Há muito Alfredo Bosi é reconhecido como um dos mais importantes críticos literários brasileiros. Afeito à linha de leitura pautada pela conjunção de formalismo literário e implicação histórica, o autor de Dialética da colonização é dono de uma obra que resolve com felicidade os impasses instituídos por correntes analíticas refratárias à pluralidade. Nesta entrevista, concedida a estudantes da pós-graduação da UFRJ (Eduardo Rosal, Heleine Domingues, Luiz Guilherme Barbosa, Marcos Pasche, Mayara Guimarães, Priscila Castro, Roberto Lota e Wellington Silva), no Centro de Estudos Avançados da USP, do qual é coordenador, Alfredo Bosi fala detidamente de seu mais recente livro — Ideologia e contraideologia —, recapitula seu percurso intelectual e destaca a importância do Padre Antônio Vieira para as letras do Brasil.
• Em Ideologia e contraideologia, a crítica literária praticamente não aparece. A escrita de um livro dedicado à análise de idéias sociológicas e filosóficas é fruto de um projeto antigo, talvez possibilitada no momento em que se deu sua aposentadoria, ou fruto de um caminho novo que o senhor pretendeu explorar recentemente?
Essa pergunta me interessa de perto porque me ajuda a fazer uma auto-análise até de um possível projeto intelectual. Acredito que essa preocupação em definir melhor certas idéias, certos valores culturais, venha de longe. Pelo menos, eu poderia datar da concepção de Dialética da colonização. Quando escrevi Dialética da colonização, no final dos anos 1980, publicado em 1992, já minha preocupação era construir essa ponte entre o universo literário — que é um universo de imaginação, que se projeta evidentemente à subjetividade dos autores — e algo público, uma atmosfera cultural, social, pública.
Fui educado, bem no princípio da minha formação, na leitura das obras de Benedetto Croce, que era realmente o centro dos estudos literários da Itália. Mas fui educado já na Universidade de São Paulo, quando estudioso e depois professor de literatura italiana, em uma estética que insistia na separação, na divisão. Isto é, deixava bem claro que uma coisa era o conhecimento do mundo por meio de idéias e valores — conhecimento de que a filosofia é o centro, mas que depois foi ampliado, na modernidade, mediante as ciências humanas, sociologia, antropologia, ciências políticas, psicologia —, e outra o conhecimento por intuição.
O conhecimento por idéias tem uma relação com o real de fidelidade, em que sensibilidade e imaginação devem conter-se para que o mundo da relação entre idéia e realidade apareça na sua nudez. Ao passo que o conhecimento por imagens, o conhecimento intuitivo, não precisa ter uma correspondência direta com o mundo empírico, histórico. Isto é, quem escreve um romance, mesmo que queira fazer um romance histórico (como acontecia muito no século 19 e continuou acontecendo em grande parte do século 20), mesmo quando deseje realmente ser fiel à historicidade, é claro que não precisa comprovar documentalmente a veracidade dos fatos. Então há, mesmo no romance histórico, uma imbricação do documento com o imaginário. Essa concepção de Croce parece muito radical, como quem diz: “Ciência é ciência, filosofia é filosofia, sociologia é sociologia, arte é arte. Arte é imagem e sentimento. As ciências humanas têm uma relação direta com a realidade, ou procuram ter, e têm obrigação de dar ao seu leitor a veracidade de suas conclusões”.
Essa foi minha primeira educação estética, pela qual o mundo da imaginação e do sentimento formava um espaço próprio que deveria ser estudado na sua especificidade. Mas as diferenças entre os sujeitos literários, os autores, é que realmente marcam a história da literatura, mais do que os grandes blocos, como o renascimento e o barroco. É preciso que se preocupe realmente com o diferencial individual. Croce chegou a dizer uma coisa que escandalizou os historicistas da época, hoje menos: que a melhor história da literatura seria por autores. Então você pensava: Dante e sua época, Petrarca e sua época, quer dizer, o sujeito em primeiro lugar, enquanto o historicista faz o contrário, não é? Ele primeiro estuda as grandes características dos movimentos e depois situa os autores. Bom, essa posição radical do Croce me ajudou bastante, pois me deu uma base teórica para dar à literatura o que é da literatura, dar à poesia o que é da poesia, mas, ao mesmo tempo, essa posição ficava um pouco marginal em relação à sociologia da literatura, as relações entre antropologia e literatura, entre cultura e literatura. Tudo isso, como se dizia, era interessante, só que não interessava. As pessoas achavam que deveriam fazer a relação, principalmente quem tinha uma formação marxista ou hegeliana, as duas posições sociológicas mais fortes.
Havia um mal-estar: ou se estabelecia uma autonomia da escrita de tudo que ficava em torno, e se focava inteiramente na intuição, na criação, que é a posição croceana; ou então o contrário, colocava-se luz no período todo e tudo era iluminado, e os autores recebiam luz deste universo de valores e idéias, que seria a posição da sociologia da literatura, do marxismo; em geral, das posições culturalistas. O importante é saber o que há de comum em vários autores para flagrar o espírito do tempo, da época. Essa é uma expressão profundamente historicista que vem de Dilthey, filósofo do final do século 19, criador da idéia de que a gente precisa estudar os estilos históricos, pois, por mais que nós sejamos individualizados, personalizados, quem for ver de longe, dirá: “Ele quis ser muito original, mas veja quantos escritores pensaram igual. Então havia uma coisa que os transcendia — os estilos de época”.
• Como o senhor reagiu diante dessas duas possibilidades de história da literatura?
Isso que estou colocando passou a ser um problema para mim, não tinha uma solução. As soluções opostas eram drásticas: ou a autonomia do texto literário, ou o que na Itália se falava “heteronomia”, quer dizer, não há nada que seja específico, tudo tem relação com o outro, que é um outro que o transcende. A primeira posição acabou sendo chamada de idealista, porque ela evidentemente dava o maior crédito possível à originalidade individual. E a segunda posição era realista, ou, no caso, marxista materialista.
Quando eu estudei, essa posição marxista não tinha ainda hegemonia nenhuma, como depois veio a ter em certos momentos da história cultural, sobretudo nos anos 1970. Nós não nos preocupávamos em fazer uma relação fixa com a ideologia da época, nos preocupávamos em entender o autor na sua especificidade. Mas o tempo vai mudando, os acontecimentos históricos vão nos pressionando. Eu escrevi História concisa da literatura brasileira sob o fogo da ditadura militar, portanto, não era possível que me subtraísse à importância das ideologias dominantes — às quais, porém, já naquela época eu contrapunha algo que eu não chamava de contraideologia, mas que sempre procurava mostrar uma intuição que eu tinha, que não era ainda perfeitamente formulada. A intuição era que mesmo nesses períodos tão fechados, como realismo e naturalismo, ou então, voltando atrás, ao barroco, a gente encontraria diferenças internas, que seriam quase tensões internas. Eu sentia que isso era importante, mas não teorizava a respeito. O período é este, mas você encontra barroco e antibarroco dentro do mesmo período; o período é romantismo, mas você encontra quatro ou cinco romantismos na literatura brasileira, e isso é bastante evidente: a primeira, segunda e terceira gerações, muito próximas, que vão dos anos 1840 aos 1870; em 30 anos você tem literaturas conservadoras como Gonçalves e Magalhães até Castro Alves, e tudo é romantismo. Mas então o que é esse romantismo que tem diferenças tão profundas?
Eu sentia que essas teorias de quem faz história literária pagam muito tributo aos estilos e períodos. Evidentemente, ainda mais por vias didáticas, não se pode deixar de pensar nos grandes períodos, como eu pensei à época. Só que à medida que eu escrevia o livro, verificava que era insuficiente só demarcar as características — era muito escolar, naquele sentido menor, “romantismo é a, b, c, d, e”, como faziam os cursinhos antes e ainda fazem; virava uma coisa mecânica. E é assim mesmo, pois há quase que uma imposição de que é preciso entender os grandes períodos. É claro que, por trás disso, num nível alto, havia o pensamento de Dilthey, de que Carpeaux, no Brasil, foi o grande divulgador na História da literatura ocidental. É uma história que acredita profundamente na unidade dos grandes períodos, mas como Carpeaux era um espírito dialético, que tinha lido muito Hegel, e depois Marx, ele foi dialetizando dentro de cada grande período. Foi meu mestre, meu grande mestre, a quem dediquei esse meu livro em 1970, uma época em que ele já estava se afastando da crítica literária e entrando numa militância antiditadura, uma militância que acabava escrevendo em jornais dos estudantes de esquerda. Grande homem, mas cuja História da literatura ocidental foi para mim o paradigma.
• O desenvolvimento do conceito de contraideologia passa também por Dialética da colonização?
Nos anos que antecederam a concepção da Dialética da colonização, eu estava diante desse problema a ser resolvido, e já tinha escrito uma história literária e várias coisas sobre poesia, mas ainda não tinha centrado na história das ideologias do Brasil. Então, ao escrever esse livro, uma reunião de ensaios de períodos diferentes, realmente precisei enfrentar o problema das ideologias, que são pontos de vista quase grupais, coletivos. Quando se lê um romance, procura-se o ponto de vista do autor, primeira pessoa, terceira pessoa, e isso está sendo cada vez mais aprofundado com a crise da idéia do autor e do sujeito, mas é o ponto de vista que se procura flagrar. Agora, quando se pensa num conjunto grande de obras, não só literárias, mas extraliterárias, qual seria o ponto de vista? A ideologia, de alguma maneira, é o termo genérico que corresponde ao específico ponto de vista da literatura. O ponto de vista está para o romance assim como a ideologia está para o conjunto de obras literárias e extraliterárias de um período.
Antes de chegar em Ideologia e contraideologia, eu já tinha enfrentado de algum modo essa problemática. Quando estudei Anchieta, Vieira, Gregório de Matos, fui saltando para Alencar e Antonil, e então você vê que para mim era muito importante ler estes autores num embate com o tempo, e cada um deles, de alguma maneira, absorvia o seu tempo, mas respondia ao seu modo. Eu voltava ao Croce, que estava lá escondido, para mostrar que havia ideologia, mas que diferença entre eles! Entre Antonil e Vieira, por exemplo. Os sonhos de Vieira, as quimeras de Vieira, não eram as de Antonil, que foi seu secretário (má idéia, pois Antonil o traiu). Enfim, sabemos o quanto Vieira debateu-se contra o seu tempo, mas acho que seria muito complicado tirá-lo do barroco, quando tantos de seus tópicos são barrocos. Então, esse livro, que chega até Castro Alves, Lima Barreto, vai sempre acompanhando os estilos de época e essas reações individuais, até chegar o momento em que eu realmente dei as costas ao universo especificamente literário e fui estudar a ideologia positivista do Rio Grande do Sul.
Esse foi um momento em que estava preocupado com a história da colonização no Brasil antes e depois da independência, com a maneira como as idéias aqui frutificaram, entraram fundo na nossa vida política. Então, o estudo sobre o positivismo, que é a arqueologia do Estado por evidência, é uma espécie de germe do que viria a ser Ideologia e contraideologia, isto é, um estudo específico de uma determinada ideologia, a positivista, tão importante na formação da República, sobretudo dos militares da república, depois dos gaúchos, e que vai dar em Getúlio Vargas e na modernização autoritária, que é uma modernização progressista.
Mais tarde isso continuou dentro de mim, e nos anos 1990 fiquei preocupado, porque se entra em polêmicas com outras correntes. Há o marxismo ortodoxo, do qual me afastei, ficando mais próximo da Escola de Frankfurt, de Adorno, sobretudo, que dá enorme importância à subjetividade, do ponto de vista individual, mesmo sendo um escritor e filósofo de origem marxista. Adorno diz especificamente que a grandeza do poema é aquilo que a ideologia esconde. É uma frase muito significativa, poderia ser até um lema do que eu escrevi. Não conhecia esta frase quando escrevi Poesia e resistência, mas dava uma bela epígrafe.
Depois da Dialética da colonização, avultou dentro de mim a necessidade de entender efetivamente o que é ideologia, porque começou a época da crítica ideológica, não sei se muito no Rio de Janeiro, mas muito em São Paulo. Em São Paulo, todo mundo já sabe, por uma tradição que veio da tradução francesa dos anos 1930, a sociologia se implantou de modo muito sistemático em nossos grandes professores — dos quais Antonio Candido é uma espécie de guru, mas em outros também talentosos, como Rui Coelho. Sempre havia preocupação em mostrar o traço sociológico, o traço social e histórico, e isso nos acompanhou muito, formou toda uma equipe. Eu nunca pertenci à equipe do professor Antonio Candido, tive uma formação lateral a ela. Eu era um leitor e, como todos nós, discípulo, porém não me formei naquele âmbito muito específico de sociologia da literatura, e minha formação croceana, de alguma maneira, me imunizou de um excesso de sociologia.
Mas eu percebia que, talvez por motivos políticos, talvez por motivos de militância, havia certa crítica derivada dele que levava às últimas conseqüências o sociologismo, ao qual eu resistia muito — não porque não me interessassem as relações entre literatura e sociedade, mas porque o grau de determinismo era muito grande, e é preciso relativizar o determinismo, pois se ele fosse verdadeiro, todos os autores de uma mesma época teriam a mesma ideologia, não é verdade? Se a ideologia é algo que recobre totalmente não só o pensamento da classe dominante, mas também o pensamento dos dominados, que começam a pensar como a classe dominante, do ponto de vista macroscópico da sociedade, é muito verdadeiro que haja uma hegemonia de certo pensamento, hegemonia da globalização. Tudo tinha que entrar nisso, não havia possibilidade nenhuma de reação, enquanto eu verificava, por toda minha leitura de poesia, que, muito ao contrário, existia uma reação. Mas como chamá-la? Se você tem uma ideologia dominante e pensa em termos marxistas, essa reação só é possível pela revolução — isso aconteceu na Revolução Francesa, na Soviética, na Cubana, na Chinesa, independentemente do que aconteceu depois, do que os homens fizeram com os grandes ideais, como fizeram com o Cristianismo, havendo depois a Inquisição e coisas terríveis. O que é possível fazer com idéias sublimes nós já sabemos, mas isso vem dos deslimites da humanidade e não vamos entrar por aí. O fato é que entre as ideologias, as idéias mais puras e sua consecução, sempre há um intervalo, muitas vezes doloroso.
Eu verificava que a poesia, a literatura — falo da poesia porque fiquei mais próximo dela, mas podemos fazer o mesmo com a literatura narrativa — de imaginação, de sensibilidade, se articulava como defesa ou ataque em relação à ideologia dominante, como Baudelaire, por exemplo, um dos grandes poetas. E que nome dar a isso? Em termos estritamente marxistas, o que se contrapõe à ideologia burguesa é a revolução proletária, o que seria uma contraideologia, só que Marx não usa essa expressão, e os sociólogos também não, mas eu achei que era necessária. Em certo momento, pensei: como mostrar que há uma tensão entre ideologia e poesia? E aí voltei ao velho Croce, que todo mundo pensava que estava enterrado para sempre. Na Itália, depois de Gramsci, Croce já era, como diziam, um furioso comunista, um “cão morto” pela cultura italiana. Mas as coisas bem pensadas ficam sempre; volta e meia, as coisas bem pensadas emergem.
Em 1921, Croce estava em plena forma e escreveu um livro chamado A poesia de Dante, onde ele separa ideologia e não-ideologia. Vamos estudar Dante como ideólogo do Sacro Império Romano, do catolicismo medieval, de São Tomás de Aquino, e de tudo que era hegemônico no mundo da cultura ocidental. Muito bem, Dante é tudo isso. Se você abre uma obra comentada, verifica mil remissões a esses grandes filósofos medievais e à concepção do Sacro Império Romano que ele defendia e pela qual foi exilado; foi um militante político e, digamos, ideológico, no sentido de que tinha uma preferência. No entanto, diz Croce, abre-se a Divina Comédia e o que encontramos? Tudo isso, só que isso é não-poesia, e ele o dizia abertamente, para grande escândalo das esquerdas e até dos católicos. As esquerdas achavam que o pensamento político de Dante tinha estruturado o seu poema, e os católicos achavam que a religiosidade de Dante é que tinha estruturado o poema. Eles colocavam a política e a religião como estruturadoras da forma, e vem Croce e diz não, isso é cultura, Dante era um homem cultíssimo, não poderia deixar de refletir tudo isso. Isso é cultura, e organiza, ele chegava a dizer, a estrutura dos vários ciclos; até a forma do inferno, do paraíso, estão todos estruturados em virtude do pensamento aristotélico, em certos pecados mais graves ou menos graves, enfim, a moral que está lá é a moral aristotélico-tomista, mas não é aí que está a poesia de Dante.
A poesia de Dante está quando as vozes dos condenados falam contra a sua vida, como Francesca da Rimini, por exemplo. Quando conta como se apaixonou e depois foi punida e assassinada, ela e seu amado, por seu marido. Quando canta, no V canto do “Inferno”, aí aparece a poesia: ela é essa voz em que as imagens e os sentimentos aparecem; não está no fato de ela ter sido condenada, porque o fato de ter sido condenada e estar no ciclo dos luxuriosos, do amores pecaminosos, é ideologia, isto é, pensamento da época. Ela não podia deixar de estar lá, Dante não tinha a possibilidade de colocá-la fora, porque ele estava inteiramente imerso nisso; mas o fato de ela falar, sair do meio das sombras e falar a Dante, que está caminhando, conversando com os condenados, e contar poeticamente como seu amor despertou e como depois foi condenada, e o fato de Dante ficar tão emocionado que desmaia (ele termina o V canto dizendo: “e eu caí como um corpo morto cai”).
E isso Croce diz de maneira admirável: devemos separar conceitualmente poesia e não-poesia. Ora, transformando isso em termos sociológicos e modernos, deve-se separar ideologia e contraideologia — que é a frase do Adorno em outros termos. A contraideologia é um movimento individualizante que faz com que o singular apareça; aquele singular que parecia inteiramente absorvido pela universalidade da ideologia dominante está lá, pulsando. E é ele que vai dizer coisas que durante séculos e séculos serão repetidas e a gente vai ler e vai se comover com aquilo.
O que eu quero dizer é que A poesia de Dante é inspirador, porque nele há uma divisão entre o que há de comum e o que há de individual. O que há de comum? A ideologia da época. Ele é muito justo com essa ideologia, mesmo sendo um espírito nada sociológico, porque achava que não se podia fazer sociologia da literatura. Mas ele tem coisas radicais que hoje não seriam assimiladas. Ele foi justo e usa a palavra “estrutura”, não no sentido que se vai dar depois, “estruturalista”; mas a estrutura de um livro freqüentemente representa, espelha as tendências ideológicas da época. E isso é verdade, mas a poesia ele separa, é a voz individualizada.
Então, forrado dessas idéias, quando voltei para o mundo dos valores, das ideologias, eu já estava bastante convicto de que era preciso estudar, em cada período, as tendências contrastantes de ideologia e contraideologia, que está em Poesia e resistência, mas ali só ligada à poesia. Então fiquei em um mare magnum de autores, e como enfrentar tudo isso? Foi uma ambição desmedida, talvez o futuro vá julgar isso como uma pretensão, mas quando se está imerso, vai-se em frente. Estudei, desde o renascimento, momentos isolados e, depois, pensei mais no Brasil, na segunda parte do livro, no que eu chamo de “Interseções Brasil-ocidente”. Neste ponto, minha polêmica é contra aqueles que acham que as idéias no Brasil estão coladas, que elas não estão consubstanciais à nossa vida política. Eu acho que as idéias no Brasil tiveram seu momento constitutivo, o liberalismo teve seu momento constitutivo na formação da nacionalidade com a independência, com ela era absolutamente necessário dar um cimento ideológico à nova nação. E que cimento poderia ser dado em 1822 senão o liberalismo que tinha triunfado no ocidente depois da Revolução Francesa, o liberalismo burguês?
Nesse ponto, fiz o que se pode chamar de história ideológica: fui às atas dos parlamentos para verificar como se dava o debate contra ou a favor da escravidão. Infelizmente, nosso Alencar se saiu muito mal nisso: ele era senador nesta época e se levantou contra a idéia do ventre livre. Parece incrível, não é? Um romancista tão delicado, escritor brilhantíssimo. Independentemente dos méritos literários de Alencar, que, acho, são consensuais, do ponto de vista ideológico, em 1871, depois de ter escrito O guarani e outras obras-primas, ele se levanta como senador e diz que é contra a Lei do Ventre Livre, pois seria uma interferência do Estado na vida particular, nas famílias que tinham o direito por terem comprado os escravos. Parece uma coisa escandalosa, mas ele diz isso, e falava em nome da liberdade — naturalmente, a dos patrões, pois eles compraram e “a propriedade é sagrada”. Essas idéias de propriedade sagrada e liberdade individual são idéias do velho liberalismo, contra as quais o novo liberalismo de Nabuco, de Patrocínio, de Rui Barbosa, entre outros, se levanta. Então, eu vi uma coisa muito forte, uma dialética interna das ideologias. Num certo momento, os abolicionistas eram contraideológicos. Os abolicionistas, começando por Nabuco, depois todos os outros mais ligados ao mundo popular, como José do Patrocínio, estavam combatendo a ideologia dominante, que era escravista, mas escravista em nome da liberdade, como os Estados Unidos na mesma época.
O livro, portanto, procura enfrentar esse problema até praticamente sua parte final, onde tem um apêndice, que é a passagem para o literário, mas não vou falar dele agora, pois estou respondendo como vem dentro de mim essa tensão e como a procurei formular em vários livros, dos quais o último é o mais articulado.
• Quais as limitações do estudo historiográfico da literatura?
É claro que uma obra tem uma data final. Quando escrevi a História concisa da literatura, em 1970, então meu horizonte era aquele, terminava nos anos 1960. Época de grandes escritores. Meu gosto ficou assim, quando se fala em grande poesia, penso em Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima. Os jovens dizem: “Eles morreram há tanto tempo, escreveram as coisas desde o modernismo até o final dos anos 1960”. Alguns ainda escreveram um pouco mais depois. Uma época tão grande, talvez. É uma questão de gosto. E há um momento em que se formou esse gosto, então tudo que vem depois interessa como movimento cultural, como surgimento de sensibilidades, mas se tem sempre um parâmetro. Depois de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, o que vem dessa altura? Às vezes, dá um sentimento pessimista. Será possível que não haverá algum outro poeta como Drummond, Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles? Eu tive sorte de terminar a História concisa ainda abordando autores que são os clássicos da modernidade. E, para mim, da contemporaneidade, porque a palavra “contemporâneo” é muito elástica. Cada geração tem seu contemporâneo. Meus contemporâneos são os grandes escritores entre 1960 e 1970. A partir de 1970, já são contemporâneos de uma nova geração. Bem, Gullar começou na década de 1950, já vem o prenúncio. Mesmo os concretos, pelos quais não tenho particular paixão, começaram também na década de 1950. Então, vejam como o contemporâneo é uma palavra difícil. Entre o moderno e o contemporâneo, as coisas vão avançando. Qual é o contemporâneo hoje? Vamos dizer, se se faz uma tese sobre a poesia contemporânea e se começa nos anos 1970, são 40 anos. Então a pessoa tem que ter uma certa idade para se considerar contemporâneo.
Isso tudo para dizer como é que terminou a História concisa. Depois houve muitas solicitações e apelos para que eu não terminasse a História um pouco antes de 1970, como foi publicada, para que eu a atualizasse. E não é brincadeira, porque se começa a receber obras e mais obras e mais obras de autores novos e há que situá-los. Muitos poetas me mandavam livros de poesia e eu tinha que discernir quais as correntes que estavam lá, se elas continuavam, se elas inovavam. Mesmo assim, conhecendo a dificuldade da tarefa, eu ainda, até o final dos anos 1980, fiz uma revisão, na verdade, uma pequena atualização, onde aparecem apenas nomes. E pensei: esse livro vai virar um catálogo telefônico se eu começar a colocar todos os autores interessantes. Uma escolha, uma seleção, já é uma crítica porque se acaba ressaltando alguns nomes e deixando outros na sombra. Os contemporâneos não perdoam os críticos literários que os deixam nas sombras. Eles nunca sabem se as condições são voluntárias ou não. Omitiu meu nome por quê? Porque esqueceu ou porque acha que ele não vale a pena?
Então, é um campo minado, que eu acho que é o campo da resenha, do jornal. Se eu tivesse continuado a fazer crítica jornalística — escrevi muito para o Suplemento do Estado, depois um pouco para o Jornal do Brasil —, eu realmente estaria empenhado e ficaria responsável, de alguma maneira, pelos novos autores. Depois, a vida universitária me chamou para outros campos, campos mais da história e da cultura. A partir dos anos 1970, embora eu tenha atualizado, achei que não era mais possível ficar fazendo adendos, acréscimos, teria que escrever um capítulo inteiro sobre a história da literatura contemporânea. Achei que isto já não era tarefa para mim, porque tinha outras, entrei para o caminho da história das idéias, da história da cultura. Acho que esse papel é de vocês agora. Vocês é que estão fazendo, estão levando esse mapa, que é difícil.
Entrevistei Ungaretti quando ele voltou para São Paulo para receber o título de DoutorHonoris Causa. A entrevista está no livro Céu, inferno. Fiz uma pergunta que não deixa de ser ingênua ou muito de jornalista. Perguntei: para o senhor, quem são os grandes autores do século 20? Ele era um homem já de 80 anos, então a memória dele era uma memória toda do século 20. E ele me respondeu, com aquela voz rouca: “Só vão sobrar Gadda e Moravia”. Moravia é um escritor realista por excelência, neo-realista, grande neo-realista. E Gadda seria, muito entre aspas, o Guimarães Rosa italiano, aquele que faz plurilingüismo, que joga muito com as várias semânticas, os vários discursos. Como se se pudesse dizer que só vão sobrar Guimarães Rosa e Graciliano Ramos — eu ficaria contente, só esses dois já chegam. Mas, é claro, um historiador não pode dizer isso, um historiador não tem direito de dizer que só sobram dois, para a nossa facilidade de fazer história literária. Então, incluímos dezenas e dezenas e dezenas. Depois pensamos: por que será que incluí tanta gente assim? Na própria Formação [da literatura brasileira] que o Candido escreveu, há uma parte com alguns autores que nunca fizeram poesia nenhuma, quase se pode dizer que entre a Glaura [1799], de Silva Alvarenga, e os poemas de Gonçalves Dias, que são dos anos 1740, foram 50 anos em que era um deserto, não há nenhum grande poeta, nenhum poeta aceitável. Croce diria: pula tudo isso, estuda os grandes poetas árcades e depois vai estudar Gonçalves Dias, porque o resto não foi poesia. O historiador não pode fazer isso. Ele até acredita que a presença de muitos medíocres depois vai formando um estilo do qual sai um grande escritor. Eu nunca acreditei nisso! Mas há os que acreditam: precisa haver muita gente assim, que é só representativa, que representa seu tempo, mas essa é uma visão organicista — não é uma planta, cujas raízes têm terras diversas, adubos diferentes dos quais sai a flor. Não se pode fazer metáfora dessa natureza porque justamente a criação poética tem entornos, um ethos individual fortíssimo que separa, mesmo que o tema seja o índio, como houve poemas indianistas nessa época. Gonçalves Dias disse de uma maneira que não pode ser repetida: não tem anterior nem posterior, porque o anterior e posterior é temático, mas a criação literária como tal não pode ser pensada em termos de evolução. (…) Na história literária, é muito comum as pessoas quererem ver os antecessores, os precursores, os epígonos, como se um autor fosse o produto de várias gerações, de temas, e depois ele escreve uma obra e a obra dele determina isso. Eu acho que isso pode acontecer no mundo do gosto, no mundo da cultura, mas no mundo da criação é arriscado a gente fazer. Eu sempre achei muito arriscado dizer que, como Alencar escreveu em Senhora problemas ligados ao adultério, ligados ao casamento por interesse, ele já, de alguma maneira, plantou aquilo que Machado de Assis ia fazer, pelo estudo do casamento e do mundo urbano, já com todas as suas ingratidões e traições, etc. — muito próximos um do outro, evidentemente. (…) A história literária viveu muito disso, a velha história literária, desses caminhos. Mas eu hoje teria muita desconfiança em relação a isso. Eu voltaria à idéia de dar a cada autor o que é seu e não se preocupar muito com ecos que ele possa ter de outras obras.
• O senhor citou a História concisa da literatura e, hoje, se pensarmos nas obras historiográficas, ela talvez seja a que de mais recente tem esse tipo de projeto. Com todas as revisões que a historiografia literária já sofreu e ainda vem sofrendo, quanto às suas possibilidades e validade, existe a possibilidade de dar continuidade a esse projeto de historiografia de literatura brasileira? Ainda vale a pena?
Hoje acho que esse projeto deve continuar. É claro que acredito que continuou, assim, de uma maneira parcial. Há pessoas que já estudaram aspectos da poesia contemporânea, aspectos do romance contemporâneo, mas uma história da literatura contemporânea, digamos, grosso modo, pós-moderna (usando esta expressão que vem dos anos 1970), ainda não. Começa-se a perceber que já alguns autores não são mais modernos, porque há alguma coisa que os afasta, esse universo da fragmentação, da globalização, da cultura de massa. Tudo isso não é universo dos modernistas, dos modernos. O mundo realmente mudou, a influência norte-americana também foi tremenda nos anos 1960 e 1970 e tudo isso deve ser levado em conta. Mas estou esperando um historiador à altura, porque agora as coisas são complexas, porque se produz muito. Curioso, não? Quando pude escrever a História concisa eu tinha, digamos, seis ou sete grandes poetas, seis ou sete grandes romancistas, dos anos 1930 aos 1970, e os outros eu citava au bout des lèvres, como diriam os franceses, só da boca para fora, porque eles apenas compunham um quadro. Mas hoje esse é um fenômeno que deve ser estudado à parte. É quase impossível acompanhar, porque não sei se o movimento editorial ficou mais aquecido, para usar um termo da economia, ou então as pessoas publicam sem muita preocupação de difundir sua obra, quer dizer, publicam às suas próprias custas e então sai muito livro, muito livro de poesia. Como catar, garimpar um diamante no meio disso? Eu teria muita dificuldade se tivesse que assumir essa tarefa (não vou assumir!). A seleção é muito complicada, porque você tem que ter já parâmetros bastante sólidos e injustiças podem ser cometidas, porque, hoje, é no Brasil inteiro que se publica. Só quero dizer uma última palavra: não é nada fácil.
Eu acho que a tendência vai ser a seguinte: antologias ampliadas e comentadas. Assim como fez a Heloisa Buarque de Hollanda: antologia da poesia marginal; antologia da poesia concreta e neoconcreta; as várias tendências da poesia participante, engajada. Isso já há, mas acho que é preciso continuar fazendo, para dar matéria com corpus de historiador. Agora, que a história literária está em baixa, está. Hoje, as pessoas têm a preocupação de fazer um ensaio tópico. Ter coragem de fazer história literária é de uma temeridade — eu mesmo cometi essa temeridade, mas não pretendo fazer de novo.
• O que faz com que determinados autores sejam relidos? O que faz com que eles permaneçam mais fortemente até hoje?
Há uma primeira constatação: o que são os autores clássicos? Aqueles que resistem ao tempo? Nós só podemos responder isso post factum. Isto é, depois que todos esses autores escreveram e que, por assim dizer, emergiram, então nós os consideramos clássicos e os integramos ao cânone, conceito hoje tão maltratado e tão negado, às vezes. O que é o cânone, no fundo? É este elenco de autores que sobreviveram ao tempo, continuaram sendo lidos, estudados. A pergunta é: por que eles sobreviveram? Por que eles são clássicos? É uma pergunta que está embutida na sua questão. Eles são clássicos provavelmente porque dizem coisas diferentes a cada geração, a cada época, então se fazem leituras diferentes, eles permitem leituras diferentes. A diferença inicial (pode não ser a única), de base, entre um autor clássico e um autor, digamos, menor, não-canônico, que não entra na história literária, é que os autores que foram considerados clássicos sempre foram aqueles que puderam ser lidos de maneira diferente por cada uma das novas gerações.
• Autores de grande relevância do passado parecem não ter sido totalmente abordados. Então, não é melhor que se os estude, que se esgotem determinados assuntos, a se perder no meio desse mar de novidades, que necessariamente não está consolidado? Quer dizer, como se consegue trazer esses autores, como o senhor tem feito com Padre Antônio Vieira, com Gregório de Matos, para os estudos contemporâneos?
O caso de Vieira é um caso típico. Ele foi durante muito tempo lido como um escritor que dominava a língua portuguesa. Foi muito no âmbito da filologia e da literatura portuguesa clássica que Vieira apareceu. Quando o estudei no colegial e depois, nos primeiros anos na faculdade, via Vieira como o imperador da língua portuguesa, na frase de Fernando Pessoa, aquele que dominava inteiramente a linguagem. Rui Barbosa, por exemplo, que pode ser considerado um ícone dessa tendência purista, dessa tendência de exaltação da língua portuguesa, da riqueza da língua portuguesa, era um leitor de Vieira, e quando tinha alguma dúvida de colocação de pronomes — naquele tempo as pessoas se angustiavam com isso —, ele recorria a Vieira: se Vieira colocou assim, então está certo. Veja, as questões se colocavam em termos de valor, de norma, aquilo que era apreciado. Por exemplo, as gramáticas numerosas, normativas, todas elas começaram a ser escritas no final do século 19. Há todo um trabalho e estudo sobre isso, e o Evanildo Bechara sempre fala disso na Academia [Brasileira de Letras], de gramaticalização da língua portuguesa. Até Alencar, as coisas eram meio fluidas, tanto que ele entrava em polêmica com os portugueses, que achavam que ele colocava mal os pronomes, etc. Mas depois, a partir dos anos 1980, é muito curioso, porque é uma guinada convencional, embora seja a época da revolução (vejam como estamos no âmbito da Ideologia e Contraideologia), época do abolicionismo, época, sobretudo, do republicanismo, esse período é um período de forte gramaticalização. É preciso escrever como? Como os portugueses. Não é curioso isso? Nesse período avançado da República a meta era escrever como alguns clássicos portugueses. Então, o que se fazia? Citavam-se só esses autores. Se pegarmos, por exemplo, a gramática do Eduardo Carlos Pereira, é interessante estudar o seu corpus. Foi a primeira gramática expositiva que norteou dezenas e dezenas de edições, que norteou aquilo que hoje se estuda: a colocação de pronomes, o uso do finito e infinito, coisas que nós estudamos e que viraram dogmas dos cursinhos, dos vestibulares, e que começam nesse período. É um período em que, então, para se dizer que um texto é bem escrito, é preciso recorrer a quem? Vieira, Padre Manuel Bernardes, Frei Luís de Sousa. Três ou quatro nomes. Às vezes Camões; mesmo assim ele era desconsiderado porque às vezes usava certas figuras ou mesmo colocações que ainda estavam dentro do renascimento. Mas depois do renascimento, ou seja, no período que passou a ser chamado de barroco, no início do século 17, passou a ser ideal para a prosa. Ora, um Vieira que só fosse modelo de prosa tem seus anos muito contados. Porque, com o modernismo, com a grande liberdade pós-moderna, tudo isso já perdeu muito prestígio, embora se possa admirar e entender Vieira, admirar aquela fluência extraordinária, suas metáforas e sua concisão vocabular. Isso é sempre admirável, mas não que possa servir de norma, como antes era. Você tinha que escrever como Vieira. Imagina escrever como Vieira? Aí fica como Rui Barbosa. É lógico que eu prefiro Vieira, com o perdão à Fundação Casa de Rui Barbosa, mas enfim… Houve um purismo, Rui Barbosa discutiu com seu mestre Ernesto Carneiro Ribeiro, ficaram anos discutindo qual a verdadeira colocação. E é curioso que nessas discussões, como na gramática do Eduardo Carlos Pereira, só havia autores clássicos citados, com a exceção de um: Machado de Assis. Machado de Assis era citado à altura — e tinha morrido há pouco tempo, era contemporâneo dessa gramaticalização — desses escritores. Então, esse lado conservador da prosa machadiana é curioso, interessante de saber. Como dizia Raul Pompéia, num tom muito ferino, que ele era um escritor correto. Diminuído não, mas correto. O Lima Barreto, esse sim, tinha uma antipatia fundamental por Machado de Assis, e dizia que Machado escrevia com medo da Academia e dos filólogos do seu tempo. São as chamadas injustiças justas, quando a pessoa diz mais do que deve e menos do que pode. Quando a pessoa diz tudo que quer, diz mais do que deve e menos do que pode. Ela pode dizer exatamente o que quer, mas a paixão impede que ela seja concisa e precisa. Por isso essas injustiças cometidas contra o Machado de Assis, que hoje é um ícone idolatrado. Então, não é possível dizer nada. Mas acho que devemos pensar muito.
Vieira, naquela época, era um escritor estudado, mas depois vieram outros momentos, por exemplo, depois da [Segunda] Guerra e depois dos estudos sobre semitismo e anti-semitismo, em que começaram a ver Vieira como um homem que foi preso pela Inquisição e que sempre defendeu os cristãos-novos. “Porque ele tinha motivos muito materiais, queria que os cristãos-novos ficassem em Portugal porque tinham dinheiro, e porque com esse dinheiro ele iria alimentar a Companhia das Índias.” É e não é, porque os escritos dele são contra as arbitrariedades da Inquisição, contra o estilo deles. A primeira coisa que eles faziam era apropriar-se dos bens do réu, do futuro réu, sem que ele pudesse ter se defendido ainda. É interessante. Quer dizer, não é só o clássico da língua, ele era também um homem que se levantava contra o seu tempo e pagou tributo, ficou preso dois anos em Coimbra, por esse interesse que tinha, essa empatia. Depois, um livro dele não foi publicado na época, Clavis Profetarum, que só agora integra a edição completa. Eram textos escritos em latim. Na medida em que se consegue ler textos em latim, ele coloca e praticamente compara os portugueses aos hebreus, o tempo todo: o êxodo, o sofrimento deles na mão dos espanhóis. Mas viria o messias, Dom Sebastião, e depois Dom João IV. Quer dizer, certos movimentos internos de Vieira que são movimentos pró-semitas, não sendo ele descendente de judeus (questão que foi feita na Inquisição para verificar se ele tinha sangue de judeu, e não encontraram nada). Então, esse é um Vieira que interessa muito à história, depois vieram os antropólogos. Os antropólogos que geralmente têm uma birra das missões católicas e vêm mostrar que realmente os missionários não poderiam ter feito nada porque as culturas não se respeitavam, etc. Imagine o seguinte: se antes eles iam pensar que as culturas não se respeitavam, seria um anacronismo total querer que os missionários não fizessem o que fizeram. Bem, mas os antropólogos começam a ver o Vieira antropológico, o Vieira que estuda as línguas da época, o Vieira que defendia os índios, sob certos aspectos, e que, porém, não defendia os negros. Aí começa a sociologia a mostrar como Vieira tomava como fatalidade a escravidão dos negros, mas não a dos índios. (…)
Vieira, por exemplo, foi quem descobriu a natureza amazônica. Ele vai e fica apaixonado pelas tartarugas, que descreve, e fica revoltado porque os caboclos viravam ao contrário a tartaruga para ela não fugir. Essas praias de viração que tem lá, às margens do Tocantins, que ele descreve — eu descobri isso. Lendo as cartas dele, que são numerosíssimas, encontrei uma descrição belíssima, com aquela força do trabalho concreto e robusto que ele tem. Ele descreve essas praias dos rios do Amazonas, que ainda não conhecia. Então, vejam: disso foi feita a aparência de um Vieira ecológico. É possível que alguém do desenvolvimento sustentável faça uma atualização. Geralmente são forçadas, porque talvez pareçam anacrônicas, mas feitas com tato elas revelam os vários Vieiras, o Vieira também um pouco adulador, isso desgosta (na época era tão comum), adulador dos reis. Dos sete anos que ficou em Roma, lutou tremendamente para que fosse apagado o processo dele da Inquisição. E conseguiu. Voltou com o salvo-conduto para Portugal muito feliz, a Inquisição não podia mais apanhá-lo porque o Papa tinha escrito um “prévio” (como eles chamam), um texto isentando-o da Inquisição portuguesa. Vejam só o que ele conseguiu com a lábia dele, um homem muito diplomático. A história diplomática tem muito Vieira, a história econômica de Portugal, são muitos aspectos.
E também, Vieira é barroco ou não? É uma pergunta que a gente pode fazer. Carpeaux diz que não, que é antibarroco, que é pseudomorfose, parece barroco, mas não é. É uma coisa polêmica porque o barroco sempre pode ser estudado sob vários aspectos contraditórios, o próprio narroco é contraditório, mas no capítulo “O anti-barroco”, do Carpeaux, ele mostra que a forma pode ser barroca. O barroco é, portanto, ligado à tradição, à função aristotélica, à nobreza, àquele universo todo em defensiva, mas a substância era burguesa, já moderna. Porque, ele [Vieira] queria que todos pagassem impostos, inclusive o terceiro Estado, e não tivessem os privilégios da nobreza e do clero; ele diz coisas muito fortes contra a desigualdade das contribuições. Finalmente, ele diz que o que vale no homem é o que ele faz, e não os seus ascendentes, sua linhagem. Parece uma idéia que só na Revolução Francesa vai ter seu momento tremendo, sua explosão. A idéia de que somos iguais, filhos do mesmo Adão, e pela teologia não deve haver nobres, não deve haver hierarquias. Então ele diz, num dos sermões, somos o que fazemos, não somos o nosso nome, mas a nossa ação. Ele dá o exemplo de São João Batista, hoje muito oportuno de fazer, pois ele diz: “Sou a voz que clama no deserto”. Ele não diz “sou o João Batista, filho de tal e tal”, não faz a genealogia que era tão comum naquele mundo judaico. Ele diz: Vox clamans, a voz que clama, sou clamante. Então, quem faz é o que faz, não seus antecedentes. Uma idéia que eu diria moderna, até certo ponto. Você considerar que é pelo verbo e não pelo substantivo que se define, numa civilização toda ela da metafísica de Aristóteles, do mundo de Aristóteles, que é o mundo barroco. Então, Carpeaux chama isso de pseudomorfose. É como uma pessoa que tem forma muito conservadora, mas idéias revolucionárias, ou então uma pessoa que tem palavras muito revolucionárias na boca, mas ela tem toda uma ação conservadora. Isso é muito comum na nossa época, como é que uma pessoa tem uma forma que não convém ao seu conteúdo? E isso é a pseudomorfose.
Então, eu estou estimulando vocês a estudar os clássicos sem que deixe de lado os contemporâneos. Os contemporâneos já falam direto a nós. Eles já têm os nossos universos de violência, ou de preconceito. Tudo que está por aí nos jornais aparece muito na prosa contemporânea. A prosa contemporânea está, vamos dizer, entretecida de ideologias e contraideologias contemporâneas. É lógico que ficar longe de um escritor que já morreu há séculos para descobrir a pseudomorfose, acho que é até certo ponto mais fascinante, porque os clássicos têm a tendência de ficar fixados, são medalhões, estão bem desenhados pela fortuna crítica, e tem que dizer sempre aquelas coisas. Então, uma forma de superar isso é verificar como um escritor foi lido em vários momentos. Como? Aí se estuda o que os italianos chamam com essa bela expressão: fortuna crítica. Mas essa palavra chama-se também recepção. Aqui se diz fortuna crítica, que, no italiano, é a sorte do escritor. Ou às vezes o azar, o azar crítico. Às vezes ele fica naquela escuridão. Parece que por um século ninguém fala dele, até que alguém vai lá e começa a ressuscitá-lo. Isso é bonito também, você descobrir autores que a memória foi esquecendo.
• Hoje assistimos a uma espécie de revitalização de Machado de Assis. Ele passa a ser lido fora do Brasil, sob os mais diversos pontos de vista. Como o senhor avalia essa voga: Machado de Assis internacional?
Eu acho que aí nós realmente podemos dizer que Machado de Assis ficou na sombra por um motivo histórico sabido: ele escreveu em português, no Brasil. Então, isso pode estar acontecendo em outras culturas, chamadas na época de periféricas. Hoje, acho que o termo está um pouco relativizado, porque o mundo está polarizado de várias maneiras, sendo impossível dizer “aqui está o centro, aqui está a periferia”. Mas durante muito tempo essa metáfora foi válida. E os países que estavam, vamos dizer, numa condição de industrialização mais lenta e ainda não tinham uma língua de projeção, como o francês e o inglês, ficaram na sombra. O caso de Machado de Assis foi uma injustiça histórica que terá sido cometida também com outros autores. Mas, nesse sentido, a chamada globalização foi-nos favorável porque houve um momento em que a cultura brasileira e, sobretudo, o estudo da língua portuguesa, passou a ser um fato na Europa e também nos Estados Unidos. Hoje podemos dizer que há um conhecimento razoável da literatura brasileira em alguns centros europeus: Berlim, Roma, Paris, Milão, Salamanca, Santiago, Madri e, nos Estados Unidos, nas melhores universidades. Acho que Machado de Assis se beneficiou dessa possibilidade de ser estudado e lido em grupos universitários, além, naturalmente, dos estudos sociológicos que se fizeram. Não só de Machado, os escritores contemporâneos estão aparecendo na pauta. Clarice Lispector tem sido muito traduzida, por exemplo, e Guimarães Rosa também é considerado um dos maiores escritores do século 20, como Machado e outros grandes nomes. Pena que alguém como Graciliano Ramos, que é um escritor tão poderoso, ainda não encontrou, a não ser muito limitadamente, a reputação que merece, mas há de chegar ainda seu momento como grandíssimo escritor. Euclides da Cunha é muito estudado pelos sociólogos, antropólogos americanos.
Então, Machado está sociologicamente começando a ser redimido da situação, mas isso do ponto de vista sócio-histórico, porque do ponto de vista da mensagem, isto é, do ponto de vista do texto do Machado, realmente ele começa a se impor como alguma coisa excepcional. Aqueles que têm mais sensibilidade nos aspectos individuais da literatura perceberam que estão diante de um autor extremamente complexo, da altura de um Henry James, a quem alguns aproximam muito, e alguns contistas americanos e ingleses. Aproximam às vezes do Proust, mas aí eu já acho uma coisa meio forçada. Mas vê-se que a complexidade existencial de Machado é digna da época em que apareceu Freud, por exemplo, embora este absolutamente não o conhecesse, mas ele estava sintonizado com uma época que estava cavando um conceito de inconsciente. Então, pode-se fazer uma leitura interna de Machado com parâmetros muito modernos. A psicanálise e suas várias correntes, a literatura como despistamento, tudo isso que hoje é estudado com tanta finura pelos críticos da modernidade foi descoberto em Machado. Machado era um escritor só aparentemente linear, mas ele tinha, vamos dizer, um subterrâneo. Uma luta das paixões de um lado, do outro lado, do ponto de vista marxista, ou, digamos, sociológico lato sensu, os interesses materiais são muito fortes na obra de Machado, os personagens estão profundamente ligados aos seus interesses materiais. Daí deriva, vamos dizer, o sentimento de posse, deriva um aliciamento que os personagens fracos fazem dos fortes. Eles aliciam para poder subir. E daí também, psicologicamente, tem a traição, a ingratidão. Essa dinâmica, que é uma dinâmica que os moralistas estudaram, os grandes moralistas franceses, La Rochefoucauld, Pascal, prenunciada no século 17, hoje é estudada minuciosamente. Depois veio também a volta da literatura dos gêneros, da mulher, das raças, e que a antropologia dos estudos culturais americanos também colocou em primeiro plano. Então, de repente, num espectro de 30 a 40 anos, Machado se revela um autor extraordinariamente moderno. Acho que aí ele se beneficiou também dessa abertura da globalização.
• Especificamente sobre a leitura de um professor de Portugal, Abel Barros Baptista, existe alguma produtividade no tipo de leitura que é proposta por ele?
Eu já teria dificuldade de responder a sua pergunta e aí não sei se vou dizer mais do que devo e menos do que posso. Eu não entendo muito as coisas do Abel, mas se eu disser isso vai ser lido de uma maneira irônica, de uma maneira ferina, e eu não gostaria que saísse dessa maneira, mas não sei como dizer isso fluentemente agora.
Eu tenho dificuldade, porque ele tem uma polêmica muito viva contra a leitura sociológica. É uma polêmica na qual eu me incluí em parte. Em Brás Cubas em três versões, precisei dizer que a leitura sociológica já estava de alguma maneira extrapolando, mas que também as outras leituras podiam extrapolar. Mas, como essa era hegemônica, principalmente na Universidade de São Paulo, era preciso que alguém dissesse: não, Machado é mais do que um cronista do Rio de Janeiro do século 19, ou do Brasil; ele é mais, por trás disso tem uma visão subterrânea, como diz Augusto Meyer, que vai decompondo, vai tirando sentido disso e de tudo aquilo que ele toca. As crônicas que ele faz, e que têm referência à Europa, à Inglaterra, à França, também estão penetradas dessa visão. Nesse livro procurei dizer o que penso. O último capítulo é justamente sobre o teatro político na crônica de Machado de Assis. Realmente, a política aparece a ele, que foi observador do Senado quando jovem e um jornalista reputado do Diário do Rio. Ele via realmente aquilo que era uma farsa, um teatro, mas esse teatro é um teatro que ele acha que é uma coisa ligada ao final mesmo da política, que o poder instaura um teatro de representações em toda parte, no mundo inteiro, como o poder se teatraliza. De modo que eu queria que sua pergunta não se estendesse especificamente ao Abel, porque ele, nessa polêmica anti-sociológica, acho que extrapola, no sentido de não reconhecer as várias dimensões do Machado: a dimensão social; a dimensão existencial; que Augusto Meyer mostrou admiravelmente bem; a social, que vem do Schwarz e de seus discípulos; e a dimensão propriamente intertextual, que foi descoberta em grande parte pelo [Sérgio Paul0] Rouanet. Gosto muito do livro do Rouanet, sobretudo a ligação com Sterne. Ele faz uma leitura completa do quanto realmente Machado deve a Tristram Shandy, numa análise miúda.
Então, essas dimensões, separadamente, não conseguem explicar Machado. Só uma delas transforma-se num verdadeiro fanatismo crítico. Agora, como conseguimos inter-relacionar as três — o Machado público, o Machado íntimo, o Machado formal —, no meu ponto de vista, é mais interessante, mais enriquecedor. Então, deixemos em santa paz o Abel, porque minha confissão vai ser tomada de uma maneira irônica.
• O senhor dedicou sua vida à literatura tanto como pesquisador quanto como professor, se é que podemos dividir uma coisa da outra. O que o senhor pensa do ensino de literatura enquanto possibilidade de inquietação, de levar a paixão pelo objeto?
Minha experiência é cinqüentenária, comecei dando aulas no colegial, ali pelos anos 1960, e eu tive uma surpresa, porque todos diziam que os alunos iam resistir muito. Tinha-se que dar literatura mesmo, desde o primeiro colegial, com alunos de 15 e 16 anos, para o científico. Eu dava aula no colégio Mackenzie, depois no Santa Cruz. Dei aula em vários lugares, e mesmo no Estado, uma experiência que eu achei muito viva, no termo integral. A partir da minha tese de doutorado sobre Pirandello, em 1964, tive que deixar, mas eu deixei com uma certa tristeza, porque gostava muito de lidar com adolescentes, desmentindo tudo aquilo que diziam: “Eles não vão se interessar, absolutamente. Você vai dar história literária, que está no programa, e pode começar com Camões ou com os poetas medievais, e eles vão bocejar o tempo todo e vão fazer a coisa para ter nota”.
Apesar dessa carga pessimista, que me assustou um pouquinho, eu tive uma experiência muito diferente, porque a maneira como eu abordava a literatura conseguiu despertá-los. Porque eu lia mesmo os textos, e isso eu aconselho muito aos jovens, aos meus assistentes, às pessoas que eu formei e ficaram professores depois. Vocês não devem ter pudor da poesia, vocês têm que ler a poesia em voz volta. “Ah, professor, eu tenho vergonha, ficar mostrando meus sentimentos.” A poesia envolve evidentemente toda a vida subjetiva. Nós precisamos nos controlar, mas ler, porque é no momento da leitura que tudo se esclarece. Vocês já estão interpretando, como alguém que vai tocar alguma coisa no piano, num instrumento. Interpretar é tocar bem, já se sabe o valor daquilo. Então, vocês têm que ler em voz alta e mostrar também que estão profundamente interessados naquilo.
Eu tive experiências tão emocionantes. Quando eu dava, por exemplo, Camões, que estava no programa de Literatura Portuguesa, e parava, por exemplo, no Velho do Restelo ou, sobretudo, na história do Adamastor, que é épico, tem um certo vigor, os alunos se entusiasmavam. Alguns até subiam na carteira. E ficavam declamando Camões! Parecia que ia ser incompreensível, coisas que tinham sido escritas tantos séculos atrás. Não! Líamos, aqui e lá fazendo uma observação de vocabulário, mas o contexto todo era um contexto que tinha uma unidade de significados, de sentimento, que eles se apaixonaram. Então, depois que entrei na universidade, onde o clima era outro, um pouco mais sóbrio, um pouco mais moderado, mesmo assim eu vi que era ler, era ler os poemas. Eu percebi que a leitura, uma leitura expressiva, uma leitura empenhada — como se faz numa oração, em que se dá o coração todo naquilo —, é melhor não fazer se você não tem fé. Você tem que ler aquilo com a alma e com certo entusiasmo. Professor de literatura tem que ter certa vitalidade, entusiasmo, não pode ser muito anêmico, tem que ter algum vigor na sua leitura para que ele contamine, no melhor sentido, para que ele chame à vida. Porque tudo transborda para a vida, por isso a literatura acaba sendo, vamos dizer, uma organização da vida, uma formulação dos nossos sentimentos, de nossas experiências, seja ambígua, seja moderna. Então, a literatura na universidade tem uma grande função humanizadora, ela humaniza. Os trabalhos que a gente consegue são muito bonitos quando a gente percebe que há esse empenho da parte dos alunos. E esse espaço é público também, você fez uma pergunta que transborda os limites da universidade; eu acho que todos esses autores que vocês estão estudando, cada um deles organiza sua própria experiência de um certo modo. O leitor que entrar em empatia com esses organizadores da experiência, esses estimuladores, certamente terá uma postura diante da vida mais engajada, mais nobre, mesmo quando pessimista. Mais compassiva. Vocês podem ter uma visão muito negra. A literatura contemporânea tem momentos muito negros, o sujeito fica, assim, aterrado na violência, com desrespeito pelo ser humano. A gente sente que, em geral, atrás daquele pessimismo, daquele ceticismo, há uma revolta, um desejo de que as coisas não sejam como são. Então, você acaba tendo uma posição crítica.
• A crítica literária é ideológica ou contraideológica? Se ela for ideológica, como aponta a contraideologia do texto? E se ela é contraideológica, em que medida se aproxima e se afasta da literatura?
O problema da escrita ideológica e contraideológica é que o crítico precisa estar sempre atento ao que escreve. Ele não vai fazer nada gratuitamente. Acho que quando o crítico descobre, ou acha que descobriu, num romancista, ou numa personagem, um ícone ideológico — típico caso de Machado de Assis, que tem famosos personagens, como o Pádua, ou o Cotrim, que são verdadeiras alegorias ideológicas, a própria essência daquela burguesia cruel —, tem que ter o trabalho de desdobrar isso, de mostrar como isso tem fios que levam à história contemporânea, porque ali houve um esforço do Machado de Assis, no caso, de representar, um esforço de representação, mas não só. Há personagens que à primeira vista podem ser só catalogados dentro do livro, como Brás Cubas, que em várias de suas ações, quando conta suas ações de juventude, seus atos em relação à Eugênia, por exemplo, mostra que foi um pulha, um covarde, uma expressão da ideologia da época. Aí está, no final do meu livro, o nó ideológico de Machado de Assis. Mostro que há em Machado uma denúncia rigorosa desse universo, só que não é só isso, porque se fosse só isso ele estaria como os naturalistas da época, que estão fazendo denúncias sem parar. Eça fazia, Aluísio de Azevedo fazia, Raul Pompéia, a seu modo, como também Lima Barreto. São grandes escritores contraideológicos, mas Machado de Assis, como tem essa dobra de reflexão, faz com que, no caso do defunto-autor, ele fale do que fez e depois, como defunto-autor, reflita sobre o que ele era, quer dizer, a “luz da consciência” está lá dentro. Então, essa “luz da consciência”, usando um termo mais de psicologia ética, a ciência como uma luz, ela pode ser contraideológica, embora ele não precise fazer uma afirmação. (…) “Então, Machado de Assis fez sátira da sociedade.” Sim! Mas acontece que as personagens dele, algumas delas, que são as que valem mais, como Bentinho, por exemplo, que depois vira Dom Casmurro — essa transformação dele o que é? É o momento de autoreflexão a que se chega a uma certa idade. Foi verdadeira ou não a história que ele conta? Ela é articulada em termos de reflexão, que não pode ser colocada simplesmente como tipo social, porque o tipo social não reflete. A literatura de caricatura tem muito isso, a sátira vive muito disso: aquilo que as pessoas fazem e farão sempre igual, porque estão já com caracteres bem formados. Alguns datam de Rousseau (não vou fazer agora estudo da história da arte), numa literatura autobiográfica, das confissões dele; outros remontam a Montaigne; outros chegam mais perto de nós, da grande literatura introspectiva de Proust, de James Joyce, de Pirandello, de Kafka, enfim, um espectro enorme de literatura de auto-análise. Esse momento de auto-análise quer me parecer que pode ser contraideológico, pelo menos ele dissolve a opacidade do tipo, que só é aquilo, aquilo, aquilo. Por isso nunca aceitei que Bentinho fosse um homem da alta classe que desprezava, portanto, necessariamente, uma moça vinda de outra classe. Isso é um empobrecimento terrível, coloca cada um na sua classe, então só se pode agir daquela maneira. Não! O romance é todo um desejo de confissão, de autoconfissão, de auto-análise, de perplexidade, de tristeza. E isso Augusto Meyer viu bem. Nós demos sorte de ter tido um crítico como ele, que não era universitário. Eu aconselho que vocês leiam com muita atenção a obra dele sobre Machado. O Álvaro Martins também escreve de maneira muito bela e nada acadêmica, mas ele foi muito sensível; como era um grande leitor de Dostoiévski, um grande leitor de Pirandello — e aí se vê a importância da literatura comparada —, ele sai e consegue ver em Machado um “eu” subterrâneo que a crítica sociológica não conseguiu.
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