Carlos Eduardo Marques*
Constantemente o reconhecimento destes direitos, ou a resolução dos conflitos ao quais estas populações estão submetidas, têm sido debatidos sob o domínio das instituições jurídicas. No dia 18 de abril, estará em análise no Supremo Tribunal Federal–STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº. 3239, proposta pelo PFL – posteriormente rebatizado como Democratas – na qual se busca a impugnação à validade do Decreto nº 4.887/03, que regulamentou “o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos de que trata o art. 68 do ato das Disposições Constitucionais Transitórias”. Este processo de jurisdicionalização pode ser entendido, em uma sociedade democrática e em um estado democrático de direito como um modo profícuo de ampliação e efetivação da cidadania. No entanto, para que de fato cumpra-se esse papel é necessário que tal jurisdicionalização opere dentro de uma hermenêutica, de um pluralismo e de um constitucionalismo intercultural. Como nos ensina Wolkmer (01: 2010) “a constituição não deve ser tão somente uma matriz geradora de processos políticos, mas uma resultante de correlações de forças e de lutas sociais em um dado momento histórico do desenvolvimento da sociedade (…)”.
O pluralismo, o constitucionalismo intercultural e a hermenêutica se impõem devido à própria formação pluriétnica do Estado Nacional brasileiro. E serve como uma eloquente denúncia de que os povos, mesmo aqueles submetidos a um processo compulsório de desumanização (caso dos negros trazidos a sua revelia como escravos para as Américas) nunca foram sujeitos passivos da história e sempre trataram de resistir a todos os mecanismos de dominação, tanto na época colonial quanto em nossa época.
Em sua argumentação pela admissibilidade da inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003 o Democratas apelam tanto, para uma análise mais formalista da Constituição ao alegar (a) impossibilidade de edição de regulamento autônomo para tratar da questão, haja vista o princípio constitucional da legalidade; (b) a inconstitucionalidade do uso da desapropriação, prevista no art. 13 do Decreto 4.887/03, bem como do pagamento de qualquer indenização aos detentores de títulos incidentes sobre as áreas quilombolas, tendo em vista o fato de que o próprio constituinte já teria operado a transferência da propriedade das terras dos seus antigos titulares para os remanescentes dos quilombos. Quanto para uma análise mais sociológica da legislação ao alegar que (c) a inconstitucionalidade do emprego do critério de auto-atribuição, estabelecido no art. 2º, caput e § 1º do citado Decreto, para identificação dos remanescentes de quilombos; (d) a invalidade da caracterização das terras quilombolas como aquelas utilizadas para “reprodução física, social, econômica e cultural do grupo étnico” (art. 2º, § 2º do Decreto 4.887/03) – conceito considerado excessivamente amplo – bem como a impossibilidade do emprego de “critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades de quilombos” para medição e demarcação destas terras (art. 2º, § 3º), pois isto sujeitaria o procedimento administrativo aos indicativos fornecidos pelos próprios interessados.
Diante das alegações dos Democratas cabem alguns esclarecimentos:
1- A ADI proposta pelos Democratas alega vício de inconstitucionalidade no Decreto 4887/2003, mas reconhece a validade do Decreto 3.912/2001 ao não questionar a sua inconstitucionalidade. Ocorre que do ponto de vista constitucional não existe diferença entre estes Decretos, existe uma diferença de alcance político e social dos referidos Decretos. Sendo o Decreto de 2003 mais abrangente, bem fundamentado e claro em sua finalidade. De forma que os Democratas buscam a inconstitucionalidade de um Decreto que o Partido discorda por motivos meramente políticos-ideológicos.
2- Por outro lado, se superarmos a inadmissibilidade inicial da ADI e formos para uma análise mais formal do assunto em lide, percebe-se que no fundo a ADI atenta contra o art. 68 do ADCT da CF/1988 e contra os arts. 215 e 216 do Corpo Permanente da CF/1988. O Constituinte livre e soberano, representando o povo brasileiro, decidiu que a promoção da igualdade no Brasil deve se dar de forma substantiva (e não apenas formalmente) e o fim último da Constituição é a busca da realização da justiça social. Decidiu o Constituinte, ou pelo menos assim se expressou na Constituição Federal, que: 1) a Constituição brasileira reconhece que a formação nacional é “pluriétnica” ou “
3- Ao questionar a legitimidade do Decreto para atuar diretamente na delimitação territorial Quilombola, os Democratas mais uma vez, baseado em posições políticos-ideológicos (legítimas, mas que vão de encontro a Constituição) tenta oevidente esvaziamento da eficácia do art. 68 do ADCT. Ao contrário, do que alega os Democratas pode se dizer no que tange à questão fundiária, que o referido Decreto traz maior segurança jurídica a questão ao garantir de forma inconteste aos que se considerarem prejudicados pela matéria em lide, o direito ao contraditório, a ampla defesa e ao questionamento das medidas administrativas, no âmbito administrativo e jurídico.
4- A alegada inconstitucionalidade do emprego do critério de auto-atribuição não se sustenta nem fática e nem conceitualmente. Nem na dogmática e nem na hermenêutica jurídica. Do ponto de vista fático e dogmático o art. 5º, § 2º, da Carta Constitucional, expressa que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Destarte o art. 5º reconheça-se que a auto-definição ou auto-identificação é considerada, pelos tratados internacionais, como o “critério fundamental para definir os grupos aos quais se aplicam as disposições”. Lembre-se ainda que a referida Convenção 169 da OIT, após ratificada pelo Executivo Nacional foi aprovada pelo legislativo, sendo acatada plenamente em nosso corpo constitucional, não cabendo portanto a alegada inconstitucionalidade de sua aplicação. As Convenções Internacionais ratificadas pelo Poder Legislativo ingressam no “ordenamento jurídico pátrio comstatus de lei”. Por fim, ressalte-se que o Brasil, na posição de signatário, se encontra na obrigação de promover políticas específicas para estes grupos, e a não efetivação delas poderá e deverá acarretar sanções ao País.
5- Não é o único critério e tampouco o Decreto 4.887/2003 assim prevê, mas é evidente que se trata de um elemento altamente questionador tanto do etnocentrismo quanto do racismo da sociedade. Trata-se de um Decreto com finalidades fundamentais para a nossa Constituição Federal: o respeito a dignidade humana que passa pelo reconhecimento e pelo respeito às diferenças, portanto, a busca por cidadania pressupõe o combate às desigualdades e não às identidades, pois, de outra forma, não poder-se-ia falar em cidadania e sim em tirania, uma sociedade injusta e de homens não livres, que definitivamente negam a cidadania em seus princípios basilares. Esta premissa, oriunda da filosofia aristotélica, foi definida pelo filósofo e cientista político italiano Bobbio como “regra da justiça”. Trata-se, portanto, o Decreto de uma regra de Justiça.
6- Alegada invalidade das caracterizações territoriais também não se sustenta a antropologia (mas não somente ela) consolidou estudos, definições e parâmetros para caracterização das comunidades quilombolas, com larga discussão metodológica e científica. Desfez as ideias pré-concebidas de isolamento territorial, de resíduos arqueológicos e de populações homogêneas, o que foi corroborado, no mesmo sentido, pela atual historiografia. A pretensão de aplicação do conceito de quilombo, expedida pelo Conselho Ultramarino de 1740, como quer os Democratas significa, simultaneamente, congelar um conceito de comunidade e, pois, de cultura estática e invariável, e, ao mesmo tempo, utilizar-se de um instrumento claramente repressivo do sistema colonial para interpretar um artigo definidor de direitos constitucionais. Antes, pelo contrário, é justamente a descolonização do conceito de “quilombo” que se faz necessária enfatizar e defender. Trata-se, por fim, de uma caracterização territorial bastante formal e rígida, dirigida inclusive por normas técnicas e portarias emitidas pelo poder executivo.
7- Não ha que se falar em procedimento administrativo fornecido pelo próprio interessado. Após a definição dos beneficiários, o decreto descreve as atribuições e os órgãos públicos responsáveis pelo trabalho de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, as responsabilidades dos diferentes órgãos públicos das três esferas da Federação, os direitos daqueles que se considerarem prejudicados pela Titulação do Território em favor de uma comunidade de remanescentes de quilombo. De acordo com o art. 9° do diploma legal em comento: “Todos os interessados terão o prazo de noventa dias, após a publicação e notificações a que se refere o art. 7°, para oferecer contestações ao relatório, juntando as provas pertinentes”. Atente-se que o direito a defesa e ao contraditório aos que se sentirem prejudicados ocorre na esfera administrativa em duas instâncias e, ao fim destas na esfera jurídica ordinária. Portanto não há que se falar de forma alguma em cerceamento do contraditório, do debate e do privilégio administrativo ao interessado, no caso os quilombolas.O art. 9° reconhece o direito ao contraditório e à ampla defesa dos que se sentirem prejudicados pelas peças técnicas, inclusive pelo relatório antropológico, e, se conjugado com o art. 2°, verifica-se que: 1° – a expedição da Certidão de Reconhecimento de Remanescentes das Comunidades Quilombolas não concede, de pronto, o título de domínio territorial em favor da comunidade e; 2°- o trabalho antropológico não se refere a este certificado, que trata de um direito legítimo e uma garantia fundamental aos grupos que se auto-reconhecem como tais, e sim da identificação e delimitação de um território.
8- O decreto também redime qualquer dúvida em relação ao tipo de titulação territorial, que deve ser conferido à Coletividade, sendo ele inalienável, indisponível, imprescritível e impenhorável. Esta opção é de fato um desafio à ideia de propriedade no Brasil que comumente se reconhece em duas formas de propriedades: a pública e a privada. Mas é um desafio que deve ser encarado e debatido e não denegado. A não ser que se decida pela continuidade em nosso país da imensa concentração fundiária do país, cujo caráter étnico é claramente presente e data da opção, seja na época colonial, seja no império e na República até a Promulgação da Constituição de 1988, por preterir formalmente e informalmente os negros da posse territorial. Ademais a Lei de Terras, de 1850, ao estabelecer como única possibilidade de aquisição de terras a compra, ignorou as distintas posses e regulações existentes entre as comunidades tradicionais. Ou melhor, ajudou deliberadamente a expropriar as terras ocupadas não somente por negros, mas também pelos demais pequenos agricultores e posseiros. Apropriação de terras e racismo, pois, continuaram a ser legados pendentes do período da independência.
9- Por fim, não se pode negar que tal conjunto legal atua também no combate de um racismo à brasileira: assimilacionista e universal. Nele existe uma homologia entre hierarquia de status e raça/cor (entendida mais como um fenótipo). A crítica à igualdade apenas formal de direitos perante a lei tem-se organizado em torno do diagnóstico de nas nações, que durante algum tempo mantiveram grupos de pessoas subjugadas legalmente, como no caso do Brasil, a existência de dispositivos constitucionais e legais de combate à discriminação e ao status de inferioridade é insuficiente e a luta pela igualdade passa pelo reconhecimento e pelo respeito às diferenças.
Enviada por Pablo Matos Camargo.