Raquel Rolnik*
Acabo de voltar de Maputo, bela cidade à beira do Oceano Índico, onde participei de um seminário promovido pelo Ministério de Ação e Coordenação Ambiental de Moçambique e pela Diagonal, empresa brasileira com atuação no país. Durante dois dias, autoridades locais e nacionais, organizações não governamentais, agências de cooperação e acadêmicos moçambicanos estiveram reunidos para pensar os desafios do ordenamento territorial no país.
Com menos de 50 anos de independência do jugo colonial português e com apenas duas décadas de reconstrução pós-guerra civil, Moçambique enfrenta hoje o desafio de ordenar seu território diante de um espaço construído a partir da subsistência, da guerra, da vulnerabilidade a enchentes e – para tornar ainda mais complexa a situação – da mira de grandes projetos transnacionais (agrícolas, de mineração, infraestrutura, turismo etc) que aportam no continente africano neste momento, chegando também ao país.
A maior parte do território de Moçambique foi tecido por uma rede intrincada de clãs e tribos que com ele estabeleceu uma relação de subsistência estruturada e marcada por vínculos ancestrais. As poucas cidades, dentre estas, Maputo, a capital, foram construídas pelo e para o colonizador português e, entre o período da descolonização e a guerra civil, ficaram congeladas enquanto sua população duplicava. Em Moçambique – como na maior parte dos países do planeta –, o povo autoproduziu seu próprio habitat, com os recursos e a terra que estavam a sua disposição.
Durante os anos de socialismo, foi construído um sistema de alocação de terras no qual estruturas políticas hierarquizadas e mediadas pelo partido no poder – Frelimo – dialogaram com as estruturas tradicionais clânicas e tribais, possibilitando a disponibilização, no campo e na periferia das cidades, dasmachambas, lotes de terreno onde a população pode edificar suas casas e exercer uma agricultura de subsistência e pequena criação. As reformas liberais e a abertura de mercados, a chegada de megaprojetos e a disponibilidade um pouco maior de recursos para investimentos colocam para o país os desafios da transformação deste modelo.
As questões de ordenamento territorial – nada simples – que o país quer responder se situam no campo das tensões e conflitos que o atual momento levanta. Tanto estratégias de redução de riscos por conta das mudanças climáticas, como megaempreendimentos têm provocado remoções e reassentamentos, com resultados no mínimo discutíveis e, muitas vezes, contestados pelas populações atingidas e seus defensores.
Assentamentos autoproduzidos demandam infraestrutura e consolidação e a resposta do governo é ambígua: de um lado, sinaliza com regularização e melhorias; do outro, propõe remoção e reassentamento, gerando um cenário de incerteza e dúvida em relação à segurança da posse e à permanência da população em seu local de moradia. As lógicas tradicionais que têm regido a estruturação do território ora são valorizadas como patrimônio socioambiental e cultural, ora desqualificadas como signos de pobreza, barbárie e atraso.
Enquanto isso, o ordenamento territorial é, na prática, feito ad hoc por quem pode mais: ou porque tem poder político, ou porque tem recursos financeiros abundantes ou, na maior parte dos casos, ambos. Diante deste quadro complexo, ouvir no seminário uma espécie de uníssono – entre governo, acadêmicos, técnicos – de que não é mais possível seguir assim e de que é necessária uma política de ordenamento – ex-ante negociada e pactuada na esfera pública – é, no mínimo, um alento e uma esperança.
*Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.