“Tentei me desvencilhar do aperto e não consegui. O caboclo magro, de meia-idade, estava ligeiramente embriagado. Daí a dificuldade para encontrar a faca. Provavelmente ele estava ali havia um bom tempo, esperando o ônibus chegar”, escreve José de Souza Martins, sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor do livro “Fronteira – A degradação do outro nos confins do humano”, em depomento publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 06-05-2012.
“Eu não era o bispo. Ele teimava. Disse-lhe que era um professor, que estava apenas visitando a região. Ele duvidava e não me soltava. Fui levando a conversa com o fôlego que restava, tentando convencê-lo a me soltar e a tomar um café comigo. Ele foi relaxando e finalmente escapei”, relata o sociólogo sobre a ameaça de morte ao ser confundido com Dom Pedro Casaldáliga. Eis o artigo.
Mal desci do ônibus e entrei no armazém para tomar um café quando o sujeito veio por trás de mim e com o braço esquerdo me deu uma gravata, imobilizando-me pelo pescoço, quase me sufocando. Ao mesmo tempo, com a mão direita, procurava a faca de ponta escondida atrás das costas e enfiada por dentro da cintura, como é costume no sertão. E anunciava: “Vou te matar”. As pessoas que estavam por perto, num segundo, sumiram. Ficamos só nós dois sob o telheiro, chão de terra batida, onde um ônibus caindo aos pedaços fazia uma parada para merenda dos passageiros, na viagem de um dia inteiro entre Barra do Garças e São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. O lugar ermo, perdido no campo, à beira da poeirenta estrada de terra, tinha o simpático nome de Bate-Papo.
Tentei me desvencilhar do aperto e não consegui. O caboclo magro, de meia-idade, estava ligeiramente embriagado. Daí a dificuldade para encontrar a faca. Provavelmente ele estava ali havia um bom tempo, esperando o ônibus chegar. “Você é o bispo! Vou te matar!”, insistia. Expliquei-lhe, com a calma possível, que estava enganado. Eu não era o bispo. Ele teimava. Disse-lhe que era um professor, que estava apenas visitando a região. Ele duvidava e não me soltava. Fui levando a conversa com o fôlego que restava, tentando convencê-lo a me soltar e a tomar um café comigo. Ele foi relaxando e finalmente escapei. Mas ele queria me pagar um uísque. Recusei, dizendo-lhe que era crente e insisti no café, o que acabou convencendo-o de que eu não era mesmo o bispo, que ele supostamente devia matar.
Na verdade, eu estava indo para a casa do bispo, onde me hospedaria. Era nos meados dos anos 70. Dom Pedro Casaldáliga era uma das figuras da Igreja mais visadas e mais ameaçadas de morte, decorrência de suas posições claras no apoio a índios em risco de expulsão de seus territórios e posseiros expulsos da terra, em grande número, com alta incidência de assassinatos cometidos por pistoleiros a serviço das novas fazendas que na vasta região se instalavam. Ali, a vida não valia nada. Nem a do bispo.
Por essa época, estive também no Maranhão, no Vale do Pindaré, região em que, como no Mato Grosso, era violenta a luta pela terra, violência que, de vários modos ainda continua. Os alvos eram posseiros pobres, expulsos da terra a ferro e fogo por pistoleiros contratados para “limpar a terra”, deixá-la livre de embaraços e pretensões de direitos. Alojei-me numa das míseras pensões, comuns no sertão e nas áreas de desbravamento. Deram-me um quartinho, lá nos fundos, onde armei minha rede, a janela fechada, para na semiobscuridade rever minhas notas e meu plano de trabalho. Eu estava fazendo solitária e extensa pesquisa sobre a luta pela terra e as violações de direitos em toda a chamada Amazônia Legal.
Depois de um tempo, ouvi uma conversa que ocorria num alpendre a alguma distância. Parecia conversa inócua. Não era. Dava impressão de ser uma trama. Não se mencionavam nomes nem propósitos explícitos. Parecia uma dessas conversas de botequim, referidas a pessoas hipotéticas, nada para se levar a sério. Olhei por uma fresta da janela e vi de frente um homem (os outros estavam de costas) que logo saberia ser um dos grileiros da região, envolvido em feroz disputa com posseiros. No dia seguinte, mudei para um tijupar de armazenamento de arroz num povoado próximo, onde estava o foco de minha pesquisa naquela área. Fui acolhido e apoiado pelo líder da resistência dos posseiros. Meses depois, soube que ele fora assassinado e que o mandante era o homem que eu vira pela fresta da janela, conversando com o grupo. Provavelmente, sem me dar conta, eu presenciara o trato de pistolagem que resultaria na morte do trabalhador que me acolhera. Algum tempo depois, o próprio grileiro e mandante foi morto.
Em outro lugar, nos confins do Maranhão, próximo à divisa do Pará, cheguei de carona. Lá, a coisa era brava. Um único grileiro tentava expulsar da terra centenas de famílias ali estabelecidas havia tempo, plantadoras de arroz. Era a região em que, anos depois, passaria a Estrada de Ferro de Carajás. As casas eram simples, de pau a pique ou de adobe, chão de terra batida, na porta apenas esteiras para proteger os de dentro do olhar dos de fora. Ninguém dizia nada. Só me indicaram um trabalhador que, tempos antes havia sido surrado por pistoleiros – pai e filhos – residentes no local, a serviço do grileiro. Já haviam praticado violência contra outros moradores. Fui conversar com ele. Humilhado e assustado, estava de saída. Já havia retirado a família e voltara apenas para buscar o que restava. Narrou-me detalhes da tortura. Fora subjugado e amarrado sobre um formigueiro de formigas de fogo, permanecendo nesse martírio durante horas, à vista de todos, mesmo de crianças, sem que ninguém se sentisse encorajado a fazer o que quer que fosse. As próprias crianças, aterrorizadas, me haviam descrito a cena.
Sem que eu soubesse, vários moradores do povoado, cansados de violência e humilhação, fizeram chegar ao conhecimento da família de pistoleiros que havia chegado um estranho na camioneta do Serviço da Malária e que eu provavelmente viera de Brasília para saber o que eles andaram aprontando. Procuravam usar-me para assustar os pistoleiros e não levaram em conta minha vulnerabilidade nem meu medo, embora, logo ao chegar eu lhes tivesse explicado que ali estava para fazer uma pesquisa sobre a situação em que se encontravam.
Não demorou para que o chefe dos pistoleiros, o pai da família, mandasse convidar-me para visitá-lo. Foi o que fiz, pois era a oportunidade de ouvir um personagem chave dos casos de violência que estudava. Rodeado pelos filhos, adultos, sentados pelo chão e na soleira da porta, mandou que eu entrasse e quase sussurrando foi dizendo-se vítima de injustiça. Falavam dele, acusavam-no de atos violentos que não cometera, dizia-se trabalhador como os outros. Quase choramingava. Um estranho, que fazia perguntas não a ele, mas a vítimas de pessoas como ele, só podia representar um poder que não era o mesmo do qual ele fazia parte. Ele tinha consciência da marginalidade que representava e temia em mim o perigo que intuía, mas desconhecia. Perigo que não era real: eu era apenas um pesquisador, vinculado a uma universidade que no mesmo momento sofria a repressão do poder que o pistoleiro temia.
Passei por algumas outras situações semelhantes. Em todas, a prudência recomendou-me que encerrasse o trabalho e saísse do lugar o mais depressa possível. Esse caso, em particular, me indicava que a pistolagem faz parte de um sistema paralelo de poder, assentado sobre extenso conjunto de ilícitos, que vai da grilagem de terras ao emprego de trabalho escravo em regiões remotas do país. Principalmente na derrubada da mata para formação de novas fazendas. Grileiro e pistoleiros agiam seguros da cobertura necessária à impunidade e a reação de temor e subserviência das vítimas confirmava a certeza de um poder oculto que os respaldava.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/509251-onde-a-vida-nao-valia-nada