Análise de diversidade gera dados que podem subsidiar ações de preservação
Manuel Alves Filho
Um dos ecossistemas mais negligenciados tanto no Brasil quanto no restante do mundo, o manguezal está sendo objeto de uma pesquisa inédita e abrangente no país, conduzida por pesquisadores do Departamento de Biologia Vegetal do Instituto de Biologia (IB) e do Laboratório de Análise Genética e Molecular do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG), ambos da Unicamp. Os cientistas estão investigando a diversidade genética das plantas que compõem esse ambiente, a partir de amostras coletadas desde o Norte até o Sul da costa brasileira. O objetivo é criar um banco de dados que possa subsidiar a tomada de decisões voltadas à preservação das espécies.
“Queremos conhecer para poder preservar”, afirma a professora Anete Pereira de Souza, coordenadora do estudo. Segundo ela, assim que estiver concluído, o trabalho deverá integrar outras duas pesquisas, uma em nível continental e outra em âmbito mundial.
Os manguezais são ecossistemas que funcionam como uma interface entre o mar e os rios que nele deságuam. São ambientes muito ricos em nutrientes, características que os tornam fundamentais ao desenvolvimento de grande número de espécies animais, algumas delas de interesse comercial, como robalos, mariscos e camarões. “Além de fornecer alimentos para peixes, moluscos e crustáceos, o manguezal também funciona como berçário para diversas espécies, que utilizam o local para depositar seus ovos. Ou seja, à medida que esse ambiente é degradado, toda essa fauna também é afetada de modo negativo”, explica Gustavo Maruyama Mori, doutorando que integra a equipe coordenada pela professora Anete.
Foi o estudo proposto por ele que deu início à linha de pesquisa. A proposta foi também abraçada pela professora Iracilda Sampaio, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pela pesquisadora Maria Imaculada Zuchi, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), que integram o projeto desde a sua implantação. Posteriormente, a também doutoranda Patrícia Mara Francisco incorporou-se à equipe. Graças à ampliação e à relevância alcançada pelo trabalho, relata a professora Anete, foi que ele passou a integrar o projeto Biota Marinho/Fapesp, o que lhe valeu novos investimentos, seja na concessão de bolsas de estudos, seja no financiamento de viagens para a realização de coletas de materiais ou participação em eventos científicos nacionais e internacionais. A preocupação em analisar a diversidade genética dos manguezais, diz Patrícia Francisco, vem da constatação de que esses ecossistemas vêm sendo destruídos ao longo dos últimos anos, em grande parte por causa da ação do homem.
Dados disponíveis indicam que o Brasil, considerado o segundo país em extensão de florestas de mangue, perdeu entre os anos de 1983 e 1997 praticamente metade (46,4%) da área original ocupada por esse ambiente. “Isso ocorre, entre outras coisas, por causa da pressão imobiliária. É comum vermos condomínios sendo construídos em áreas próximas ou originalmente ocupadas por manguezais. Uma das consequências dessa ação é alteração da chegada da água ao ecossistema. Isso, por sua vez, reduz a oferta de crustáceos e pescados, que são fonte de alimentação e renda de muitas famílias. Estas, por sua vez, são forçadas a migrar para a periferia das médias e grandes cidades, em busca de alternativas de sobrevivência. Ou seja, ao destruirmos o manguezal nós não estamos agredindo apenas a natureza, mas também gerando problemas sociais muito complexos”, adverte Gustavo Mori.
Para desenvolver a investigação em torno da diversidade genética dos manguezais brasileiros, os dois doutorandos coletaram amostras de 13 pontos ao longo do litoral, desde a Ilha de Marajó, no Pará, até o Estado de Santa Catarina. Estão sendo analisadas cinco das seis espécies de árvores de mangue encontradas no país. Os instrumentos de análise são os marcadores moleculares. Conforme Gustavo Mori, os resultados preliminares apontam para uma divisão muito clara a partir do Rio Grande do Norte. Assim, em direção ao Norte são encontradas, dentro das espécies de mangue, populações muito diferentes, em termos genéticos, das identificadas ao Sul. “Essa divisão pode ser influenciada por uma corrente marítima que vem da África, e se divide em corrente do Caribe e corrente do Brasil”, aventa Gustavo Mori. Esse tipo de informação genética sobre os manguezais brasileiros, que até então era desconhecida pela ciência, é de fundamental importância para orientar medidas de preservação desse ecossistema, como destaca a professora Anete.
De acordo com ela, não basta coletar indivíduos de uma floresta e transplantá-los para outra, com o intuito de recompor uma área degradada. Muitas vezes, acrescenta Gustavo Mori, plantas de manguezais próximos também são geneticamente muito distintas. “Nós verificamos isso nas análises que fizemos de amostras coletadas em Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo, e Cananéia, no Litoral Sul”, esclarece o doutorando. “Se translocarmos indivíduos muito diferentes de um manguezal para outro, não estaremos fazendo reflorestamento, mas sim criando algo novo. Além disso, ninguém sabe o que poderá acontecer ao longo do tempo com as plantas diferentes que foram transplantadas. Afinal, um conjunto de alelos específico e selecionado localmente ao longo de milhares de anos é indispensável para que uma dada população se mantenha num determinado local. Translocar sem levar esse dado em consideração pode levar à extinção da floresta, visto que os indivíduos introduzidos podem não ter a variabilidade genética necessária para se adaptar ao novo local, se desenvolver e se multiplicar ali”, complementa a professora Anete.
A grande contribuição do trabalho, no entender dos pesquisadores, deverá ser justamente na área de genética de conservação. “Nosso objetivo é fornecer subsídios para que os gestores públicos e organizações não governamentais adotem medidas corretas para a recomposição de manguezais degradados. Aliás, nós já temos mantido contato com pessoas do Rio de Janeiro e Ceará, que trabalham com o manejo de parques estaduais. No Rio, por exemplo, temos falado com o pessoal que atua na área da Baía de Guanabara, onde será construído um complexo petroquímico por causa da exploração do petróleo do pré-sal. Nas proximidades, há uma área remanescente de mangue, que precisará ser reflorestada. A partir dos nossos estudos, poderemos indicar para eles quais conjuntos de plantas que podem servir a essa recomposição”, relata Gustavo Mori.
Para o mundo
Assim que a pesquisa for encerrada, adianta a professora Anete, ela deverá dar margem a outra, esta de amplitude muito maior. “Queremos investigar a diversidade genética dos manguezais no Hemisfério Ocidental. Para isso, vamos utilizar as informações já disponíveis em bancos de dados, como as relativas às áreas do Caribe, do Pacífico e de alguns pontos da África. Com elas, poderemos complementar nossos dados e estabelecer parâmetros de comparação. Um dos objetivos é descobrir se e quanto a ação do homem tem influenciado na variabilidade genética das plantas do mangue”, adianta Gustavo Mori.
Além desse projeto, há outro, ainda em fase de negociação, que planeja elevar os estudos para o âmbito mundial. “Recentemente, participamos de dois congressos científicos internacionais, nos quais conhecemos grupos que trabalham com o mesmo tema na Indonésia e no Japão. Em julho próximo, vamos participar de um evento mundial no Sri Lanka, que tratará de assuntos como ecologia, funcionamento e manejo de manguezais. Na oportunidade, vamos conversar com outros pesquisadores interessados nesse ecossistema, que tem sido negligenciado em todo o planeta. Nosso propósito será estabelecer uma rede de cooperação internacional para analisar como está a diversidade genética dessas plantas em ampla escala”, diz Gustavo Mori.
De acordo com a professora Anete, as pesquisas em torno da diversidade genética dos manguezais deverão abrir perspectivas para o desenvolvimento de trabalhos semelhantes, mas voltados a outros ecossistemas igualmente ameaçados. “Um caso clássico é o Cerrado brasileiro, ambiente muito importante para inúmeras espécies vegetais e animais e também para o homem. Esse bioma vem perdendo espaço para as atividades de agricultura e pecuária. Também nesse caso, poderíamos contribuir para orientar eventuais ações de reflorestamento”, infere. Conforme a docente, estudos do tipo dão uma satisfação especial para os cientistas, pois eles podem ver os resultados de suas investigações aplicados em benefício da natureza e, consequentemente, da sociedade. “Como agrônoma de formação, gosto de ver as coisas acontecendo”, pontua.
Enviada por José Carlos.
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