Por Flávio José dos Passos
“Não há dia nem hora, nem tempo ou espaço
Quando a gente chega, anima de fato
Se há beleza negra, há raiz, há razão
Aconchego, arte e canção”(…).
Maria Silva (CD Cantando Raízes, 1997).
É muito comum aos domingo, curtindo a folga do trabalho, no encontro entre amigos, nas rodas de samba, e já na hora daquela “saideira”, alguém dizer “tenho que ir pra casa porque amanhã é segunda-feira, dia de branco”. A depender da região do país, a expressão é dita de outra forma –“tenho que ir pra casa porque amanhã é segunda-feira, dia de preto”.
Além da diversidade regional na variação da expressão, há controvérsias quanto ao seu verdadeiro significado.
Sempre estive menos convencido de algum teor de preconceito racial que de uma gostosa ironia embutida em tais expressões populares, provavelmente, cunhadas desde o período escravocrata. Até arriscaria dizer que, fazendo uma leitura ‘por dentro’ é possível interpretá-las como uma forma mais irônica de dizer “hoje, domingo, somos donos de nossa liberdade, da festa e de nossos corpos; amanhã, nem tanto”.
Em país de tradição escravocrata e racista, dizer que aquelas expressões servem pra justificar uma suposta preguiça dos negros – mesmo quando na própria fala está explícita a idéia do trabalho pesado no dia seguinte –, é compartilhar da incansável lente racista de interpretação do mundo.
Não faria essa introdução, se o dia 12 de setembro de 2011 não tivesse caído bem numa “segundona”, marcada pela ressaca das unilaterais análises sobre os 10 anos do “11 de setembro de 2001”.
Dia de trabalho, sem feriado na semana e que, passaria despercebido até que a passagem do dia 12 para o dia 13 se inscreveu como um marco na história da nossa relação com a África, especialmente, com a Angola. E essa segunda-feira não mais “passou batida”, trazendo uma reflexão sobre nós mesmos.
Com a vitória mais que consagrada de Leila Lopes na 60ª edição do “Miss Universo”, amanhecemos na terça “13 de setembro de 2011”, num belo “dia seguinte”. Que festa, que repercussão, ficando no topo dos assuntos comentados nas redes sociais, obrigando a imprensa graúda também pautar a novidade.
Nas ruas, nas rodas, o assunto do dia, num clima de catarse, como se mais algumas antigas correntes ainda emaranhadas em nossa psiquê coletiva acabassem de se soltar.
Desde criança, nunca entendi bem quais eram os critérios dominantes desses concursos tão disputados mundo afora e aqui também, inclusive, regionalmente. Aos poucos, fui percebendo que não se passava de mais uma celebração da supremacia do padrão estético que já imperava violentamente nos comerciais, no cinema, na televisão e nos Fashion Week’s da vida.
Era como se não existissem mulheres negras no mundo e a África não estivesse no mapa da beleza. Era como se o Brasil não fosse a maior nação negra do planeta e naquela estética exaltada nas passarelas não coubesse a diversidade, tão característica de nós, brasileiros. O racismo, enquanto um sistema de dominação inscreve a sua eficácia no plano do simbólico e nele opera a sua lógica.
No início do ano assisti a um longa – “Vênus Negra”, de 2010, do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche, que conta a história real de Saartjie Baartman, uma mulher negra sul-africana levada para Europa no início do século XVIII, transformada em um espetáculo bizarro para platéias da França e Inglaterra, em um período que a própria ciência buscava mais justificativas para comprovar uma pretensa superioridade eurocêntrica.
O mais triste no filme é perceber o quanto ele é real e atual. A vitória de Leila é apenas uma parte nesse longo processo do mundo em redefinir seus valores.
Contemplar a beleza de Leila Lopes é contemplar a beleza negra da África e de toda a diáspora africana. Ontem, na rua um senhor comentava “ela tem uma beleza natural, não tinha como não ganhar”. É isso. Essa “naturalidade” talvez seja pelo fato dela não ter alimentado tanto a pretensão de ficar em primeiro lugar. É uma beleza negra, sim. Africana, sim.
E é incontestável que sua beleza desconcerta os padrões hegemônicos e certamente redefinirá os próximos concursos e o próprio mundo das passarelas.
É como se tivéssemos nos descoberto a nós mesmos, olhando no espelho. Redescobrimos, na beleza de uma jovem angolana, o quanto temos de beleza. Não precisava ser especialista para prever que Leila seria vencedora. Sua vitória evoca análises as mais diversas, da filosofia à psicologia, da antropologia à geometria, da sociologia à teologia.
E por falar em intelectualidade, passadas a fase dos confetes, há o perigo de se querer medir a nova rainha da beleza universal a partir da sua “consciência racial”, nas declarações como a que ela deu hoje, 14, dizendo que “felizmente, o racismo não me atinge”. Suas falas mostram sim uma personalidade segura, uma auto-estima bem definida, uma negritude desenvolvida a partir de outro contexto que não o Brasil.
Dizer que “as pessoas racistas é que devem procurar ajuda” faz lembrar do quão é necessário o debate sobre branquitude, principalmente, em contextos de longos processos colonizatórios, como os ocorridos nos dois países.
O Brasil já venceu o concurso duas vezes, inclusive, com uma baiana na década de 60, mas em nenhuma delas a Miss Universo foi uma negra. Outras africanas e negras já ganharam o concurso. Mas, justiça foi feita: uma angolana venceu primeiro que uma negra brasileira. E venceu no Brasil, para não ter perigo de os meios de comunicação daqui se esquecerem de colocar na pauta do dia seguinte que uma angolana havia sido eleita Miss Universo.
E nada mais significativo do que esta vitória ter ocorrido em São Paulo, no Estado com a maior população negra do país, onde as edições do SPFW, a partir de 2009, estão submetidas a um Termo de Ajustamento de Conduta, proposto pelo Ministério Público Estadual que prevê a reserva de 10% dos modelos que desfilarem ser de negros e negras ou descendentes de indígenas, conquista alcançada através da reivindicação de diversos movimentos negros organizados – dentre eles, a Rede de Cursinhos Educafro. Infelizmente, ainda não é cumprida por algumas agências de modelos que alegam ser a lei uma “sugestão”.
No início do ano, uma estilista carioca Anne Gaul reclamou da falta de modelos negros nas agências, como sendo a causa da subrepresentação de modelos negros e negras nas passarelas nacionais e chamando a atenção para o racismo que tal situação revela. Ela disse o óbvio, mas que, infelizmente, viciados pela rotina, já naturalizamos: “não tem tanto trabalho (nas agências) para eles”. E completa: “Precisamos mudar esta consciência, este conceito racista”.
E pensar que cada vez que olhamos para as fotos de Leila Lopes nos vem à mente tantas jovens negras que existem pelos quatro cantos do Brasil e as que mal passam das primeiras eliminatórias dos concursos de beleza. Olhar para Leila Lopes é sim lembrar também dos tão importantes concursos de beleza negra feitos nas comunidades, uma alternativa e uma denúncia dos eventos de moda e beleza que promovem dos padrões hegemônicos e segregacionistas.
E Leila Lopes, que tem um nome tão brasileiro, que conhece o Brasil apenas pelas novelas globais, tinha mesmo de ser é Angolana. Uma angolana com uma beleza tão familiar à nossa que alguém que, desavisado, ao ligar a TV no dia 13, visse aquele sorriso de felicidade e a coroa na cabeça da eleita mulher mais linda do universo e não ouvisse a nacionalidade da campeã, já sairia soltando fogos, comentando “a nossa” vitória, acreditando ter sido uma brasileira – e negra – a Miss Universo 2011.
E mesmo os mais conscientes comemoraram muito, e com razão. Como Leila mesmo disse em um jornal ontem, “meu sorriso foi minha alma”. Era preciso que Angola, nossa primeira matriz africana, tivesse o reconhecimento da sua beleza, antes de nós, brasileiros. Leila, no processo seletivo, não se furtou a dar uma resposta segura e que bem traduz, não só sua beleza enquanto pessoa, mas também suas origens, o legado de seus antepassados, mostrando o quanto a família é uma experiência humana presente em todas as sociedades.
Sim, Leila Lopes nos “lavou a alma” (nunca vi alguém questionar uma possível ambigüidade preconceituosa nesse outro adágio tão comum em terras, para as quais, africanos foram trazidos por séculos para terem a alma salva do pecado).
Lavou nossa alma nos presenteando com a sua beleza, com a sua coerência, com a sua visão social crítica quando defendeu, para o mundo inteiro ouvir, a importância do respeito ao outro e, consciente do seu papel naquele momento, deu-nos uma aula de auto-estima e negritude, ao ser indagada sobre o que mudaria em seu corpo.
Ela não hesitou: “Não mudaria em nada. Me considero uma menina bonita por dentro, tenho os meus princípios, os meus valores. Eu sinto que fui bem educada e quero ser assim a vida toda”.
Não tenho dúvida nenhuma de que a expressão “bonita por dentro” que a Miss Universo 2011 se reportou pode ser chamada de auto-estima, amor próprio, querer-se bem. É essa a grande diferença.
E sempre que reflito sobre a lei que obriga trabalharmos em sala de aula a história e a cultura africana e afro-brasileira, penso no imperativo de se trabalhar, primeiramente, a educação de nossas relações étnico-raciais, nos pressupostos que definem nossos padrões de beleza e sociabilidade, enfim, a superação do racismo. Leila Lopes poderá ser citada nas salas de aulas como modelo de beleza. Não só ela, mas ela em especial.
Cartazes com sua foto, imagens de sua fina estampa povoando as paredes das escolas e as mentes das crianças, brancas e negras, e estas também a dizerem “sim, nós somos meninas bonitas”. Imaginemos quantos milhares de meninas negras, mundo afora, dormiram mais felizes nas últimas duas noites.
A segunda parte da sua fala – “e agora eu aproveito para deixar um conselho aos presentes: respeitem os outros” – tinha um endereço certo: o público presente. Um público que, por mais de meio século, reproduziu um padrão de beleza etnocentrizado, caucasiano, padronizado a partir de um pretenso “centro” do mundo.
Acredito que estejamos em um processo gradativo de desintoxicação do racismo. Isso leva muito tempo, mas temos dado passos significativos, mesmo que ainda precisemos contabilizar, no Brasil e no mundo, os negros e negras que se destacam, não obstante os cenários de preconceito presentes nos mais diversos contextos: Mandela, Obama, Ronaldinho, Hamilton, Opraw, Daine, Barbosa, Ramos, e… agora, a Leila Lopes.
Ainda vivemos sob o domínio da exceção confirmando a regra. Prova disso é o quanto as manifestações racistas têm eclodido em páginas da rede mundial de computadores.
Como disse um amigo de militância, ontem, via email: “acredito que nossos descendentes viverão em um mundo mais justo, pois a carne negra vai deixar de ser a carne mais barata do mercado”, parafraseando Elza Soares. Acredito sim que muita coisa já mudou com relação ao racismo no Brasil, porque nossos antepassados nunca desistiram de sonhar com a liberdade e um mundo melhor.
Os desafios do racismo, em suas mais diversas e eficazes manifestações, hoje são muito maiores porque a sociedade brasileira desenvolve mecanismos sutis e eficazes de discriminação a partir da cor da pele. Nossa tão propalada miscigenação não nos fez mais iguais. Como entender nossa subrepresentação nas assembléias legislativas em todas as esferas de poder político? Um grande amigo e compositor no interior do Ceará, Edilson Barros, bem expressa essa indignação nos versos da canção “Protexto”, a qual diz: “onde estão os negros, na sociedade, quantos são ministros, professores, autoridades, quantos na faculdade?”
Mesmo com os 10 anos do início das aprovações das cotas no ensino superior, o número de negros que se formam médicos no Brasil é baixíssimo.
Precisamos ocupar as passarelas, sim. Mas, precisamos de reparação pelos séculos de escravidão e pelo racismo que sofremos no dia a dia. Precisamos avançar em políticas de ações afirmativas, que saiam do caráter de mero ensaio e timidez. Precisamos de uma educação de qualidade de primeiro mundo para nossas crianças negras.
E isso parece que ainda é algo utópico. Precisamos ocupar as universidades, as posições de estratégia, poder e prestígio, as diretorias, gerências, parlamentos, senados, em todos esses espaços desconstruindo as estruturas que mantém, secularmente, essas desigualdades e assimetrias.
Além de tudo isso, precisamos olhar para Angola não como um país de miseráveis, ou uma mera oportunidade de novas explorações econômicas, mas sim como país irmão que requer de nós brasileiros e do resto do mundo relações políticas sólidas que reduzam a miserabilidade em que vive a maioria do povo angolano.
Na madrugada desta terça, 13, ao assistir a uma apresentadora de um jornal de grande circulação nacional, “pisando em ovos”, dizer que “nesse concurso, tivemos a vitória do politicamente correto”, é um tanto quanto perceber como os conceitos (e pré-conceitos) demoram a mudar, sim.
Leila Lopes venceu porque ela é linda e sua beleza tem uma harmonia que nos interpela a sermos mais belos em tudo e com todos. E de repente, já indo para o segundo dia da feira, amanhecemos outros, mais humanos, talvez; mais belos, com certeza. Salve, Angola! Salve, mulheres negras do mundo inteiro! Salve, Rainha Nzinga Mbande, Rainha Ginga! Axé, paz na vida!
Ps.: Agradeço a Joanice Conceição, Luciana Soares, Lucimara Passos, Lurdinha Ielo Dore, Mírian Santos e Sival Soares que tão bem revisaram este texto que ele passa a ser nosso. Num momento em que estou imbuído na tessitura da dissertação, vossa colaboração foi muito preciosa. Henrique Ribeiro, obrigado pelo apoio.
Flávio José dos Passos, escreve artigos sobre justiça e racismo para varios jornais. Ele é o autor do Coluna, “A luta contra o racismo no Brasil” no Zwela Angola.