Especialistas apontam prejuízo irreparável para a fauna. Muitos animais podem chegar às cidades para escapar do fogo, principalmente pássaros, que têm mais capacidade de fuga
Flávia Ayer
A casa foi engolida pelas chamas, o alimento se transformou em cinzas e, diante das labaredas descontroladas, tudo que lhes restou foi a tentativa de salvar a própria vida, numa corrida desenfreada pela sobrevivência. Ainda não se sabe quantos foram bem-sucedidos nessa empreitada, mas já se fala de prejuízo inestimável para a fauna causado pelo fogo que consumiu os parques das serras do Curral e do Rola Moça. No caminho da fuga, a expectativa é de que muitos refugiados saiam das áreas de vegetação queimada e aportem em meio ao concreto da cidade grande.
Um tapeti, espécie de coelho de hábitos noturnos, comum na Serra do Curral, foi avistado no meio do Parque das Mangabeiras, na Região Centro-Sul de BH, em plena luz do dia esta semana, e pode ser o primeiro sobrevivente identificado. Mas a espera maior é pelos pássaros, que têm maior poder de fuga. Gaviões-peneira, falcões-de-coleira, periquitos-rei, sanhaçus-de-encontro-amarelo, bandoletas, campanhias-azuis, espécies típicas de campos rupestres, vegetação característica das áreas queimadas, podem estar a caminho de BH, dispostos a disputar espaço e alimentos com bem-te-vis, sabiás e almas-de-gato.
“As aves têm grande poder de dispersão, procuram habitat em ambientes próximos, um lugar de sobrevivência similar. Algumas conseguem se sobressair em áreas urbanizadas. A presença de bichos diferentes na cidade será forte indicativo de que eles sofreram impacto”, afirma o ornitólogo Gustavo Pedersoli, vice-presidente da Ecoavis, grupo de observação de aves, informando que ainda não avistou sobreviventes do fogo.
O biólogo da Fundação Zoobotânica Gladstone Araújo lembra que mamíferos como lobos-guará, ouriços-cacheiros e gambás, além de serpentes, poderão ser mais vistos na área urbana revirando lixo. “Os bichos ficam desorientados com o fogo: muitos morrem queimados, outros atropelados”, conta. A orientação é para a população se manter longe dos animais e chamar a Polícia Ambiental.
Ontem, 145 bombeiros e brigadistas ainda apagavam rescaldos do fogo que destruiu mais de 80% dos 3,9 mil hectares do Rola Moça. O gerente da área verde, Marcos Vinícius de Freitas, não sabe precisar ainda o impacto na fauna, mas afirma ter visto lagartos, sapos, camaleões e cobras mortos. “O principal impacto deverá ser em relação a anfíbios, répteis e à microfauna, invisíveis a olho nu. A natureza tem grande capacidade de regenerar, mas a capacidade de destruição do homem é grande”, diz.
Biodiversidade – Situado em área de campo ferruginoso, solo raro e cobiçado pela mineração, o Rola Moça é habitat de espécies em extinção como onça-parda, jaguatirica, lobo-guará, gato-do-mato, macuco e veado-campeiro. Na semana que vem, o impacto será avaliado, mas independentemente do resultado, Gustavo Pedersoli considera o estrago imensurável. “A queimada ocorreu no início do período reprodutivo das aves. O fogo acabou com os ninhos e alimentos”, diz.
Segundo ele, espécies endêmicas, como o papa-moscas-de-costas-cinzentas, terão impactos irreversíveis. “Há um casal de urubus-rei no Rola Moça que indica de qualidade ambiental e sofrerá grande pressão”, lamenta, sem se esquecer dos danos à Serra do Curral. O cartão-postal de BH teve 75% de seus 40 hectares destruídos. O biólogo Gladstone lembra que os dois parques estão em área de transição entre mata atlântica e cerrado, um oásis da biodiversidade.
Espécies típicas da Serra do Curral e da Serra do Rola Moça capazes de sobreviver em áreas urbanas:
Bandoleta
Campanhia-azul
Falcão-de-coleira
Gavião-peneira
Pica-pau-verde-barrado Periquito-rei
Sanhaçu-de-encontro-amarelo
Sanhaçu-fogo
Mamíferos que podem aparecer na cidade
Gambá
Ouriço-cacheiroLobo-guaráTapeti
Outras espécies típicas da Serra do Curral e da Serra do Rola Moça
Águia-chilena
Beija-flor-de-gravata-verde
Capinha-azul
Choquinha-lisa
Papa-moscas-de-costas-cinzentas
Papa-taoca-do-sul
Rabo-mole-da-serra
Urubu-rei
Em extinção na Serra do Rola Moça
Gato-do-mato
Lobo-guará
Macuco
Veado campeiro
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OUTROS TEMPOS:
Dos anus-pretos aos sabiás
Otacílio Lage
Na década de 1940, os anus-pretos e sanhaços dominavam as pastagens no entorno de Belo Horizonte, a então Cidade Vergel (depois Jardim), e, nas “horas vagas”, eram vistos nos quintais das casas da zona urbana. Nos anos 1950, os tico-ticos mostraram a cara na capital e os dois pássaros praticamente desapareceram. Duraram pouco, pois tiveram os ovos comidos pelos pardais, que imperaram na década seguinte. Em meados dos anos 1970, essas aves vindas de Portugal em porões de navios perderam espaço para a rolinha roxa, que se tornou uma praga em BH nos anos 1980. O espécime, contudo, foi superado pelo bem-te-vi, que está por toda a parte da cidade e região metropolitana. Nesses tempos de seca e de queimadas, a vez agora pode ser do sabiá. Essa ave de canto melodioso e melancólico já é vista na copa das árvores em pleno Centro de BH, sem se incomodar com o asfalto e a poluição sonora e do ar. O bem-te-vi que se cuide. E assim caminha a passarada.
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http://impresso.em.com.br/app/noticia/cadernos/gerais/2011/09/30/interna_gerais,8573/refugiados-das-chamas.shtml