Os índios e a floresta

Pesquisadora diz que, quando a comunidade indígena de uma localidade tem o controle de gestão de suas terras, a natureza é respeitada

Por Sandra Cristina de Souza*

Se observarmos no Google Earth, o mapa referente ao Posto Indígena Terena Água Branca, que inclui as aldeias Brejão, Água Branca, Taboquinha e Cabeceira, no município de Nioaque (MS), poderemos observar que a área onde estão as aldeias corresponde justamente à mancha verde, de mata ciliar preservada dos rios, que faz fronteira entre as aldeias e as fazendas com atividades agropecuárias da região. Na região já houve quem dissesse: “se me entregassem as terras indígenas para que eu cuidasse, eu produziria para sustentar os índios e ainda ficaria rico!”. Essa tese de que os indígenas não sabem “aproveitar” a terra é antiga.  Nas Atas da Câmara Municipal de Aquidauanai, em 1949 , quando um grupo de Terenas requisitava o reconhecimento de suas terras, já demarcadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1928, um dos vereadores argumentou: “Pra que tanta terra para poucos índios?” É bem verdade que arrendamentos ilegais ocorrem em muitas áreas indígenas no Brasil, além de invasões de garimpeiros e madeireiros. Entretanto, quando a comunidade indígena de uma localidade tem o controle de gestão de suas terras, através de associações de moradores conscientes da importância da preservação ambiental para sua reprodução social, a natureza é respeitada.

As comunidades indígenas (termo melhor do que tribos, porque dá uma dimensão da complexidade das relações entre os habitantes de uma aldeia indígena) entendem o meio ambiente (seja ele com formações de florestas, cerrado, caatinga etc.) como um local de reprodução de sua cultura, que precisa ser respeitado, pois ela é o “depósito de combustível” (gravetos encontrados pelo chão), a “farmácia” (plantas milenarmente utilizadas, cujas propriedades são passadas oralmente de geração em geração), o “depósito de material de construção” (nas aldeias Terena, por exemplo, utiliza-se o taboco, espécie de bambu grosso, cortado e batido, de maneira a formar placas retas utilizadas para construir paredes das casas, cuja cobertura é feita de folhas de um coqueiro da região chamado buriti).

Costumo levar alunos do curso de Geografia da Universidade Estadual de Mato Grosso Sul (Uems), em Jardim (MS), para visitar os belos morros e nascentes na aldeia do Limão Verde em Aquidauana (MS), onde encontramos uma vegetação típica do cerrado. Alguns alunos perguntam: “por que não plantam nesta área?”. A impressão que se tem é que as terras estão abandonadas, mas o fato é que as plantações não “perturbam o mato”, como dizem. Respeitam o “depósito de combustível”, a “farmácia” e o “depósito de material de construção”.

A cultura Terena, como muitas outras culturas indígenas, possui mitos ligados à preservação ambiental. Os índios dessa comunidade acreditam que o “pai do mato” persegue aqueles que não respeitam os limites de exploração ambiental. No folclore brasileiro temos vários personagens apropriados de culturas indígenas ligados à preservação ambiental, como o curupira, a iara e o saci-pererê.

Assim como meus alunos de Geografia, aquele vereador da década de 1940, em Aquidauana, e aqueles que querem tornar as aldeias “produtivas”, temos dificuldade de compreender quando indígenas querem mais terras. É necessário entender que os índios não precisam da terra somente para cultivar produtos para vender para o exterior (caso das commodities), ou para subsistência. Eles necessitam de espaços preservados para reproduzir conhecimentos tradicionais como a farmacopeia fitoterápica (relação de medicamentos feitos à base de matérias-primas ativas vegetais) e a mitologia. Hoje, a preservação desses espaços encontra respaldo inclusive em movimentos internacionais de preservação ambiental mas, durante séculos, os gritos dos indígenas em prol da manutenção de suas terras foram entendidos como retrógrados e contrários à noção de progresso e desenvolvimento tecnológico.

O problema da produtividade das terras indígenas, segundo Roberto Cardoso de Oliveira (1999:281)ii, deriva de representações sobre os indígenas características de uma experiência particular da sociedade brasileira e decorrentes do próprio imaginário ocidental sobre os “primitivos”. De acordo com Santana (2010)iii, as condições de conquista do território brasileiro colocam questões que deixam em aberto a discussão sobre o direito dos índios sobre suas terras:

“O próprio acontecimento do contato e a apropriação das terras pelos portugueses engendra um tal número de questões que talvez possamos iniciar pelas seguintes indagações: qual seria o direito do conquistador português às terras indígenas conquistadas? Os processos de aldeamentos, missões, extermínios, descimentos (…) bastam para que o domínio branco sobre as terras seja considerado legítimo? O Direito deve legitimar terras anteriormente legalizadas por um ordenamento que hoje consideramos incabível, como a retirada das terras com o uso da violência? É possível pensar essa relação sem violência?”

No Brasil, a disputa por terras entre índios e não índios deixou, em 2010, 60 índios mortos, 34 só no Mato Grosso do Sul, onde encontramos a maior densidade intra-aldeia do país e uma das maiores do mundo, especialmente na região Sul do Estado, conforme relatórios do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)iv.

A conservação do meio ambiente nas áreas indígenas envolve, então, a dinâmica de duas visões diferentes sobre os recursos naturais: uma que os vê como fonte de lucro de uma sociedade voltada para o consumo e outra que os vê como fonte da própria vida e detentores de conhecimentos milenares sobre esses próprios recursos. Como aponta Daniel Munduruku: “nós não dissociamos os recursos naturais existentes em nossos territórios do conhecimento tradicional dos pajés. Para nós, povos indígenas, não se separa o canto da dança, a dança da reza, a erva da cura…” .

Quem é retrógrado, então: o índio e sua preocupação com a floresta ou o capitalismo em que 20% da população consome 80% dos recursos naturais?

*Sandra Cristina de Souza é antropóloga e historiadora, docente da Universidade Estadual de Mato Grosso Sul, UEMS, em Jardim.

 


i Atas da Câmara Municipal de Aquidauana, Aquidauna, 1949

ii OLIVEIRA FILHO, J. P. – Ensaios de Antropologia Histórica, RJ, UFRJ, 1999

iii SANTANA, C. R. – “Pacificando” o direito: desconstrução, perspectivismo e justiça no direito indigenista, Dissertação de Mestrado, PUC/RIO, 2010

iv Relatórios do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) disponível emwww.cimi.org.br/pub/MS/Viol_MS_2003_2010.pdf, acessado em 17/02/2012

v Apud Santana (2010: 126)

 http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/3086/os-ndios-e-a-floresta.html

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