Xingu: a história que nunca termina

Por Monike Mar, da redação

Quando os créditos finais sobem e a sala escura reascende, Xingu – o filme – não nos traz de volta à realidade. Por um simples motivo: já estamos inseridos nela desde o começo. A todo instante, a ficção nos relembra que passado ainda é presente.

A cena que nos leva de uma vez por todas a tal constatação vem ao fim com uma imagem documental, de arquivo, preto-e-branca. Nela, aparece o general Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil durante a ditadura militar, a inaugurar a rodovia Transamazônica no mesmo local onde hoje a usina de Belo Monte é construída: Altamira, município do Pará, situado às margens do rio Xingu.

Apesar de nos remeter às polêmicas do Brasil de hoje, o uso da imagem não foi proposital. Os problemas é que ainda são muito atuais, como ressalta o diretor do filme, Cao Hamburguer. “Não foi proposital. Mas foi uma ironia, uma triste ironia”.

Coincidência ou não, o contexto histórico da imagem atribui ao desfecho do filme um momento de múltiplas reflexões. Imagens reais da devastação das matas para a construção da estrada e do extrativismo irregular demonstram que os problemas persistem. “Fiz um filme para mostrar que a luta dos irmãos Villas-Bôas ainda não terminou”, diz Cao Hamburguer, em tom de deslumbre. Antes de Xingu, o cineasta dirigiu o drama O Ano em que meus pais saíram de férias (2006).

Os irmãos Villas-Bôas na década de 1950 (foto: Wikimedia Commons)

Sob o registro ficcional baseado na história de vida real dos exploradores Orlando, Claudio e Renato Villas-Bôas, Xingu remonta o distanciamento entre os distintos Brasis. O tema central é a criação da primeira reserva indígena do país  – e à época a maior do mundo –, o Parque Nacional do Xingu, em 1961. No nome oficial, não há qualquer menção ao povo que ali habita. Mas o termo “nacional” se faz presente para evidenciar o plano de integração do governo da época. Mais uma vez as aspas: “integração”.

Nos anos 40, os desbravadores irmãos Villas-Bôas se dirigiram ao interior do país na expedição Roncador-Xingu, a Marcha para o Oeste, criada por Getúlio Vargas. A missão? Abrir campos de pouso e bases militares. Mas ao longo da expedição, os irmãos mudaram de lado, embora sempre negociassem com o governo. O maior resultado? Com articulação política, os Villas-Bôas só obtiveram a aprovação do Parque Nacional do Xingu após firmarem compromisso com a construção de uma base militar da Serra do Cachimbo, no sul do Pará.

Cena do filme Xingu, de Cao Guimarães (foto: Beatriz Lefèvr/ O2 Filmes)

O primeiro contato
Os Villas-Bôas encontraram a primeira aldeia no Alto Xingu em meio a uma pesquisa de campo. E aos poucos iniciou-se a descoberta. São nesses instantes que o filme nos dá pistas da personalidade dos irmãos. A atenção com a nova cultura com a qual se deparam em lugares aparentemente inóspitos inaugura no longa-metragem o olhar de Cao Hamburguer. O cineasta admite não ter se inspirado em outros diretores e filmes sobre o tema, mas, sim, na vida daqueles que se tornariam seus personagens.

“Os Villas-Bôas foram a minha maior inspiração. Fazer Xingu me fez encontrar o que eles encontraram: uma civilização com cultura e ética incríveis. Os índios possuem uma maneira de viver social e equilibradamente com a natureza – tudo o que o Brasil faz questão de esconder”.

No filme, estão de um lado os povos indígenas: invisíveis no mapa do país, ignorados pelos governos, negligenciados pelas políticas sociais. Do outro, aqueles comumente chamados, sem criatividade, de homens brancos: os próprios irmãos, os homens da esfera pública, os militares, os médicos ou, simplesmente, todos os outros.

Batalha
O Alto Xingu se transforma em um campo de guerra quando empresários e grileiros passam a enxergar na região um potencial econômico. O extermínio de índios e até de aldeias inteiras passa a ser constante. Os irmãos Villas-Bôas estão nesse campo de batalha, mas com a consciência de que os índios não estão na mesma condição de lutar. Didático, o filme aponta as causas do etnocídio: interesses econômicos, como o avanço da fronteira agropecuária e a extração madeireira. Tudo deixava claro que os índios eram vistos como um entrave ao desenvolvimento.

Os irmãos se envolvem na causa indígena, mas logo percebem que poderiam ser tanto o ‘antídoto’, como o ‘veneno’ para as tribos. Ao longo dos 35 anos que passaram no Brasil Central, os Villas-Bôas se viram na função de proteger as aldeias, mas, ao mesmo tempo, davam-se conta de que, desde o contato físico ao deslocamento de território, interviam de modo agressivo na cultura das tribos indígenas.

Xingu, no entanto, não entra no debate da política indigenista implementada pelos irmãos. “Eles fizeram algo completamente novo, com ferramentas sociais muito limitadas. Por isso, procuro entender o contexto antes de julgar a iniciativa. Eles tinham a consciência de que a extinção dos índios poderia ser muito maior, caso a reserva não fosse criada. E também sabiam da dificuldade de delimitar áreas para outros parques. Logo, creio que as soluções eram e ainda são muito complexas”, explica Cao.

Produção
O enredo chegou até Cao Hamburguer por um convite do cineasta Fernando Meirelles. Fernando foi procurado pelo filho do próprio Orlando Villas-Bôas. “Remontar essa história foi um presente”, conta o diretor de Xingu.  Ao longo dos três anos de produção do longa, Cao teve a oportunidade de conviver com habitantes do parque. O contato foi crucial para levar às telas um conto que também fala de aproximação. “Queria fazer um filme que contemplasse o ponto de vista dos índios. A gente pode estudar bastante, pesquisar muito, mas só depois de entrar em contato com eles é que entende a dimensão da história que está contando”.

Para dar veracidade, o elenco foi composto por índios nativos, que também participaram da pesquisa. Alguns, inclusive, ainda colaboraram como testemunhas vivas. “O processo de seleção e treinamento dos índios das aldeias do Xingu foi longo, mas foi um elemento-chave para sentir e imprimir na tela o olhar dos Villas-Bôas”, conta o diretor.

Heróis?
Cao não gosta da palavra. Mas não hesita em usá-la quando se refere a uma hipotética lista dos dez maiores heróis da História do Brasil. “Se o Brasil consegue fazer uma lista de seus maiores heróis, certamente, os irmãos Villas-Bôas estão nela. Eles eram pessoas com ideais, mas ideais seguidos de ação. Isso faz toda a diferença”.

A Transamazônica, ícone da política de integração nacional, foi extinta, mas o filme termina antes. Xingu pretende renovar esperanças? “O filme fala muito sobre a prepotência, a força insaciável da nossa civilização, da nossa ignorância desenfreada, que continuam atuais. Mas estamos em uma encruzilhada ambiental”, conclui Cao.

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