Raquel Rolnik*
Na semana passada recebi um e-mail da Clara, estudante do mestrado em desenvolvimento urbano da UFPE, sobre as mobilizações que estão acontecendo no Recife em torno de um mega-projeto imobiliário na região do cais José Estelita, que vem sendo chamado de projeto Novo Recife. Ela conta que na próxima quinta-feira, dia 22, será realizada uma audiência pública sobre o assunto, às 9h, no plenarinho da Câmara dos Vereadores e que mobilizações contra o projeto vêm ganhando força em redes sociais como o Facebook e através de um abaixo-assinado na internet. Pra quem não conhece essa história, um terreno de mais de 100 mil m², pertencente à União, foi leiloado em 2008 e arrematado por um grupo de empresas que hoje pretende construir na área torres residenciais e comerciais de luxo.
Mas a história é bem mais antiga. Desde pelo menos 2003, as prefeituras do Recife e de Olinda já vinham conversando sobre o Complexo Turístico Cultural Recife e Olinda, que, entre outras intervenções, envolveria um projeto na frente marítima que articula/divide as duas cidades. O governo do Estado, por sua vez, a partir de uma das diretrizes de planejamento metropolitano formulada em 2002, contratou, via Porto Digital, a Expo-Lisboa (empresa pública portuguesa que desenvolveu e gere o projeto de expansão de Lisboa em antiga área porto-ferroviária) para pensar um projeto para a mesma área, uma região muito maior do que o cais José Estelita – toda a frente marítima entre Recife e Olinda, área que concentra muitos terrenos públicos subutilizados.
Como havia terrenos da União nas áreas que estavam sendo pensadas para o desenvolvimento do projeto, o governo federal foi chamado para disponibilizar suas áreas. Era 2005 e, nesta ocasião, eu era secretária de programas urbanos do Ministério das Cidades, e nós – ao invés de simplesmente ceder ou não as áreas – atuamos na articulação de outros órgãos do governo federal, como a Secretaria do Patrimônio da União e o Iphan, para todos juntos formularmos um projeto. Foi então criado um Grupo de Trabalho, envolvendo os dois municípios, o Estado de Pernambuco e a União, e aí começamos a discutir o que ficou conhecido como Projeto Urbanístico Recife/Olinda. Chegamos a assinar um convênio entre prefeitos, governador e ministros, e planejamos, inclusive, a criação de uma entidade gestora, que seria responsável pela implementação do projeto e a quem seriam repassados não apenas os terrenos da União, mas também os do governo do Estado de Pernambuco.
A base do projeto era a disponibilização de espaço público e de transporte público de qualidade, interligando as duas cidades, e estavam previstos, por exemplo, 1/3 de habitação popular nas novas áreas a serem construídas e recursos para a urbanização de todas as favelas contidas neste perímetro. Uma proposta inicial – não totalmente desenvolvida e ainda não sacramentada por todos os envolvidos – foi lançada para debate público. Em 2007, no entanto, após as eleições, o governo de Pernambuco mudou e a nova gestão simplesmente não deu continuidade ao projeto. Dois anos depois o mesmo se deu, desta vez no Recife.
Hoje, na minha avaliação, dois fatores terminaram por detonar a possibilidade de implementação do projeto: o governo do Estado, por um lado, resolveu se desfazer dos seus terrenos no perímetro do projeto, privatizando uma área onde hoje está sendo construído um mega shopping center, e o governo federal, por outro lado, decidiu leiloar o terreno da União no cais José Estelita, que foi arrematado pelas três empresas que hoje pretendem implementar na área o projeto Novo Recife, que nada tem a ver com o plano que estava em desenvolvimento e sua estratégia mais global e intersetorial de implementação. No fim das contas, prevaleceram as negociações bilaterais a portas fechadas, sem conversa nem entre os entes federativos, nem entre os diversos órgãos setoriais envolvidos que os compõem, nem muito menos com a população da cidade.
Como diz a Clara na mensagem que me enviou, “é chocante que uma intervenção ali destrua a história da paisagem e com fins privados tão restritivos como são essas construções de luxo. É chocante que um terreno que foi da União tenha este fim, considerando o déficit social profundo e em aprofundamento que existe na Região Metropolitana do Recife.” Com toda razão, portanto, as pessoas no Recife estão se mobilizando, contestando e discutindo, a fim de intervir nos rumos que está tomando essa que é uma área tão estratégica e tão especial da cidade.
*Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.
Grupos se mobilizam no Recife contra projeto imobiliário no cais José Estelita