Miguel Nicolelis: ‘O pesquisador precisa apenas pesquisar, não ser professor ou administrador’ (3/3)

Na segunda parte da entrevista exclusiva de Miguel Nicolelis ao site da CartaCapital, o cientista brasileiro fala sobre seus objetivos como integrante da Comissão do Futuro, um braço do Ministério da Ciência e Tecnologia para tentar reformular a produção científica brasileira.

Nicolelis analisa a dificuldade que um pesquisador tem no Brasil e diz que o cientista precisa apenas fazer ciência se assim o quiser, e não dar aulas ou se preocupar com questões administrativas. Também defendeu que a bolsa de estudos vá diretamente para o estudante, e não para as instituições. “Assim o estudante vai levar com ele o recurso dele para onde ele quiser”.

CartaCapital: A educação no Brasil parece ser ainda um gargalo para o desenvolvimento científico…

Miguel Nicolelis: Nós ainda não democratizamos a pós-graduação. Os mais jovens, das camadas menos ricas da população, devem ter acesso a pós-graduação, e isso não ocorre porque esse problema vem do ensino médio. O ensino de ciência ainda é muito deficiente no Brasil. A ciência matemática ainda é vista como uma coisa que nenhuma criança quer aprender. A única verdade que exista no cosmos é a matemática. Temos temos uma deficiência muito grande nessa captura, em fazer as crianças se apaixonarem pela ciência ou por qualquer atividade intelectual profunda. E daí temos uma deficiência da graduação universitária que tenta ser corrigida com o mestrado, o que se arrasta a ponto de você ver gente fazendo o doutorado aos 50 anos. Isso não é bom para o país.

CC: Uma das críticas é que, no Brasil, há muitas teses de doutorado que se encerram em si, não tem aplicação social.

MN: Isso é um problema sério, mas não seria só no Brasil. Outro é seguir linhas de pesquisa, esse é outro problema. Exemplo: alguém descobre um novo barato lá nos EUA. A nossa tendência é copiar os caras. É muito raro seguir uma ideia inovadora aqui que os caras lá fora vão seguir. O Brasil tem um alto número de teses publicadas (acho que é o 12º do mundo) e já passamos, por exemplo, a Suíça. Só que os suíços têm uns 50 prêmios Nobel e institutos de pesquisa tradicionais com produções importantes. O passar em número de trabalhos significa muito pouco. Não é um avanço desmerecido, mas, como diz um amigo, tem que ver o “suco de miolo” que existe ali dentro.

CC: E comos e reformula essa estrutura problemática?

MN: Acho que nós temos exemplos de agências financiadoras que são modelos. A Fapesp talvez ainda seja a melhor do mundo em termos de custo direto e indireto, no sentido de que, de cada dólar investido nela, uma fração muito alta, de oitenta a noventa centavos desse dólar, vão para a ação direta de pesquisa e o restante vai para a taxa administrativa. Esse custo indireto administrativo é muito pequeno, mas ele precisa existir. Na universidade de Duke, de cada um dólar que eu consigo, 56 centavos vão para a Duke fazer a administração do projeto e investir em equipamento de base, prédios novos, luz, tudo o que é necessários para manter o meu laboratório funcionando. Ou seja, 56% é a taxa administrativa, que é alta. Não precisa ser isso. Mas você precisa ter no mínimo 20% de um projeto de pesquisa dedicado a infraestrutura administrativa, prestação de contas.

CC: Essa taxa administrativa desafogaria a produção científica?

MN: Essa taxa seria para pagar o cara que vai fazer a contabilidade, outro que vai fazer a prestação de conta, pagar luz, água, pagar coisas que você não paga com o dinheiro do projeto de pesquisa. E no projeto de pesquisa você tem de poder contemplar gente. E tem de ter maleabilidade para mover dinheiro de capital para custeio facilmente. Quando preciso comprar um equipamento que eu não imaginei que fosse precisar no início do projeto, preencho um papel, ligo para a Duke, alguém faz o rebudget e no dia seguinte euo compro. Aqui isso é impossível. Existe a rigidez em todos os níveis: no orçamento, nas normas, nos procedimentos. Isso emperra a nossa expansão intelectual científica, na minha opinião. Nós criamos um site para a Comissão do Futuro (confuturobr.org) e em um mês e meio nós tínhamos 3,5 mil pessoas da comunidade dialogando, entrando em grupos de pesquisa. Eu tenho lido isso religiosamente, vendo o que as pessoas estão escrevendo e eu estou tentando fazer um sumário para apresentar na próxima reunião com todos os membros. E dá para ver o engessamento de coisas triviais. Se você não for dinâmico, você não compete com o mundo. Essa é a grande vantagem dos EUA.

CC: Isso está mudando no Brasil?

MN: Sem dúvida. O fato de os EUA manter apesar da crise econômica, essa produtividade científica, é pelo fato de você colaborar lá ser muito fácil. Hoje está difícil conseguir dinheiro, mas quando você tem um projeto, a agência trabalha com você, e a universidade trabalha para te ajudar o máximo possível. O seu laboratório é a estrela do show, eles querem que o dinheiro deles resulte em coisas importantes. A universidade tem um departamento de projetos que faz a prestação de contas, que lida com qualquer outro tipo de necessidade de transferência de recursos, que aciona as bolsas que você precisa.

CC: E como funcionam as bolsas de estudo?

MN: Em relação a isso, os alunos interagem diretamente com a agência de financiamento. Não tem a intermediação do diretor do programa de pós-graduação. Esses não põem na mão de uma pessoa o poder de distribuir bolsas dentro do programa local, porque isso gera muitos problemas. Nós estamos ouvindo histórias do arco da velha pelo Brasil afora. O individuo que vai pedir uma bolsa para o governo brasileiro tinha, na minha opinião, que interagir diretamente com a Caps, com o CNPq. Ele vai provar se tem o mérito ou não e, se ele ganhar a bolsa, vai ser dele. Então se ele decidir ir para a USP ou para a Universidade Federal do Amapá, é ele que vai levar com ele o recurso dele. As universidades querem recrutar esses meninos e meninas não só porque eles são bons, mas porque alguns deles já têm financiamento. Você põe o poder na mão de quem realmente tem que ter o poder, o estudante. Aqui tem essa visão de tudo ser muito concentrado, difícil. Então a avaliação dos projetos não tem normas claras, os comitês de pares em alguns casos são restritos a pesquisadores 1A. Entendeu?

CC: E nos EUA funciona como?

MN: Lá, para receber a bolsa, você receber um parecer no momento em que o grupo se reúne e julga o seu projeto. Você recebe o seu score, ou seja, você pode saber em qual posição está com os outros, e receber comentários que justificam porque você ganhou ou não dinheiro. É transparente. A comunidade científica dialoga continuamente com essas agências de financiamento em reuniões específicas, para informa-las quais as novas áreas que precisam receber dinheiro. Então as coisas não vem de cima pra baixo, do tipo: “Ah, hoje nós vamos financiar isso, se vira aí, você tem 30 dias para fazer um projeto”. Quando a gente recebeu as chamadas dos institutos nacionais, que foi um dos maiores eventos de financiamento científico da história do Brasil, nós soubemos com 30 dias de antecedência que tínhamos entregar o projeto. Como você põem um projeto desse tamanho em pé em 30 dias? Isso dá para implementar no Brasil.

CC: Como está a sua relação com o ministro Mercadante?

MN: Tem sido ótima. Nós tivemos liberdade total para convidar especialistas tanto brasileiros quanto os estrangeiros para aprimoramento. Criamos uma plataforma via internet para entrar em contato com as pessoas, e com ela tomamos um baque assim de cara porque nem tudo o que eu tinha na cabeça, é o que a gente viu quando a comunidade começou a falar, contando suas histórias e pesadelos.

CC: Qual o seu objetivo para a Comissão do Futuro?

MN: Espero que a gente consiga um relatório que abra as portas e os ouvidos dos gestores de ciência do Brasil para a vida cotidiana do cara que está lá do outro lado da ponta. Essa iniciativa de se criar uma legislação própria para a prática de ciência no Brasil é uma coisa excelente. Ela surgiu recentemente, eu acho que tem um projeto para o Congresso agora. Espero que ela crie normas e procedimentos específicos para a prática de ciência, o que existe no mundo todo. Por exemplo, as universidade federais não foram criadas para ser universidades de pesquisa, como são as universidades líderes no mundo. Elas foram na realidade criadas como universidades para a formação de recursos humanos, de profissionais liberais. Então você não tem uma estrutura de universidade de pesquisa, não tem departamentos administrativos, aporte e suporte para que um pesquisador seja só isso, um pesquisador. Hoje este tem que ser professor, com uma carga horária enorme, porque esse é o emprego principal, ai ele tem que fazer pesquisa quando der e ser administrador, porque ele tem que também gerar algum tipo de recurso. E agora ele tem que ser um inovador, ele tem de ter um startup. Só que ninguém é treinado para isso. Imagine esse cara tendo que se virar para fazer tudo ao mesmo tempo e ainda ter tempo para escrever projetos para o CNPq. Lá, na minha universidade, por exemplo, existe um departamento administrativo que faz a prestação de contas, que me ajuda a escrever a proposta pelo orçamento, em termos que a agência pede. E eu só pesquiso, eu só gasto o dinheiro. E os meus alunos também.

CC: E quanto a relação entre a iniciativa privada nos EUA e aqui no Brasil?

MN: Nos EUA, este investimento é metade-metade, excluindo o que gasta o Departamento de Defesa, que é altíssimo. No Brasil é  quase nada.

CC: Nos EUA existe uma cultura do investimento privado na ciência, portanto.

MN: Sim, o montante vindo de doações privadas é muito pequeno. Mas é a indústria investindo em inovação e ciência que ela vai tocar pra ela.

CC: Por que isso não ocorre no Brasil?

MN: Não há uma cultura. A gente inova muito pouco, com a exceção da Petrobrás e algumas poucas outras.

MN: Será que as empresas daqui não buscam isso lá fora?

CC: Eu não saberia dizer. Mas todos os grandes países em termos de inovação e pesquisa agem assim. Existe também uma defasagem muito grande de empregos científicos na iniciativa privada. Hoje o Brasil forma 30 e pouco mil engenheiros, bem menor que a demanda. E talvez um terço tenha condições de entrar no mercado de trabalho, e muitos dos que se formam vão para o mercado financeiro. No Brasil não existe empregos de pequenas e médias empresas de tecnologia, de engenharia, de microeletrônica, de nanotecnologia para empregar engenheiros para serem engenheiros. Existe um ciclo vicioso ai que fez o Brasil perder vários trens, como o trem da microeletrônica. Hoje temos uma dependência de microprocessadores que é terrível, e temos que reverter isso, porque vai se transformar numa questão vital. O talento humano nós temos. Nós não temos as oportunidades, as práticas e os procedimentos para dar vazão a esses talentos.

CC: Trazer cientistas estrangeiros para o Brasil é uma solução?

MN: Sim, temos que acabar com essa história de reserva de mercado. Os EUA fizeram isso no começo do século XIX e foi o início da revolução da ciência americana. Se não tivessem aberto as portas aos cientistas do mundo todo, não teriam a infraestrutura de ciência que têm hoje. Isso para nós é essencial, arejar, trazer gente que está disposta a trabalhar no Brasil em outras normas e procedimentos.

O Brasil não é ainda uma destinação do mercado de trabalho científico mundial, mas ele está começando a dar a sensação que pode ser. A escola de Altos Estudos do MEC é inovadora. Nós vamos formar, por exemplo, um programa de pós-graduação em neuroengenharia, neurotecnologia e neuroeducação com 71 professores do mundo todo. Os nossos alunos vão poder ter acesso a professores que vão vir aqui por tempo determinado para dar os seus cursos, que, na minha geração, e eles só teriam acesso se fossem para Harvard ou Princeton, entre outras.

CC: O senhor parece ser um otimista com as perspectivas da ciência no Brasil.

MN: Eu sempre sou otimista, mesmo em 1988 eu era otimista. Eu fui embora do Brasil sempre achando que eu ia voltar. O Brasil tem que criar mecanismos onde o menino talentoso do doutorado não dependa do chefe do departamento de pós-graduação para saber se ele vai ter bolsa ou não. Para que não dependa do favor, entendeu?

CC: A história da ciência no Brasil tem o paternalismo da própria história do Brasil, né?

MN: É pior que isso. É você deixar esse poder concentrado numa mão e essa pessoa usar esse poder de maneira incorreta. Tem histórias que eu ouço por onde eu passo que são assustadoras. A gente tem que dar a bolsa para o talento. O menino tem que ir lá e passar na pós-graduação em, vai lá, Manaus, ele ganha a bolsa do governo brasileiro e ele tem na mão dele o poder de falar “olha, eu quero fazer isso e trabalhar com aquele cara, porque eu tenho o meu dinheiro”. Ninguém vai dizer com quem eu vou trabalhar. Eu vou escolher. E se eu não gostar daqui eu pego o meu dinheiro e vou lá para o Piauí. Porque lá tem o cara que eu quero trabalhar. Só isso você mudaria muito a equação. Você desconcentra e você põe o poder no cara que tem a paixão de fazer a coisa acontecer. Eu prefiro confiar nos alunos que estão entrando no doutorado por paixão do que no coordenador da pós-graduação que há 40 anos está naquela máquina, distribuindo benesses. Eu não acredito em benesses, eu acredito naquele moleque que quer fazer um doutorado sério. E eu não acredito nesse negócio de distribuir cotas de bolsas para instituições. Tem que ter o máximo de bolsas possível, mas se tiver um cara mais brilhante no Piauí do que o cara do Rio Grande do Sul, a bolsa tem que ir pro Piauí.

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