Gabriel Bonis, Carta Capital
Vista de um dos pontos mais altos da cidade, a última área verde de Belo Horizonte esbanja grandeza. São 10 milhões de metros quadrados, o equivalente a área de quase 88 estádios do Maracanã, repletos de nascentes e mata nativa preservada no interior da sexta maior cidade do Brasil. Espaço suficiente para a instalação até mesmo de uma comunidade quilombola em meio à metrópole.
É neste lugar que será erguido um novo bairro, cercado por parques. Uma espécie de Alphaville mineira, em referência ao bairro de alto padrão no subúrbio da Grande São Paulo – embora o projeto reserve 10% das cerca de 70 mil habitações a serem construídas no local ao programa do governo federal Minha Casa Minha Vida, focado nas classes menos abastadas.
Apesar de o empreendimento estar em terrenos privados, a prefeitura criou o arcabouço jurídico para permitir sua construção por meio da Operação Urbana do Isidoro. O projeto, de autoria do prefeito Márcio Lacerda (PSB), foi aprovado por unanimidade na Câmara Municipal, onde a oposição praticamente é nula e PT e PSDB são aliados.
Em meio a este cenário, suspeitas de irregularidades levaram o Ministério Público Estadual a questionar em duas ocasiões o licenciamento ambiental concedido a um dos trechos da área. Em novembro último, o promotor Eduardo Nepomuceno de Sousa recomendou que a prefeitura anulasse o voto da relatora do Conselho Municipal do Meio Ambiente (Comam), Fátima Cristina Gomes Cândido de Araújo. A servidora é mãe de Maria Diniz Cândido, advogada da Direcional Engenharia, empresa que integra o grupo Santa Margarida Empreendimentos Imobiliários, responsável pela obra. “Há um impedimento objetivo dela em relatar e votar qualquer empreendimento que tenha interesse desta empresa”, ressalta o promotor.
Na investigação, que já dura mais de um ano, Sousa tenta esclarecer se Maria Diniz foi contratada em período paralelo à relatoria do processo. “É uma coincidência ruim.” A constatação do Ministério Público mineiro está entre as 14 supostas irregularidades da operação, apresentadas pelo vereador oposicionista Iran Almeida Barbosa (PMDB) e já sob investigação do órgão.
A prefeitura, no entanto, não enxerga conflito de interesses no caso e refutou a recomendação da Promotoria. O conselho, diz a secretária-adjunta de Planejamento, Gina Rende, não entendeu haver irregularidades no relatório e “as pessoas não são tuteladas para opinar”. Mas, de acordo com o promotor, a servidora está sendo investigada também por suposto recebimento de propina para favorecer a aprovação de empreendimentos imobiliários na região da Lagoa da Pampulha. “A nossa ótica não é inventada.”
A Promotoria também considerou irregular outro aspecto do licenciamento. Em outubro de 2011, o órgão apontou que a autorização era de responsabilidade do Estado de Minas Gerais e não do Comam, pois a área faz divisa com o município de Santa Luzia, que sofreria impactos diretos com a obra. Medida rebatida por Rende, em entrevista a CartaCapital. Segundo ela, o estado delegou a competência no licenciamento à prefeitura belo-horizontina. “É o único local na região metropolitana com esse aval.”
Em sua recomendação, Cristovam Joaquim Fernandes Ramos Filho, à época o promotor e atualmente procurador do Estado, pediu a inclusão de um Estudo de Impacto de Vizinhança para analisar as consequências da obra no meio urbano. “Para fazer um empreendimento como esse, é preciso derrubar árvores, saber o que acontecerá com o trânsito, o clima. É espantoso que a Câmara tenha votado sem considerar nada disso”, aponta o vereador.
Copa do Mundo
A construção bilionária, apelidada de Granja Werneck, é diretamente beneficiada pela proximidade com a Cidade Administrativa, projeto do ex-governador de Minas Gerais Aécio Neves (PSDB), que trouxe a especulação imobiliária para a região. As obras despertaram a atenção de loteadores irregulares para a Zona Norte da capital mineira. “A cidade tem sofrido com a especulação imobiliária e muitas pessoas se aproveitaram de informações privilegiadas para comprar propriedades na área e lucrar”, afirma Sousa.
Adensar a população nesta parte da cidade é um desejo antigo da prefeitura, que chegou a realizar um projeto semelhante na região anos antes, sem sucesso. “A área é alvo de grande cobiça de loteadores, na medida em que os investimentos do Estado no setor Norte começaram a atrair sua atenção”, diz o secretário municipal de Governo, Josué Valadão, em entrevista aCartaCapital.
O empreendimento também está relacionado com a Copa do Mundo de 2014, pois o grupo construtor deve entregar à cidade, por 150 dias, três mil habitações mobiliadas e equipadas como hotéis três estrelas para abrigar visitantes durante o mundial. “A Copa do Mundo foi inserida oportunisticamente para facilitar a aprovação do projeto”, contesta o vereador.
Outro questionamento paira sobre a titularidade dos lotes da Granja Werneck. Uma parte da área foi doada na década de 1910 para um médico a fim da edificação de um sanatório. Mas o Ministério Público investiga se os 10 milhões de metros quadrados faziam parte do acordo, pois apenas 200 mil deles foram usados para a instituição. O restante teria sido repassado à família como herança e, neste caso, não poderia ter fim lucrativo por se tratar de uma doação do município.
Sousa confirma ter requisitado ao setor de patrimônio da cidade esclarecimentos sobre a propriedade do terreno, pois a lei “não é clara sobre o que foi doado”. “Percebemos que a prefeitura e o Estado têm um controle patrimonial imobiliário arcaico, principalmente nestas áreas mais antigas.” O promotor afirma, porém, que os proprietários apresentaram títulos de posse, embora seja preciso compará-los aos documentos da prefeitura. “Vamos tomar o cuidado de ver se há coincidência de área ou invasão.”
Além das suspeitas investigadas pelo promotor, o vereador Barbosa questiona a validade da operação, que deve durar 12 anos e construir 12% dos imóveis para fins comerciais. Segundo ele, a medida foi aprovada junto a Lei nº 9959, enquanto deveria ter sido realizada em lei específica analisada separadamente pela Câmara.
“Cada operação urbana tem que ter uma lei, não necessariamente exclusiva”, rebate Leonardo Amaral Castro, gerente-técnico consultivo da Secretaria de Governo de Belo Horizonte.
O Ministério Público tem, no entanto, uma compreensão distinta sobre as operações urbanas. O órgão contesta as leis do município por aprovarem este tipo de ação de maneira genérica. Neste cenário, adianta Sousa, o órgão vai adotar novas medidas contra a Operação. “Essa ação pode envolver o licenciamento de forma pontual, a operação urbana genérica, a relatoria suspeita, ou ampliar para outras possíveis irregularidades.”
A prefeitura analisa o projeto como legal e com benefícios à cidade, como a doação de dois parques públicos pelo empreendedor. Um deles teria 2,3 milhões de metros quadrados e o outro, 500 mil metros quadrados, além de reservas particulares ecológicas a somar 1,2 milhão de milhão de metros quadrados. Esses espaços serão abertos ao público, embora cerquem o empreendimento e o beneficiem de forma direta, inclusive com valorização imobiliária.
A área de construção permitida no terreno, de acordo com a prefeitura, é de quatro milhões de metros quadrados. O local foi divido em três graus de proteção, que chegam a vetar edificações na área de parques e reservas e definem a ocupação entre 30% e 50% nos espaços restantes. Um plano de proteção da mata nativa visto como insuficiente por Barbosa, para quem os parques não compensariam a perda de um milhão de árvores a serem derrubadas, segundo o relatório enviado à Promotoria mineira, para abrir espaço ao empreendimento.
A região é caracterizada por Floresta Estacional Semidecidual, que pertence à Mata Atlântica, explica o biólogo Rubens C. Motta. “Esta tipologia de mata é a mais comum nos arredores de Belo Horizonte, mas infelizmente restaram poucos fragmentos ainda intactos.” Por outro lado, a prefeitura defende que não haverá perda de área verde na cidade e garante a manutenção da mata atlântica presente na região, embora haja pressão com a chegada dos prédios. “Esse conceito de mata atlântica é tangível. No meu sítio, mandei plantar mata atlântica”, ironiza o secretário Valadão.
O vereador contesta também as medidas de compensação pelo empreendimento, que somam, entre outras, a construção de 16 unidades municipais de educação, 14 centros de saúde e as vias de ligação com o entorno, Via 540 e Norte-Sul. “Como se constrói uma ‘cidade’ de 240 mil habitantes sem um batalhão de polícia e um hospital?”
Dentro da operação, a empresa fica responsável por construir as vias e fora dela a prefeitura deve desapropriar os terrenos com essa finalidade. O município, diz Rende, vai “pagar isso um dia, se a operação se consolidar.” “Não se sabe qual seria esse valor, porque não há um estudo de viabilidade financeira”, critica o vereador. Ele cita estimativas em torno de 360 milhões de reais para as desapropriações. Mesmo com a criação prevista de uma nova regional na cidade, a prefeitura diz não ter estimativas de quanto irá gastar para manter a estrutura a ser construída. “Esses custos seriam do município de qualquer forma”, aponta a secretária-adjunta.
Durante o estudo de impacto ambiental, Gustavo Pedersoli, biólogo ornitólogo, que prestou consultoria à empresa responsável pela elaboração do documento, identificou um grupo de falcões-relógio na mata do Isidoro. A espécie nunca havia sido registrada na cidade. Segundo o especialista, a presença do animal, considerado um predador topo de cadeia alimentar, indica a existência de um ecossistema preservado e uma mata de “expressão interessante” para a cidade.
Pedersoli sugeriu à empresa que fizesse estudos mais aprofundados sobre o animal, devido ao temor de que o manejo equivocado da mata possa levar à extinção da espécie em Belo Horizonte. Ele também acredita que o falcão-relógio sofrerá forte pressão ambiental com o empreendimento, como ruídos e possível presença de humano na floresta, além de ter uma área de convivência menor.
Enviada por Alenice Baeta para a lista CEDEFES.