O potencial destrutivo da Copa do Mundo

Nota de repúdio do Comitê Popular da Copa de Curitiba à engenharia financeira da reforma do estádio Joaquim Américo Guimarães:

Os movimentos sociais, sindicatos, comunidades ameaçadas, entidades da sociedade civil e cidadãos em geral, organizados no Comitê Popular da Copa de Curitiba, vêm, por meio da presente nota, publicamente manifestar seu repúdio às negociações e operações financeiras em andamento entre o Município de Curitiba, o Estado do Paraná e o Clube Atlético Paranaense, com vistas a viabilizar a reforma do estádio Joaquim Américo Guimarães – conhecido como “Arena da Baixada” – para recepção dos jogos da Copa do Mundo 2014.

Desde o ano de 2010, diversos atores sociais têm indicado os problemas e fragilidades existentes na estratégia adotada pelo Poder Público para financiamento de tais obras: a concessão de Certificados de Potencial Adicional de Construção – CEPACs – ao Clube Atlético Paranaense. Em audiência pública ocorrida na data de 03 de setembro de 2010, na Câmara Municipal de Curitiba, essa alternativa já fora amplamente rejeitada pela população, que demandou também um conjunto de providências até o momento não atendidas pelos órgãos e autoridades responsáveis, que tampouco forneceram resposta aos questionamentos [1] então formulados .

Apesar da nítida contrariedade popular, foi aprovada pelos vereadores municipais a Lei n. 13.620/2010, que concede ao estádio Joaquim Américo Guimarães até R$90 milhões em “potencial construtivo especial” para sua adequação segundo as exigências da FIFA. Por sua vez, em dezembro do mesmo ano, a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná emanou a Lei n. 16.733/2010, autorizando o emprego do Fundo de Desenvolvimento Econômico – FDE – para financiar a reforma. O objetivo é permitir que a Agência de Fomento do Paraná, autarquia administradora do Fundo, possa realizar empréstimos diretos à CAP/SA, sociedade anônima responsável pelas obras na Arena da Baixada, repassando a ela recursos estaduais e federais (via BNDES) e aceitando como garantia da operação parte do potencial construtivo emitido pela própria Prefeitura.

Toda a engenharia encontra-se prevista em convênio [2] firmado entre o Município de Curitiba, o Estado do Paraná e o Clube Atlético Paranaense em 20 de setembro de 2010. Neste documento, ambos os entes públicos se comprometem a financiar a obra, antes mesmo da aprovação das leis respectivas que tornariam a operação possível. Essa operação, porém, é flagrantemente irregular. Além de atentar frontalmente contra o interesse público, indicando obrigações contratuais entre o Município de Curitiba, o Estado do Paraná e o CAP/SA sem qualquer zelo aos princípios constitucionais da Administração Pública, ignora – e isso é gravíssimo – as desastrosas consequências que podem resultar da utilização do “potencial construtivo”, gerando impactos na vida de toda a população curitibana.

O instrumento do solo criado, base para emissão dos CEPACs, é um mecanismo de política urbana e deveria se destinar às estratégias de desenvolvimento econômico e social das cidades, proteção do patrimônio histórico e ambiental. A manipulação da oferta e comercialização dessa quantidade de potencial construtivo do Município pelo CAP/SA constituirá um verdadeiro “banco de direitos de construir”, concentrando o controle do mercado de solo criado de Curitiba e reproduzindo a especulação. As leis que o regulamentam (Estatuto da Cidade e Plano Diretor de Curitiba), entendendo esses riscos, prevêem a obrigatoriedade de contrapartida social pelo beneficiário.

O instrumento do potencial construtivo tem sido utilizado de maneira inescrupulosa em outros inúmeros projetos da Copa do Mundo 2014 pelas cidades brasileiras, como estratégia de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada. A Operação Urbana do “Porto Maravilha”, no Rio de Janeiro, e o “banco de índice construtivo” para a construção da Arena do Grêmio, em Porto Alegre, são exemplos claros disso.

Apesar de todo o potencial destrutivo dessas negociações, com impactos que vão desde violações ao patrimônio público, endividamento das cidades e desrespeito à legislação urbanística, os diversos acordos e decisões se dão sem informação ou consulta à população.

Nem mesmo os espaços de participação social formalmente existentes, tais como os Conselhos de Política Urbana ou Conselhos das Cidades, são integrados no processo decisório. O Conselho da Cidade de Curitiba – CONCITIBA – não pôde apreciar em nenhum momento a concessão de CEPACs ao Clube Atlético Paranaense.

A situação tornou-se ainda mais grave quando, em março deste ano, veio a público a denúncia de que o atual Secretário Especial do Estado do Paraná para Assuntos da Copa do Mundo 2014, Mário Celso Cunha, teria sugerido, em reuniões da Diretoria do Clube Atlético Paranaense no ano de 2010, o não pagamento dos empréstimos públicos tomados pela entidade [3]. Tal posicionamento evidencia o conflito de interesses existente na cumulação do atual cargo com o de Conselheiro do Clube. Em 2010, quando da aprovação da Lei n. 13.620, o mesmo encontrava-se no exercício de seu mandato de vereador, sendo presidente da Comissão da Copa do Mundo 2014 na Câmara Municipal e um dos principais entusiastas da utilização do recurso do potencial construtivo.

Não podemos consentir com essa aplicação irresponsável de uma prerrogativa pública, valendo-se de “fórmula mágica” para “criar” dinheiro, custear obras privadas e garantir obrigações alheias. Recentemente, o CAP/SA solicitou a injeção de mais R$ 30 milhões para execução das obras, valor a ser garantido pelos mesmos potenciais construtivos emitidos pelo Município. Nessa operação, o Estado está condenado a atuar como sócio e fiador dos interesses privados, custeando seus efeitos nefastos e os repassando para população. Ao beneficiado pela cessão caberá apenas assistir e aproveitar. Não por outra razão, diante dessas e de outras irregularidades identificadas, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná suspendeu o repasse de verbas estaduais para a execução do projeto.

Diante disso, a população paranaense exige, de imediato, a suspensão das tratativas para aumentar o volume de recursos públicos numa obra completamente privada e a responsabilização dos agentes que nelas tomarem parte, além de demandar a veemente fiscalização institucional dos repasses já em curso, a absoluta transparência das operações, a publicização de todos os projetos e prestações de contas relativos às obras e gastos e a ampliação do controle e participação popular no processo.

Repudiamos firmemente esta e quaisquer outras iniciativas que, travestidas no discurso do bem geral, na realidade atentem contra o patrimônio público, os direitos de informação, controle e participação popular e a gestão democrática das cidades, transformando-as em instâncias de agenciamento de interesses privados responsáveis pelo aprofundamento da exclusão, da desigualdade e da injustiça social.

Como deveria funcionar: o ente beneficiado pela aquisição de potencial construtivo, como na hipótese analisada, o CAP/SA, possui – na forma de um ônus prescrito em lei – a obrigação de efetuar uma contrapartida social, a ser estabelecida segundo o rol de possibilidades adiantadas pelo Estatuto da Cidade e confirmadas no Plano Diretor Municipal [4]. Essa contraprestação é o reconhecimento jurídico de que o exercício do direito de construção a partir do potencial construtivo gera vários impactos na vida urbana, travestidos, por exemplo, no aumento de demanda por infraestrutura técnica e social (transporte coletivo, rede viária, iluminação, calçamento, posto de saúde, etc.), já que se adensa uma parte da cidade. Essas consequências estruturais de sua utilização, caso não sejam planejadas e vinculadas quando da outorga do potencial – como no caso apontado – serão arcadas pela população e/ou, posteriormente, custeadas apenas pelo Poder Público.

Como aconteceu: a cessão em “até 90 milhões” em potencial construtivo para o CAP/SA foi pensada como (i) forma de garantia de empréstimos oferecidos pelo fundo estadual (FDE) – destinação que ofende um juízo mínimo de lógica: o Estado dá em garantia de empréstimo bens do próprio Estado – e (ii) estratégia de custeamento da obra de adequação do estádio, com estabelecimento de contrapartidas irrisórias (que nem podem ser denominadas de “sociais”) e sem estudo e planejamento do impacto econômico e social da utilização do instrumento. Dentre o rol previsto na Cláusula Quinta do citado convênio constam contrapropostas no mínimo curiosas, como oferecer camarotes aos entes públicos contratantes (cessão gratuita de “dois camarotes na Arena do CAP, sendo um para o Município e outro para o Estado”, por 50 meses), ceder temporariamente espaços para utilização pelo Poder Público para realização de eventos, e intensificar o programa “Escolinhas do Atlético Paranaense”.

Notas:
1 Entre as reivindicações estavam a publicidade dos projetos, a elaboração de estudos prévios de impacto, promoção de espaços com os grupos atingidos, entre outras demandas. Para visualização do documento na íntegra ver: http://terradedireitos.org.br/wp-content/uploads/2010/09/DOCUMENTO-DE-PROVIDENCIAS-AUD-COPA-DO-MUNDO.pdf

2 O convênio foi publicado no Diário Oficial do Município de 28/09/2010.

3 Conforme dados da matéria veiculada no Jornal Gazeta do Povo, edição de 19 de março de2012 – Secretário para Assuntos da Copa sugeriu calote dos empréstimos à Arena, disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/copa2014/arena/conteudo.phtml?id=1234717

4 No caso de Curitiba as hipóteses de contrapartida indicadas pelo Plano Diretor em seu art. 60 são: I – execução de programas e projetos habitacionais de interesse social e regularização fundiária; II – promoção, proteção e preservação do patrimônio histórico, cultural, natural e ambiental; III – ordenamento e direcionamento da ocupação urbana; IV – criação de espaços de uso público de lazer e áreas verde e V – implantação de equipamentos urbanos e comunitários.

Enviada por Thiago Hoshino.

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