincheiras, bombas d’água popular, outros, financiada quer pelo poder público, quer por várias parcerias.
d) As adutoras e processos semelhantes de abastecimento da população.
e) A decisão da Presidenta da República de universalizar o acesso à água para todos os cidadãos do Semiárido, o que implica, entre outras medidas, na construção de quase 700 mil cisternas.
f) As ações do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e de compra da alimentação escolar (PNAE), que aos poucos estrutura propriedades, criou e enraizou bancos de sementes e processos os mais variados de armazenamento de grãos e sementes.
g) O crédito destinado à agricultura familiar e os processos de assistência técnica, aumentados significativamente nos últimos anos, embora ainda carentes de uma adequação mais radical à realidade do Semiárido e Agroecologia.
h) Os processos agroecológicos implementados especialmente devido à teimosia de organizações não governamentais e iniciativas locais.
i) O Seguro Safra.
j) As linhas de crédito oficiais para a seca, anunciados e já em implementação nas regiões e que aumentam a capacidade dos agricultores de resistir e conviver com o Semiárido, manter vivos seus animais, reestruturar suas propriedades.
Todos estes processos e muitos outros realizados e implementados no Semiárido pelas experiências de fundos rotativos solidários, pela economia solidária, pelos intercâmbios entre agricultores pelas experiências variadas oriundas da criatividade dos agricultores, foram, gradativamente se tornando a base para que os agricultores do Semiárido se tornassem cada vez mais sujeitos de sua história.
A ASA se vê na construção desta caminhada diferente, participando de muitos destes processos mesmo com críticas aos mesmos, buscando promover a partilha no lugar da concentração, disseminando as pequenas obras em contrapartida aos projetos faraônicos, valorizando o camponês enquanto sujeito protagonista, portador de direitos, responsável por sua própria libertação, desencadeando outro tipo de desenvolvimento, sustentado e sustentável, que tem por fundamento a participação, a organização, a educação e o empoderamento das pessoas.
Isso, no entanto, se expressa melhorias, ainda está longe de ser suficiente. Ao contrário, assistimos constantemente uma luta dialética entre a proposta de convivência com o Semiárido, que diríamos estar na raiz das ações que refletimos acima, e daquelas de combate à seca, responsáveis pela miséria implementada do Semiárido e pela concentração das riquezas.
Diante desse quadro, a ASA vem a público refletir e propor o que se segue:
I – Ações emergenciais e o cuidado cidadão.
1. Abastecimento imediato e contínuo das cisternas com água tratada distribuída gratuitamente pelas empresas públicas estaduais e municipais de abastecimento de água e/ou exército. Onde não for possível abastecer com água tratada, que seja acompanhada de hipoclorito para que as próprias famílias possam fazer em casa a filtragem e o tratamento. As cisternas, efetivamente, assumem duas funções: armazenar água das chuvas e ser recipiente de armazenamento e reivindicação de água por parte da população quando não chove.
2. Cuidado cidadão para que este abastecimento, feito enquanto direito e com recursos públicos, não se torne instrumento de manipulação política e de enriquecimento ilícito. Infelizmente já há sinais de que esta prática não foi extinta, dado que começa a se manifestar e atuar em determinados espaços e municípios.
3. Conclamamos todas as nossas comissões municipais de água para que realizem o controle social destes processos e denunciem os desvios para a devida punição.
4. Apelamos aos Ministérios competentes para que instituam disque denúncia por onde os cidadãos possam denunciar estas práticas e para o Supremo Tribunal Eleitoral no sentido de estabelecer uma Campanha: “NÃO TROQUE SEU VOTO POR ÁGUA. ÁGUA É DIREITO SEU”. O Brasil tem o dever ético de não consentir que as medidas de emergência e socorro às pessoas se transformem em instrumentos de manipulação e desvirtuação das eleições.
5. Abastecimento das cisternas calçadão e outros instrumentos de armazenamento de água visando fundamentalmente a dessedentação animal.
6. Controle das irrigações, de modo especial daquelas mais predadoras.
7. Liberação imediata dos créditos especiais no sentido de dotar os agricultores de capacidade de alimentar seus animais e manter suas propriedades e negociação dos débitos pendentes, se necessário.
8. Cuidado todo especial para que os créditos liberados não sejam sempre e continuamente aqueles maiores e mais volumosos – tendência dos bancos – o que tornará inócua a linha de crédito da agricultura familiar e poderá ser um instrumento de enriquecimento.
II – Ações Estruturantes
A convivência com o Semiárido que, aos poucos, vai transformar a região numa terra próspera e feliz, não se concretiza e realiza através de ações emergenciais. Estas são importantes, mas passageiras. Os olhares devem estar voltados para as dimensões estruturantes. Neste contexto de seca e sabendo, igualmente, que outras virão e que a história cobrará de nós quais providências tomamos para uma melhor convivência com o clima, conclamamos os poderes públicos a:
1. No campo da captação da água.
a) Continuidade imediata do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da ASA, e início imediato das ações de cisternas de consumo humano e de produção contratadas entre o MDS e os Estados. Não se justifica que, havendo recursos disponíveis, como é o caso, os Estados e consórcios municipais posterguem indefinidamente o início destas atividades que dotarão milhares de famílias de estruturas essenciais à convivência com o Semiárido.
b) Suspensão imediata do processo de cisternas de polietileno (plástico/PVC). Não se justifica, em hipótese alguma, que o Estado Brasileiro opte por cisternas de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) de custo, adquiridas de multinacionais, ao invés das cisternas de placas que utilizam produtos adquiridos no mercado local, tem tecnologia dominada pelos agricultores, utilizam mão-de-obra local, são mais baratas (menos de 50% do custo das outras) e tem eficiência comprovada. Mais ainda, isso não se justifica quando se dispõe no país de uma imensa malha de organizações capazes de atuar nestas construções.
c) Limpeza de aguadas e açudes, numa perspectiva de armazenamento das águas das chuvas que virão.
d) Criação de um grande programa de escavação de pequenos barreiros (familiares) voltados a dotar as propriedades dos agricultores familiares de maior capacidade de captação e armazenamento de água.
e) Implementar as adutoras – ou serviços de água – previstos no Atlas de Águas do Nordeste (Agência Nacional de Águas), dando prioridade àqueles considerados emergenciais, definidas em consulta à sociedade civil.
f) Rever a política de irrigação que demanda o dinheiro público e constrói canais para grandes empresas, mas não abastece as populações com necessidades básicas de consumo humano. É necessário lembrar que a Lei Brasileira de Recursos Hídricos (9433/97) define que a disponibilidade de água deve priorizar o abastecimento humano e a dessedentação dos animais.
2. No campo do acesso à terra.
O processo da seca não se manifesta apenas na questão da água. Ele se manifesta e se agudiza na concentração da terra. Em momentos como este que vivemos se nota, com exímia clareza, a diferença no processo de convivência, entre uma propriedade maior e uma mini, como a maioria do Semiárido.
Uma propriedade maior, que ao menos se aproxime do módulo fiscal de 70 hectares previsto em Lei, tem reservas alimentares humanas e para animais, pode ter variadas modalidades de armazenamento de água, plantios e criatórios diversificados e assim conviver melhor. Uma propriedade com dois hectares ou pouco mais, como a maior parte do Semiárido, se vê forçada a diminuir seus animais para não morrerem, consome rapidamente suas reservas de água e alimentos, consome suas sementes, morre.
É lamentável que o Governo Federal não tenha tomado a si a urgente tarefa de realizar uma reforma agrária no Semiárido, reforma esta adequada à sua realidade.
Convenhamos que sem o acesso à terra, dificilmente os habitantes do Semiárido terão garantida sua saída da situação de extrema pobreza em que se encontram.
Conviver com o Semiárido é ter acesso à terra e nela viver bem.
3. No campo da assistência técnica e crédito.
A erradicação da miséria (ousado e essencial programa da Presidenta Dilma), a convivência com o Semiárido e a vida digna neste espaço andam de mãos dadas.
Estruturalmente precisamos de uma assistência técnica sistemática, constante e processual, em moldes e metodologias agroecológicas, que resgatem e respeitem os saberes dos agricultores e com eles construam os novos conhecimentos necessários para a mudança da realidade do Semiárido.
É lamentável e inaceitável que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) não realize chamadas públicas suficientes para dar cobertura aos agricultores do Semiárido, leve mais de um ano para celebrar contratos com organizações classificadas nas chamadas públicas e não leve a sério as chamadas existentes. Assim é que a maior parte das chamadas do Semiárido está engavetada.
Este comportamento está desestruturando as organizações e afastando da assistência técnica centenas de pessoas que muito teriam a contribuir na lógica da convivência com o Semiárido e que poderiam, neste momento, estar atuando com mais afinco no socorro aos agricultores, inclusive, para que eles possam acessar melhor as políticas existentes.
O crédito, por sua vez, precisa ser cada vez mais adequado à convivência com o Semiárido e dimensão agroecológica, fugindo da linha hoje predominante de cadeias produtivas.
4. No campo da comercialização, venda de produtos e bancos de
sementes.
As experiências do PAA e PNAE em muito contribuíram, até hoje, para fortalecer as infraestruturas produtivas das unidades familiares e autonomizar a agricultura familiar. São inúmeras as famílias agricultoras que isso testemunham e que, por esta razão, hoje estão fora da miséria e melhor convivendo com o Semiárido. Faz-se necessário, assim, ampliá-las, em especial nas modalidades executadas diretamente com as famílias e associações comunitárias.
Outro instrumento importante que necessita ser potencializado são as feiras locais, nas quais os agricultores familiares vendem seus produtos, garantindo, assim, o escoamento dos mesmos. O Semiárido e seus agricultores ainda se ressentem de uma linha de crédito para aquisição de equipamentos para estruturação destas feiras.
Estruturar casas comunitárias de sementes e apoiar a aquisição, armazenamento e distribuição de variedades locais são também medidas essenciais para a autonomização e sustentabilidade da agricultura familiar e a garantia da segurança alimentar e nutricional.
Outras secas virão. A história continuará cobrando. Podemos passar para ela como cidadãos ou vilões.
Este o nosso dilema. Não podemos permitir, em hipótese nenhuma, que a seca que se apresenta e agudiza, seja oportunidade ou justificativa para que deixemos de lado a linha estruturante de convivência com o Semiárido, que reconhece nos agricultores os sujeitos de suas próprias histórias e de suas mudanças, e enveredemos pelo assistencialismo barato, desestruturador das pessoas e grupos, embora fácil de realizar.
A ASA conclama todas as suas entidades e técnicos/as a que, com mais veemência, determinação e afeto, possam dar conta das ações que estão a nosso encargo na ampliação da rede de captação e distribuição de água, na dinamização de bancos de sementes, em estar a serviço dos agricultores informando-os das políticas e medidas a que têm direito neste momento de seca, assim como a fazer o controle social da boa aplicação dos recursos públicos destinados ao seu socorro e, assim, continuando a construção da convivência com o Semiárido. A grande capilaridade de nossa rede estará, mais do que nunca, a serviço dos agricultores e agricultoras familiares.
Cientes do forte papel das organizações sociais sem as quais as mudanças e as grandes conquistas não se efetuam, conclamamos todos os movimentos e organizações sociais do Semiárido Brasileiro para fiscalizar e denunciar candidatos/as que fizerem uso eleitoreiro de carros pipa ou quaisquer outros benefícios que as famílias tenham direito de acessar.
Conclama também os poderes públicos a que, deixando de lado a burocracia asfixiante que impede o Governo de agir com rapidez e eficiência, possa estar a serviço dos que sofrem, velando para que os recursos sejam bem aplicados e, em nenhuma hipótese, possam ser eleitoreiramente utilizados, ressuscitando práticas hediondas que povoam a nossa história.
Conclama todos os cidadãos a que, olhando criticamente o fenômeno da seca, nele não localizem miseráveis, incapazes, esmoleres e recebedores de nossa compaixão e doação do supérfluo, mas cidadãos que sempre tiveram seus direitos negados durante séculos e que, não obstante, lutaram e estão conseguindo implantar no Semiárido a política da convivência, que faz desta seca uma seca diferente.
O Semiárido não precisa de bondade. Precisa de justiça, solidariedade e de que os direitos de seus filhos e filhas sejam respeitados.
Deste modo, o que o Semiárido quer é a continuidade e aprofundamento da política de convivência com o Semiárido e de que seja cada vez mais afastada e erradicada a política de combate à seca.
Semiárido Brasileiro, maio de 2012
Coordenação Executiva da Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA)
Enviada por Diosmar Filho.