Tania Pacheco
O Diário Oficial da União de ontem publicou os despachos 687, de 28 de dezembro de 2011, e 7, de 2 de fevereiro de 2012, da Fundação Nacional do Índio, identificando e delimitando respectivamente as Terras Indígenas (TIs) Tremembé de Queimadas, no município de Acaraú, e Tremembé de Barra do Mundaú, em Itapipoca.
Nestes tempos em que em os Povos Indígenas lutam com tanta dificuldade para terem seus direitos reconhecidos, sendo tratados como “indigentes usurpadores”, expulsos de um lado para outro, assassinados ou mesmo levados ao suicídio em alguns estados, vale publicar parte do despacho número 7, sobre os Tremembé de Barra do Mundaú. O documento não difere muito do que diz o 687, exceto pela linguagem e uso de fontes de referência. O trecho abaixo pode ser encontrado na página 22, Seção 1, sob o título “Dados Gerais”:
“As primeiras referências aos Tremembé datam do século XVI. Os jesuítas começaram a estabelecer aldeamentos em território cearense no século XVII, paralelamente ao processo de concessão de sesmarias na zona costeira. O projeto colonial português promovia uma política que categorizava os povos indígenas em dois pólos, os aliados e os inimigos, derivando disso as justificativas para o emprego da força física. Os povos indígenas que se tornavam aliados dos portugueses necessitavam ser convertidos à fé cristã, enquanto os “índios bravos” eram subjugados militar e politicamente.
Os aldeamentos concorriam para a eliminação da identidade tribal dos índios, amalgamando-se povos muito distintos entre si, como os Kariri, Potyguara e Tremembé em Caucaia; os Tabajara, Anacé, Arariú, Kamakú e Akoançú em Ibiapaba; os Kixelô, Javó, Kixariú, Akarisú, Kariú e Juká em Telha. Ao longo do século XVII, as “invasões holandesas”, que contaram com apoio de alguns povos indígenas, contribuíram para o acirramento das relações já conflituosas com os portugueses.
A distribuição de sesmarias intensificou-se a partir de1700. O processo de fixação do homem branco na terra era radicalmente diferente da relação que os índios estabeleciam com o seu território. À medida que os estabelecimentos dos colonizadores avançavam, os indígenas se viam impossibilitados de continuar a exercer a posse plena sobre as áreas antigamente ocupadas, buscando regiões de acesso mais difícil.
Para fazer frente à situação de violência, escravidão, usurpação e confinamento territorial, vários povos indígenas, liderados pelos Baiacu (ou Paiacu), organizaram-se contra o domínio colonial entre 1683 e 1713. Entre 1694 e 1702, nas capitanias de Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Piauí, houve a “Guerra dos Bárbaros”, movimento indígena de vulto, silenciado de forma dura pelos bandeirantes paulistas.
Subjugados, os povos indígenas criaram, em 1712, a Confederação Indígena, a fim de negociar a paz com o colonizador. Porém, no ano seguinte, diante da negativa dos portugueses em cumprir os acordos, os “Tapuia” atacaram Aquiraz, sede econômica da capitania, fato que motivou o envio de outras expedições militares para a região, as quais desbarataram a resistência indígena.
A concessão de grandes lotes de terras a alguns poucos particulares e à Igreja se manteve no Ceará mesmo depois de revogada a Carta das Sesmarias (1822). A concentração de terras perdura até hoje na região; ao longo do século XX, o “tempo dos coronéis”, os indígenas continuaram sofrendo forte pressão sobre a terra e os recursos naturais, cobiçados pelos não índios.
Com base na bibliografia disponível, constata-se que o território histórico Tremembé provavelmente alcançava, para além do rio Mundaú, as margens do rio Paraíba ou a foz do Itapicuru. De acordo com o Mapa Etno-Histórico elaborado pelo etnólogo Curt Nimuendaju, a área historicamente ocupada por esse povo estendia-se pela porção norte da costa atlântica, desde a Baía de Caeté e a Baíado Turiaçu (atualmente terras do estado do Maranhão) até os arredores do que hoje é o município de Fortaleza. O Arquivo Público do Ceará dispõe de registros das primeiras sesmarias concedidas na região de Itapipoca, entre os rios Mundaú e Cruxati.
Os Tremembé que ocupam a área da Barra do Mundaú são provenientes de Almofala e Itarema, de onde saíram devido às perseguições promovidas pelos “coronéis” e por representantes da Igreja, às secas e ao deslocamento das dunas. Contudo, até hoje Almofala é concebida pelos Tremembé como lugar de origem do povo, persistindo no tempo uma identidade supra-aldeã. Atualmente os Tremembé falam a língua portuguesa. Embora a filiação da língua Tremembé seja desconhecida, estudos indicam tratar-se de língua diversa daquelas pertencentes ao tronco Tupi. Vários pesquisadores propõem que os Tremembé são descendentes dos “Tapuia”/Cariri. Atualmente os Tremembé habitam áreas no litoral e no interior do Ceará, especialmente nos municípiosde Itarema, Acaraú e Itapipoca. Hoje a população total é de aproximadamente 3 mil pessoas. Em 2009 viviam na Terra Indígena Tremembé da Barra do Mundaú 494 indígenas”.
Para as pessoas que negam a manutenção da identidade dos Povos Indígenas, afirmando que são “falsos índios, que compram cocares em lojas de artesanato para reivindicar terras, na página 23, o documento fala sobre as Atividades Produtivas:
“Os Tremembé demonstram sofisticado conhecimento ecológico transmitido de geração a geração. As principais atividades produtivas desenvolvidas pelos Tremembé são agricultura, pesca e artesanato. A caça e a coleta, em virtude da degradação ambiental promovida por não-índios na região, são atividades secundárias. Essas atividades sofrem a influência direta do regime das águas; são realizadas em nove etnoambientes distintos, de acordo com critérios específicos de gênero e geração.
Os Tremembé obtêm a maioria dos alimentos de que necessitam para sua subsistência em lagoas e rios. A pesca é uma de suas principais atividades produtivas; além da alimentação cotidiana, os peixes são importantes para a realização das festas do Torém, quando se pesca em maior escala. Para conservar o pescado, eles utilizam jiraus para moquear. Os Tremembé pescam geralmente com anzol nos rios e lagoas, e com pequenas redes ou malhadeiras no mar.
A pressão exercida por não-índios prejudica a prática da pesca desenvolvida pelos Tremembé. A atividade pesqueira é efetuada durante o todo o ano, mas na época da seca (verão) esta atividade é intensificada; durante o período da cheia (inverno), quando o nível das águas se eleva, a pesca se realiza principalmente perto de fruteiras.
Os Tremembé conhecem profundamente bio-indicadores, etologia de algumas espécies e sua relação com a alternância das fases do ciclo hidrológico e com a biogeografia dos corpos d’água do seu território.
A agricultura é a principal fonte alimentar de origem vegetal e de carboidratos para os Tremembé, que cultivam mandioca, feijão,arroz, batata doce, banana, coco, melancia, caju, abóbora e goiaba, dentre outros. Com a mandioca fabricam a farinha de puba (farinha grossa) e o beiju e, com o caju, o mocororó, bebida ingerida nos dias de Torém. A atividade agrícola se inicia com o preparo da terra nos meses de janeiro e fevereiro; planta-se em março, abril, maio; a colheita ocorre em agosto; faz-se o segundo plantio do ano entre setembro e outubro; a segunda colheita ocorre em dezembro e janeiro.
Os Tremembé também plantam diversas espécies de valor medicinal: agrião, algodão, alho, amor crescido, boldo, capim santo, cebola do mato, cebolinha, couve, cravo, cumaru, flor balão, hortelã, inhame, laranja, limão, malvarisco, mamão, manu, marupá, pinhão branco e roxo, dentre outras, e coletam diversas espécies na floresta: jatobá, jurema, casca de caju azedo, entre outras. As roças atualmente são comunitárias/familiares e são plantadas nas áreas de chapada.
Apesar de a caça ser pouco praticada, sobretudo devido à degradação ambiental do entorno, os índios apontaram a existência de diversas espécies animais no interior dos limites da terra indígena, dentre as quais destacam-se o tatu peba e a galinha d’água. As caçadas são uma atividade tipicamente masculina, normalmente realizada por um único homem ou por grupos de 2 ou 3 índios. Embora a caça ocorra durante todo o ano, algumas espécies são caçadas preferencialmente em determinadas épocas, como o tatu peba, durante o inverno, época das cheias. Os lugares preferenciais de caça são as matas da chapada e os alagadiços da região de baixa.
O artesanato também é uma atividade relevante para os Tremembé. A produção artesanal inclui a confecção de colares de sementes e conchas (búzios), brincos, paneiros, caçuás e rendas de bilro, principal atividade artesanal feminina. A coleta de produtos vegetais é praticada sazonalmente ou conforme a necessidade. Os principais produtos coletados são: azeitona, jatobá, ingá, goiaba, murici, urucum e goiaba. Os Tremembé coletam ainda mel de jataí, tiúba, uruçú, europa, mumbuca”.
Nos próximos dias, os resumos dos relatórios da FUNAI devem ser publicados no Diário Oficial do Ceará. Em seguida, será iniciado o processo de equacionamento de possíveis ações judiciais interpostas por interessados nessas áreas, seguido das publicação das portarias declaratórias, decreto de homologação e registro das TIs.
Ontem terminamos a tarde comemorando o fato de um pedido de vistas ao processo ter interrompido temporariamente o processo de expulsão dos Kaiowá-Guarani da TI Laranjeira Nhanderú, em Mato Grosso do Sul. Esperamos que notícias como esta “iluminem” os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 3a. Região, sediado em São Paulo, e tirem da indigência à beira da estrada os índios de Mato Grosso do Sul, que há anos mantém o título de estado recordista em assassinatos indígenas, cego, surdo e mudo ante a violência dos fazendeiros.
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Cópias do DOU enviadas por Rodrigo de Medeiros Silva.