Um “Xingu” comportado demais

Embora belo e didático, filme não explora cosmologias e formas de viver-pensar indígenas — nem a sideração de “tornar-se outro”, presente em “Avatar”

Por Ivana Bentes*

Fui ver “Xingu”, na estreia no Roxy, e é muito fácil embarcar no filme: didático, belo, comportado. E fiquei pensando o que Herzog faria com essa história, com um potencial tão disruptivo e perturbador! Eu queria ver outro filme, e definitivamente “Xingu” não é sobre os “indios”, mas sobre a relação dos brancos com um mundo que precisam neutralizar e que é, de certa forma, insuportável.

O filme aplaca certa culpa e junto com ela neutraliza nosso devir-indio, com essa pragmática e bela defesa do “parque temático” do Xingu, que evitou a dizimação ainda mais atroz de índios brasileiros. Um gesto corajoso e político dos irmãos Villas Boas, a batalha pela demarcação de uma incrível reserva indígena que retardou e impediu parte do massacre. Mas criar uma “reserva” de humanidade já é matar. Mal “menor”, diz o filme.

A história dos irmãos Villas Boas e dos sertanistas é tão incrível que, para mim (e espero que para outros), o filme é um disparador de mundos e imaginários. A cosmologia indígena, sua outra forma de viver/pensar são uma das mais radicais experiências de outras humanidades.

Tirar os indios das “reservas”, dos “museus”, da “antropologia”. O que pode ser um devir-índio? Poucos filmes fizeram isso. Aproveitei e revi “Cara de Indio”, os comentários do antropólogo e pensador Eduardo Viveiros de Castro sobre algumas fotos clássicas dessa história de amor fatal entre nós e eles.

No final dos anos 1980, viajei, acompanhando o trabalho de minha irmã, com uma expedição da Funai para duas tribos. Saímos de Benjamin Constant, na fronteira com a Colômbia, em direção ao Alto Solimões e ao encontro dos Marubos e Matis. Chegar numa tribo indígena, ainda com pouco contato na época, mesmo com todas as mediações de antropólogos, funcionários da Funai, médicos, guias, é algo impressionante e marcante, como se toda a história dos contatos e do infinito fascínio mútuo tornasse a acontecer pela primeira vez.

Os índios não são o “museu” da humanidade, são mundos potenciais e virtuais. Por isso, fiquei tão siderada com um filme como “Avatar”. Hollywood cravou direto, mesmo com todos os clichês, numa ficção-cientifica antropológica: ciber-indios, aos invés de desejar dizimar e matar, desejar intensamente tornar-se outro.

“Xingu”, às vésperas da Rio+20, também aponta para a outra “fantasia” desenvolvimentista de “integrar” os índios como sub-trabalhadores de um Brasil industrial. De Vargas a Belo Monte, passando pela “integração nacional” da ditadura. Este projeto fracassou, exterminou etnias inteiras, e ainda está ai!

O projeto indigenista dos irmãos Villas Boas, de “isolar”, de evitar o “mau encontro” com os brancos, de “retardar” a extinção de mundos inteiros é hoje uma referência internacional. Mas qual é, hoje, a potência dessa fabulação? Os filmes meramente “informativos” ou belos nos ajudarão a construir outra narrativa? Politica é sideração!


*Professora, pesquisadora e diretora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ. Este texto é rascunho para um artigo sobre o filme. Título e subtítulo são da redação de Outras Palavras

http://www.outraspalavras.net/2012/04/09/um-xingu-comportado-demais/

Comments (1)

  1. Ivana, discordo deste teu ponto de vista,nnao acho “Xingu”filme do Cao um filme comportado, e nem mesmo dialoga com “Avatar”. Ele evidentemente conta uma parte da historia dos povos indigenas do ponto de vista dos “brancos”, e nem poderia ser diferente porque o diretor se propos a contar a historia brava de três irmãos (poderiamos incluir um quarto – Alvaro), e conta muito bem, emociona e humaniza – os índios desde de sempre snao estigmatizados como seres teratologicos (romanticos ou não). O proprio Cao numa entrevista recente conta que ficou surpresa ao constatar que mesmo entre seus amigos proximos existe preconceito e indiferença aos povos indigenas. Neste sentido, Xingu nos aproxima de uma Historia fundamental, poderia ter mais, mas aí seria os muitos filmes que cada um de nós gostaria de realizar. Ivana, você como amazonense, mescal de nordestina com india, cabocla de PARINTINS tem bagagem emotiva suficiente para compreender que desde sempre (novamente) o dilema dos indigenistas (desde Rondon) “é o que fazer” com os indios depois de “contatados”, este ee o mesmo dilema nosso que vivemos nas cidades, o quê fazer diante do avanço da “civilização”, os hippies bem que tentaram regredir a vida arcaica-agraria, mas foram tbm engolidos pela foracidade da sociedade de massas que avança implacavelmente. Xingu é um grande e necessario filme. Soldações A

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