A verdade e o rap

João Paulo

Depois de muita conversa, adiamento, confrontação, finalmente foi empossada a Comissão da Verdade (CV). Foram meses de demora, o que mostra que se trata de uma organização sensível à questão política, que precisou por isso passar pelas etapas naturais da discussão e da busca do consenso mínimo para garantir a efetividade de sua ação. No entanto, na escala histórica, esses quase seis meses são apenas parte de um processo mais longo de obscurecimento dos fatos que devem estar no foco da comissão. É porque existe mentira plasmada no tempo que é necessário um esforço de Estado para se restabelecer a verdade.

A comissão é plural, com integrantes de várias áreas da vida pública e da sociedade, com juristas, advogados, especialistas em direitos humanos e até uma psicanalista. Tem como período definido de ação, de acordo com a lei que a instituiu, a apuração dos fatos entre 1946 e 1988. É claro que o fulcro do trabalho – e razão de ser da Comissão da Verdade – são os crimes ocorridos contra os direitos humanos na ditadura militar instalada em 1964. Recuar a 1946, mesmo que pareça ser uma ampliação, poderia ter um inevitável toque diversionista. Os integrantes do grupo, no entanto, já deixaram claro que estão atentos à possível manobra.

Há alguns elementos que devem ser objeto de permanente reflexão, de modo a garantir a força do trabalho da comissão. Em primeiro lugar, é necessário uma postura de humildade com relação à instalação da nossa CV. Temos o que aprender. O Brasil entra tarde num grupo que tem marcado a história recente de vários países saídos de períodos de ditadura. São cerca de 40 comissões semelhantes em funcionamento no mundo, o que deixa um patrimônio de experiências que precisa ser levado em conta. Não é possível, como muitos defenderam num primeiro momento, dar à nossa história um condão de cordialidade que ela não tem, nem investir na Lei da Anistia uma autonomia que ela não possui. Nada está resolvido nem pacificado no Brasil quando se trata da recente ditadura militar.

Outro aspecto que precisa ser sublinhado é a independência necessária ao trabalho da comissão. O fato de ter sido instituída por um governo não vincula a linha de investigação a interesses momentâneos, nem cria subordinação de qualquer natureza. A CV é um organismo de Estado. Como setor autônomo, não pode se submeter à tutela de nenhum órgão público, nem prescindir do apoio irrestrito a seu trabalho. Isso vai obrigar – na realidade já está obrigando – os seus integrantes a definir formas republicanas, isentas e transparentes de ação, instituindo uma funcionalidade que reforce a cada momento o sentido da comissão. A isso se soma a definição por natureza investigativa e não punitiva da CV. O que significa avanço – e não limitação. Não possuir poder judicial dá ainda mais responsabilidade ao trabalho de apuração das violações e de cobrança das ações punitivas aos órgãos responsáveis.

Talvez o ponto mais sensível, mas que precisa ser equacionado com firmeza logo no início dos trabalhos do órgão, seja a criação fantasmagórica de um passado irreal de uma guerra civil na sociedade brasileira. Por essa análise, que teima em se apresentar a todo momento, o Brasil viveu uma cisão entre dois projetos, que se traduziram num confronto, com vencedores e derrotados. De um lado as organizações de esquerda responsáveis pela guerrilha; de outro o Estado comandado pelos militares. Ao contrapor duas forças aparentemente homogêneas, fica de fora o fato de que o país vivia uma ditadura e que o “outro lado” foi dizimado em ações violentas exercidas pelo próprio Estado, que prendeu, torturou e matou.

São exatamente esses os crimes que estão identificados no artigo terceiro da lei que criou a Comissão da Verdade: torturas, desaparecimentos e assassinatos. Com isso, o papel da comissão não é arbitrar a memória de uma disputa entre vencedores e vencidos, mas entre crime e Estado de direito. A ação dos grupos armados que combateram a ditadura militar não está em questão. Eles já foram condenados e punidos de forma cruel e desumana. Não há lugar para falar por isso em revanchismo, já que a simples consideração da legalidade dos atos que violam os direitos humanos, exercidos por agentes públicos, fere a razão de ser do Estado. A ideia de responsabilizar militares por desmandos, algo que faz parte do trabalho de outras comissões na América do Sul, por exemplo, parece ao brasileiro um excesso, como se o trabalho do esquecimento funcionasse como uma espécie de luto. A recuperação da imprescritibilidade das violações dos direitos humanos é condição para recuperação, nas consciências, do grau de violência que precisamos rejeitar incondicionalmente.

Por fim, no grande trabalho que a CV terá pela frente há um que, entre todos, é o mais profundo: o estabelecimento da cadeia de poder que gerou a tortura e suas consequências teratogênicas na vida pública e no imaginário do Brasil. A comissão vai ter que ir além da identificação muitas vezes personalizada do torturador (o que leva a tornar o crime da tortura uma ação patológica) para estabelecer o fio que leva ao comando do horror instalado no país. Isso significa não apenas condenar o ato e seu executor, mas a lógica política que permitia que ele se tornasse uma ação de Estado. No limite, isso significa responsabilizar autoridades da época, muitas delas hoje encasteladas em falsas biografias de paladinos da liberdade. A alta oficialidade e os políticos que deram condição de funcionamento desse crime contra a humanidade são hoje pessoas “respeitáveis”, pareadas ainda com outros segmentos, igualmente ciosos de sua distinção, como os empresários e representantes de governos estrangeiros que deram apoio e dinheiro para a instituição da tortura como política de Estado.

Esse não é o limite da verdade. Talvez seja seu ponto mais fundamental.

Canção na delegacia

No começo desta semana Belo Horizonte, cuja administração pública vem se notabilizando por sua alergia ao povo, presenciou mais um evento que envergonhou a cidade nascida com a República. Em um evento (Palco Hip-Hop) que faz parte de uma ação da própria prefeitura, o Festival de Arte Negra, o rapper Emicida foi detido e levado à delegacia por desacato à autoridade. O crime: uma canção (Dedo na ferida) e o discurso dirigido à plateia contra a ação da polícia na desocupação das áreas do Pinheirinho (em São José dos Campos, São Paulo), e da ocupação Eliana Silva, no Barreiro (mesma região onde se realizava o show), em BH.

Emicida manifestou com veemência sua discordância da ação policial na desocupação das áreas, incitando o público a deixar claro que também não concordava com a forma como foi feita. No boletim de ocorrência que foi apresentado a ele na delegacia sua fala foi deturpada, o que fez com que ele se negasse a assinar o documento. O rapper é conhecido no meio artístico por sua atitude serena e pelo discurso forte. Diferentemente dos artistas do gênero nos EUA, não faz a linha gangsta, mas assume a vertente que fez história na cultura popular brasileira e deu origem ao que hoje chamamos de MPB. Chico Buarque, quando falou do fim da canção, fez referência a essa nova voz que vem das periferias e que aponta outro papel para a arte e cidadania.

A ocupação

Eliana Silva tinha 350 famílias cadastradas em programas de moradia, se instalou numa área devoluta (se era pública e de preservação, era patente a incúria da PBH), de forma pacífica e ordenada. Ao cumprir a reintegração de posse, a Polícia Militar obedecia a ordem judicial, mas o fazia contra a outra ordem também constitucional, que determina a função social da propriedade. A indignação de Emicida, que é a de milhares de pessoas da cidade, precisa ser considerada por quem é responsável pelo problema de moradia na cidade e por quem sentencia contra os sem-teto.

A Comissão da Verdade não é um trabalho com o passado, mas um alerta para os crimes que vamos cevando no presente. Como disse Emicida, “somos todos Eliana Silva”.

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/05/19/interna_pensar,36051/a-verdade-e-o-rap.shtml. Enviada por José Carlos.

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