A questão de Monteiro Lobato devidamente colocada por uma Vereadora de Salvador

Olívia Santana

O Parecer nº. 15/2010 do Conselho Nacional de Educação — que identifica situações de racismo no livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato — causou polêmica nos meios literário e educacional. Uma passagem do referido livro diz: “Sim, era o único jeito — e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros”.

Ora, há muito se associa a imagem das pessoas negras a macacos. Já vimos insultos a jogadores de futebol, no vôlei e em inúmeras situações da vida cotidiana. Na escola, não raro, professores despreparados chegam a justificar manifestações racistas como brincadeira.

Evitemos as saídas simples. Não se trata de defender a não exposição das crianças a um autor de méritos reconhecidos, como Lobato. Trata-se de ter visão crítica sobre possíveis racismos em expressões supostamente carinhosas, como a infantilização do negro, sua comparação com um macaco, como feito com a simpática personagem Tia Nastácia. Cabe à escola desnaturalizar estereótipos racistas.

Todo autor é fruto do seu tempo, mas o racismo atravessa o tempo e permanece arraigado às relações sociais, não nos permitindo contemporizá-lo. Ciente disso, um professor de Brasília analisou o livro em tela e formalizou denúncia junto à Ouvidoria da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial-SEPPIR. Por sua vez, a SEPPIR acionou o Conselho Nacional de Educação.

Com base no artigo 5º da Constituição de 1988, que criminaliza o racismo, e na LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional -9394/06, alterada pelas leis 10.639/08 e 11.645/08, para inclusão da história e da cultura afro-brasileira, africana e indígena, o CNE elaborou o Parecer nº.15/2010. Esse Parecer resgata as normas da própria Coordenação-Geral de Material Didático do MEC, que estabelecem que “na avaliação dos livros indicados para o Plano Nacional de Biblioteca nas Escolas, as obras ‘primem pela ausência de preconceitos, estereótipos e que não sejam selecionadas obras clássicas ou contemporâneas com tal teor’. Em casos em que a obra selecionada mantenha tais problemas, será acompanhada de ‘uma nota de orientação sobre a presença de estereótipos raciais’. Fato curioso é que os escritores Márcia Camargo e Vladimir Saccheta, na abertura da 3ª edição, 1ª impressão, publicada em 2009 de Caçadas de Pedrinho, devidamente atualizada no que diz respeito às novas normas da língua portuguesa, situam historicamente a obra de Lobato, explicando que na época não havia legislação protetora dos animais silvestres. Mas não há nenhuma referência à linguagem racialmente discriminatória que há no livro, em contraste com os avanços que houve no Brasil em relação ao enfrentamento do racismo, desde a Constituição de 1988.

Assim, longe de ser um ato de censura, como alguns intelectuais reclamam, o parecer orienta o trato da questão racial na escola, instituição que deve educar todo o povo brasileiro, sem discriminação de qualquer segmento que compõe a nossa matriz civilizacional.

Lobato é, sem dúvida, um grande nome da literatura nacional, o que não o impede de ter pés de barro, ou aversão ao barro negro. Há os que gritam que o Brasil trata a cidadania negra e indígena com paternalismo, e não se diz uma palavra sobre a escravidão branca. Sabe-se que brancos escravizaram brancos no passado e até negros escravizaram negros. Toda forma de escravidão deve ser rechaçada em nome da humanização, da evolução dos sistemas de organização social e da socialização da riqueza que o trabalho é capaz de gerar. Mas povos brancos se lançaram a escravizar outros povos e reelaboraram simbolicamente as experiências que travaram contra os seus. Quando se pensa em escravidão branca, nos invade a imagem do glorioso Spartacus, o grande e bravo líder de uma rebelião escrava que confrontou o poder na Roma Antiga. Como se reelabora a tragédia vivida pelos povos negros? O que nossas crianças e adultos sabem sobre a escravidão negra? O navio negreiro, a subalternidade, a desumanização do continente africano. A indústria cultural e a literatura hegemônica não deram voz e imagem de dignidade aos vencidos e suas formas de resistência. Não fosse o Movimento Negro, Zumbi não seria mais que um espectro entre os morto-vivos a povoar histórias de terror.

O ser humano é um ser cultural e politicamente construído. Seu imaginário de sucesso ou de fracasso é, também, feito de símbolos construídos na dinâmica social concreta. A verdade é que as crianças têm recebido na escola uma enxurrada de livros que enaltecem a branquitude e a riqueza. Branca de Neve, Bela Adormecida, Rapunzel, Gata Borralheira… Os famosos contos dos irmãos Grimm dominam o ranking literário infantil.

A turma do Sítio do Pica Pau Amarelo é um contraponto à exaltação do herói e da heroína europeus, afirma a cultura nacional, mas o lugar do negro nas histórias de Lobato é silenciado, inviabilizado: é um não-lugar. A única criança negra é o saci, um diabo, que fuma e tem uma perna só. Tia Nastácia e Tio Barnabé não têm família, vivem na cozinha e nos fundos da casa de dona Benta, são subservientes, infantilizados, ainda que cuidadosos. A criança negra que cresce ouvindo essas histórias, sem uma abordagem crítica e sem outras histórias que possam valorizá-las, é efetivamente vítima silenciosa da violência simbólica. Reeducar o povo brasileiro é um desafio a ser vencido, sob pena de continuarmos produzindo Mayaras e outros jovens que odeiam negros, índios e nordestinos.

Há que se contestar as injustiças, mesmo que estas tenham sido cometidas por um notável pioneiro da literatura infantil. E despertar na criança a capacidade de análise crítica, para que possam ver os pés de barros de muitos mestres. Mas será que a escola aguenta este outro tipo de modelo de educação que tanto beneficiaria negros e brancos e contribuiria para interações não hierárquicas e estereotipadas?

* Olívia Santana é vereadora de Salvador e Coordenadora de Combate ao Racismo do PCdoB

http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=35607

Comments (7)

  1. Conheço Lobato desde meus 2 anos de idade. Ao final dos 11, tinha lido toda sua obra infantil. Não sou racista. Muito pelo contrário. Conhecer sua obra me fez enxergar o lugar desprivilegiado que há muito tem-se dado aos negros.
    Monteiro Lobato retratou a sociedade do seu tempo. Se na nossa o negro ainda luta para encontrar seu espaço, imagine na de Lobato, que viveu no século retrasado. Esconder a obra de Lobato é querer continuar escondendo todas as injustiças que o negro enfrenta ao longo da história do Brasil. Nunca acertamos nossa dívida com a raça negra e continuamos a todo custo insistindo não haver uma dívida a ser paga.
    A obra de Lobato é apenas uma fresta que nos mostra a situação do negro na nossa sociedade. Ao invés de censurar, deveríamos escancarar como denúncia a posição desprivilegiada do negro. E não só do negro, mas também dos índios, que são ainda mais excluídos e marginalizados.
    Quem ver a obra de Lobato como preconceituosa tem uma visão estreita; é porque nunca leu sua obra.

  2. Toda situação dentro de uma escola tem que se transformar em uma situação didática. Não é preciso ter um professor enchendo o quadro de conteúdos para que haja aprendizagem na vida das crianças.
    A obra de Monteiro Lobato deve ser exposta em sala de aula. Além de ser muito rica, mesmo os pontos frágeis que aparecerem, como o racismo por exemplo, devem se tornar matéria prima para ser trabalhada, discutida e fazer os alunos refletirem se o Brasil é ou não é um país racista.
    Não devemos esconder o lixo embaixo do tapete. Lobato ainda enalteceu o negro, pois foi tia Nastácia que fez a Emília. Ela é a criadora do maior intelectual do Sítio, o Visconde de Sabugosa.
    Um representante do povo não pode ter uma visão unilateral das coisas, principalmente de uma obra tão rica como é a obra de Monteiro Lobato. Pena que você não teve a chance de ler toda obra dele na sua infância.

  3. Esclarecedor o que aqui escreveestes.Desde que li a respeito desta polêmica algo não me sai da cabeça.Lobato é sem dúvida o grande responsável pelo início da evolução literária infantil em nosso país, o que não o isenta entretanto da visão de sua época, visão esta que ainda está impregnada em nosso meio: O BRASIL É UM PAÍS RACISTA(ainda).Daí a necessidade da mediação crítica do professor…O “estardalhaço” provocado me parece apenas a tentativa de continuação do que foi nossa lamentável campanha presidenciável.Vi muitos educadores rechaçando, condenando sem terem lido na íntegra o que se propunha em relação à obra de Lobato.Alerto ainda que pessoas de RENOME na literatura infantil ,mas de posição conservadora estão habilmente distorcendo os fatos, é preciso que saibamos que mesmo os mais talentosos escritores são seres humanos e tem suas preferências políticas e visão de mundo, antes de os idolatrarmos como “donos da verdade” é preciso reparar em suas atitudes para não sermos influenciados a espalhar MENTIRAS.Basta reparar na atitude dos mesmos nas polêmicas recentes da campanha eleitoral.

  4. Parabéns, Olivia!
    A letra O em seu nome lhe dá a dimensão integradora expressa em seu texto: maravilhoso! Somos luz e escuridão e integrar os dois é tarefa hercúlea porém necessária e urgente:crítica em contexto,observação compreensiva e atuação limpa.Resiliência sim, mas aos nossos professores para o trabalho com a nova geração que se aproxima.
    Alda Luba “O Poder Transformador das Histórias”

  5. Parabéns, Olivia!
    A letra O em seu nome lhe dá a dimensão integradora expressa em seu texto: maravilhoso! Somos luz e escuridão e integrar os dois é tarefa hercúlea porém necessária e urgente. Resiliência sim, mas aos nossos professores para o trabalho com a nova geração que se aproxima.
    Alda Luba “O Poder Transformador das Histórias”

  6. Reparem que a “polêmica” divulgada pela grande imprensa serviu para esconder um outro caso relatado pelo Conselho Nacional de Educação na mesma data: “Denúncia de racismo na Escola Estadual Delmira Ramos dos Santos, localizada no Bairro Coophavilla II, Município de Campo Grande, MS. (Parecer CNE/CEB nº 16/2010)”:
    Por diversas crianças sofreram injúria por parte dos alunos da escola, os quais usavam palavreados pejorativos como

    ‘o seu cabelo é feito pra fazer bombril, sua pele é para fazer carvão e a carne para fazer comida de porco, pretos fedidos, frango de macumba e urubu” (p. 1).

    Ainda segundo o depoimento da mãe no referido Boletim de Ocorrência, cansada de tal situação, a mesma procurou a direção da Escola Estadual por diversas vezes, mas esta “fez pouco caso da situação, inclusive insinuava que o seu filho era “bandido” (p.1).

    Conselho responsabiliza diretora por bullying e racismo
    Estudantes de escola estadual de Campo Grande sofreram agressões e discriminação racial

    Para quem acha que nossas professorinhas estão preparadas para serem mediadoras “entre o livro e seus leitores”, destacamos apenas o caso mais recente da Escola Estadual Delmira Ramos dos Santos, no Mato Grosso do Sul. A diretora da escola chega ao absurdo de acusar de “racista” a própria mãe das crianças que eram xingadas e humilhadas à vista de todos na escola…

    Se até os animais silvestres mereceram uma nota para que as crianças não os caçassem, não seria necessário, também, uma nota explicativa para que as crianças ficassem sabendo que as praticas preconceituosas e racistas são crimes?

    São Paulo, 05 de novemro de 2010.
    Mauro Alves da Silva
    Coordenador do Movimento Comunidade de Olho na Escola Pública
    http://MovimentoCOEP.ning.com

    Cláudia Marques

  7. Brilhante! Absurdamente sintético para a complexidade do tema, e feito de forma tão delicada e explícita.
    Parabéns! Concordo com cada sinal registrado na tela.
    Rute Albuquerque
    Coordenadora do Programa de Educação do NEN – Fpolis – SC

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