Sacopã – Um quilombo no paraíso carioca

Descendentes de escravos estão prestes a conquistar a titulação das terras em área na Lagoa Rodrigo de Freitas

Leandro Uchoas, do Rio de Janeiro (RJ)

De frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, com vistas para o Cristo Redentor, em ladeira nobre da zona sul do Rio de Janeiro (RJ), construiu-se uma das mais belas histórias de resistência negra no país.

Em meio a condomínios luxuosos e grades resistentes, sete famílias de descendentes de escravos lutam, há mais de 40 anos, pela posse das valiosas terras que habitam há pelo menos um século. Neste ano, os protagonistas do primeiro e mais valioso quilombo urbano do país parecem próximos de ser oficialmente reconhecidos como donos de suas terras. Mas, a julgar pelo extenso histórico do cerco oferecido pela elite local, a conquista definitiva dos documentos não está nada garantida.

Aos 67 anos, José Luiz Pinto Júnior é conhecido na cidade como Luiz Sacopã, em referência ao nome do Quilombo que herdou e à rua onde vive. Viu o nonagenário pai morrer numa cama, doente e triste, um dia após agressiva intervenção policial, em 1986. A irmã, cantora conhecida como Tia Nenê nas rodas de samba cariocas, teve destino muito semelhante em 2005, morrendo um dia após veemente discussão com o desembargador Antonio Eduardo Duarte, poderoso inimigo da comunidade.

Luiz permaneceu reivindicando seus direitos na Justiça e, após acordo intermediado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), vê com entusiasmo a possibilidade de tê-los reconhecidos.

A Lagoa é um dos mais nobres bairros do Rio de Janeiro, e a especulação imobiliária fez de tudo para expulsar os moradores indesejados. Nos anos de 1960, através da famosa secretária de habitação do governo Carlos Lacerda, Sandra Cavalcanti, removeu favelas e morros da região. A alguns dos negros descendentes do quilombo, oferecia indenizações ou pequenas casas em Santa Cruz, o mais pobre bairro do Rio. Luiz e sua família esforçavam-se para explicar às pessoas que aquele terreno valia mais do que o oferecido e valeria muito mais após a operação. Não obtiveram sucesso. Seduzidos pelo pouco, porém fácil, dinheiro, os vizinhos negros migraram para a zona oeste. “Em alguns casos, alegava-se que era área de proteção ambiental e removia-se. Os antigos donos viravam as costas e eles começavam a construir prédios”, indigna-se Luiz.

Moralmente habitável

Segundo o antropólogo da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fábio Reis Mota, o esforço do poder público de remover as populações do entorno da Lagoa tinha “base na ideia de saneamento da cidade, de modo a torná- la moralmente habitável.

O Poder Público levou a cabo uma política de expulsão de diversas famílias locais para a periferia da cidade. A favela, como categoria pejorativa e estigmatizante, tornase um problema para a cidade, tendo que ser extirpada e removida do cenário do paraíso carioca”.

Como é comum nas intervenções de especulação imobiliária, a região valorizou-se uma enormidade após a operação. A favela da Catacumba, na mesma região, onde os avós de Luiz chegaram e começaram a construir essa história, foi inteiramente demolida, assim como todas as comunidades remanescentes de quilombo da região. Restou a área que, para espanto de todos os que tomam conhecimento dos sucessivos ataques enfrentados, permanece habitada pelos negros. “É um desafio à imaginação sociológica explicar quais foram os mecanismos e estratégias adotadas pelo grupo para a sua manutenção em território tão cobiçado pela força política e econômica da cidade”, afi rma Fábio.

A comunidade ocupa hoje cerca de 32 mil m², o equivalente a três campos de futebol. Estima-se que cada metro quadrado valha, hoje, R$ 12 mil. O valor já suscitou a cobiça de todas as esferas de poder, públicas ou privadas, e a repressão assumiu inúmeras formas. A comunidade já sofreu quatro ordens de despejo, uma privada, uma estadual e duas municipais, a última na segunda gestão de Cesar Maia (2001-2009). Antes, a prefeitura de Luis Paulo Conde criou, em 2000, o parque José Guilherme Melchior sobre boa parte do quilombo urbano. Nessa época, a imobiliária Higienópolis assumiu a disputa pelas terras. A presidente da associação de moradores local, Ana Simas, então amiga da comunidade, surpreendentemente mudou o discurso em favor da imobiliária. Ela se casou no quilombo com Jorge Simas, músico e ex-parceiro de Luiz.

Racismo

Embora a principal causa da perseguição da qual o Quilombo Sacopã se tornou vítima seja a especulação imobiliária, há consenso de que o racismo seja variável significativa. “A gente sabe o incômodo que gera um quilombo numa área nobre. Entra tudo. A questão social, racial e imobiliária”, comenta a atriz Zezé Mota, amiga de Luiz.

Um emblemático caso vivenciado pela comunidade chama a atenção. Em 2001 a Justiça chegou a prender a cozinha e os quartos com correntes para impedir a entrada. Os moradores exibem, até hoje, as correntes, pelo simbolismo que representam em analogias com a escravidão. “Como não podem mais prender nossos pés, prenderam nossas portas”, ironiza Luiz.

Em outra oportunidade, um funcionário do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) foi ao quilombo para verificar uma denúncia de poluição. O próprio funcionário manifestou-se revoltado com o texto da denúncia, no qual se dizia que a poluição era visual. “Estou estarrecido”, teria dito o funcionário.

Resistência

A repressão se deu, em diversos momentos, através da proibição das atividades comerciais do quilombo (cozinha, aluguel de estacionamento etc.). A Justiça sempre alegou que, nessas áreas, não se pode trabalhar comercialmente. Os quilombolas resistiram, e continuam a fazer, ainda hoje, uma feijoada no segundo sábado do mês.

A renda é destinada não apenas ao sustento da comunidade. O bloco Rola Preguiçosa, fundado em 1993 pela família de Luiz, tornou-se conhecido no Carnaval carioca e também é financiado pelas feijoadas. O bloco tem Zezé como madrinha e as camisas são desenhadas por Hans Donner, vizinho do luxuoso condomínio ao lado.

Comenta-se que a atividade cultural ajudou a comunidade a resistir às insistentes investidas dos poderes público e privado. Luiz e sua irmã, Tia Nenê, herdaram da mãe o gosto pelo samba e o talento musical.

Suas feijoadas tornaram-se mais famosas após a fundação do bloco. “Porque sou artista, tenho um microfone na minha frente. Onde vou, falo dos nossos problemas”, resume Luiz. Em uma dessas feijoadas, em outubro de 2004, a comunidade comemorou a declaração oficial do Ministério da Cultura reconhecendoa como quilombo, o primeiro urbano do Brasil.

Fuga e isolamento

O conceito de quilombo urbano causa estranhamento devido a um desvio conceitual. O entendimento majoritário, da sociedade e da academia, concebe o quilombo como local de fuga e isolamento.

“Durante muito tempo se falou de comunidades negras rurais como forma de caracterizar o quilombo. No entanto, há comumente um esquecimento de que a cidade, o urbano, o campo e o rural são sempre contextuais e há sempre um deslocamento, e a consequente transformação desses espaços: de rural para urbano ou de urbano para rural”, explica Fábio.

“O que é hoje urbano na cidade era, no início do século 20, um emaranhado de mangues, rios, lagoas. Essas representações acabam se transformando em sólidos preconceitos sobre a categoria quilombo, cuja conceituação não segue mais esses dois princípios”, completa.

Até mesmo a legislação estatal passou a definir quilombos a partir de outra orientação conceitual. O Quilombo Sacopã não é o único urbano na cidade. Na região da Pedra do Sal, no bairro da Saúde, há outra comunidade lutando por reconhecimento legal.

Igreja e União

Os remanescentes de quilombolas da região, entretanto, não têm muito o que comemorar. Suas terras são disputadas pela União e pela Igreja Católica. “Baseiam-se no princípio de que ‘tudo aquilo que não tem registro me pertence’”, ironiza Damião Braga, vice-presidente da Associação de Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ.).

Com sede na Tijuca, a Ordem Terceira de São Francisco da Penitência vem enfrentando a comunidade há anos.

Para discutir essas questões, a ACQUILERJ, presidida por Luiz, organizou no dia 11 o debate “Quilombo Sacopã, uma Cultura Quilombola Carioca”, com a presença de intelectuais, parlamentares e secretários de governo, além das tradicionais apresentações musicais e da feijoada.

http://brasil-de-fato.jusbrasil.com.br/politica/8018078/um-quilombo-no-paraiso-carioca

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