“Querem naturalizar a escravidão. O Brasil, que conseguiu feitos tão extraordinários nos últimos anos, não pode mais conviver com essas práticas do século XIX”, declara o advogado.
Mais de um século depois da aprovação da Lei Áurea, o trabalho escravo volta à pauta de discussão do Congresso Nacional, porque a escravidão “continua presente na sociedade”, diz Pedro Abramovay à IHU On-Line.
A expectativa é de que o Congresso vote hoje a PEC 438, que propõe o confisco de propriedade em que forem encontrados casos de escravidão. De acordo com Abramovay, somente na última década “mais de 35 mil escravos foram libertados. Mas há reações dos setores conservadores, sobretudo no Congresso, que insistem em dizer que jornadas de 18 horas baseadas em dívidas impagáveis, que prendem o trabalhador a uma propriedade, não é escravidão”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Abramovay esclarece que o perfil dos trabalhadores escravos é variado e atinge homens, mulheres e crianças. Embora os casos estejam historicamente associados ao setor rural, é crescente o número de acusações de trabalho escravo no setor têxtil, afinal, aponta, “trata-se de um setor dinâmico, criativo, ligado à inovação típica do século XXI, mas que tem uma parte considerável de sua cadeia produtiva ancorada em oficinas de costura que se utilizam largamente da mão de obra escrava”.
Pedro Abramovay é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e mestre em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É professor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. Foi secretário nacional de justiça e secretário de assuntos legislativos do Ministério da Justiça. Atualmente é membro da Avaaz, responsável pela campanha Fim à escravidão no Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Nesta terça-feira o Congresso irá votar a PEC 438, que propõe o confisco de propriedade em que forem encontrados casos de escravidão. Como está esse debate? Que forças políticas apoiam e reprovam essa iniciativa?
Pedro Abramovay – O debate está muito positivo. A PEC já foi aprovada no Senado e em primeiro turno na Câmara. Estamos realizando uma grande mobilização para o dia 8 de maio, com centrais sindicais, artistas e a força da opinião pública brasileira para que se possa votar a PEC. No dia 8-5-2012 entregaremos uma petição da Avaaz pedindo a aprovação da PEC. Já reunimos mais de 56 mil assinaturas. Ainda há setores retrógrados no Congresso que se opõem à PEC sob o argumento de que não se compreende que esse tipo de trabalho é normal no Brasil. Se é normal tem que deixar de ser. O Brasil tem que romper de vez com sua cultura escravocrata.
IHU On-Line – O que caracteriza o trabalho escravo na modernidade? A que situações e condições de trabalho as pessoas são submetidas?
Pedro Abramovay – O trabalho escravo, atualmente no Brasil, pode se manifestar de muitas formas. Claro que a primeira imagem que vem na cabeça é a de pessoas mantidas presas ao trabalho e forçadas a trabalhar por pessoas armadas. Isso ainda existe no Brasil. Mas o trabalho escravo não é só isso. Há pessoas que são obrigadas a trabalhar de graça porque contraem dívidas perversas, há situações de pessoas que estão em lugares que não há transporte para sair de lá e permanecer naquele local trabalhando é a única alternativa. E há desrespeitos tão grandes da legislação trabalhista (jornadas de 18 horas, falta de segurança, trabalho infantil) que são equiparados ao trabalho escravo.
IHU On-Line – Como a legislação brasileira define e aborda casos de trabalho escravo no país?
Pedro Abramovay – O código penal estabelece que reduzir alguém à condição análoga de escravo é crime com pena de 2 a 8 anos. E nessa conduta se enquadram tanto o trabalho forçado como a jornada exaustiva, as condições degradantes de trabalho, a restrição da locomoção em razão de dívida ou outras formas de se reter o trabalhador no local de trabalho contra a sua vontade.
IHU On-Line – Quais são as razões de ainda existir trabalho escravo no Brasil?
Pedro Abramovay – Há mais de um século Joaquim Nabuco profetizou: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva”. Infelizmente, ele tinha toda razão. A cultura escravocrata permanece completamente viva no Brasil. Muitas vezes escutamos gente defendendo fazendeiros que mantêm pessoas como escravos alegando que esse tipo de regime é normal no campo.
Querem naturalizar a escravidão. O Brasil, que conseguiu feitos tão extraordinários nos últimos anos, não pode mais conviver com essas práticas do século XIX. A missão de acabar com a pobreza extrema é fundamental e está sendo atingida. O grande desafio agora é garantir que isso se dê com a universalização da cidadania. Relações de trabalho baseadas na lógica do século XIX não podem mais ser aceitas.
IHU On-Line – Em que setores industriais o trabalho escravo é mais recorrente?
Pedro Abramovay – A imagem de trabalho escravo é muito associada a fazendas ou carvoarias. É verdade que isso ainda ocorre muito no campo. Mas a indústria têxtil talvez me impressione mais. Afinal, trata-se de um setor dinâmico, criativo, ligado à inovação típica do século XXI, mas que tem uma parte considerável de sua cadeia produtiva ancorada em oficinas de costura que se utilizam largamente da mão de obra escrava. O Ministério do Trabalho e o Ministério Público têm feito um importante serviço. Mas a mobilização neste tema tem que ser muito maior. Não se pode admitir que essas situações ainda aconteçam em uma cidade como São Paulo.
IHU On-Line – Qual é o perfil do trabalhador escravo? Tal como nos séculos passados, é ele majoritariamente negro?
Pedro Abramovay – Há o trabalho escravo ligado ao setor rural, há o trabalho escravo mais urbano, há o trabalho escravo relacionado à prostituição. Então, o que se pode dizer é que o trabalho escravo afeta os vulneráveis em geral, os pobres, os negros, mulheres, imigrantes.
IHU On-Line – Como avalia o debate sobre a escravidão no Brasil? Como a sociedade se manifesta em relação a essa temática?
Pedro Abramovay – Há uma certa distância do tema. Como se a escravidão tivesse sido abolida em 1888. Não foi. Ela continua presente na sociedade. Mas há uma vergonha em se admitir isso. O tema permanece escondido. Por isso é fundamental que nos mobilizemos para denunciar o que acontece e lutar contra isso.
IHU On-Line – Como o Estado brasileiro e, especialmente, o Ministério do Trabalho se posicionam diante de casos de trabalho escravo no país?
Pedro Abramovay – Houve muito avanço. Na última década mais de 35 mil escravos foram libertados. Mas há reações dos setores conservadores, sobretudo no Congresso, que insistem em dizer que jornadas de 18 horas baseadas em dívidas impagáveis, que prendem o trabalhador a uma propriedade, não é escravidão.
IHU On-Line – Que políticas ou leis são necessárias para pôr fim à escravidão?
Pedro Abramovay – A grande luta, hoje, é pela aprovação da PEC 438. Essa proposta permite que, assim como no caso de uma propriedade que é usada para a produção de drogas, possa-se confiscar a propriedade na qual se encontre trabalho escravo. Isso é fundamental. Porque, se é verdade que hoje submeter alguém à condição de escravo seja crime, o crime muitas vezes não atinge o verdadeiro proprietário das terras. Ou seja, prende-se algum laranja e isso não afeta o negócio que é baseado no trabalho escravo. Com a mudança na Constituição, estaremos atingindo o bolso daqueles que enriquecem com o trabalho dessa espécie.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Pedro Abramovay – Peço a todos aqueles que querem livrar o Brasil da escravidão que assinem a petição para mostrar ao Congresso Nacional de que lado está a população brasileira. A Lei Áurea foi assinada quando o Brasil foi, pela primeira vez, governado por uma mulher. Vamos brigar para que no governo da primeira presidenta eleita democraticamente possamos acabar definitivamente com a escravidão.
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