Por várias vezes, nos discursos proferidos em defesa do seu Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, o presidente Lula tem se referido às exigências do respeito à legislação ambiental e aos direitos dos povos indígenas e populações tradicionais como um grande obstáculo a ser superado. Para Lula, esse “aparato legal” significa um verdadeiro “entrave” ao modelo de desenvolvimento por ele pensado para o país. Em face disso, tem elegido em suas falas alguns exemplos daquilo que considera ser o maior dos absurdos. Assim sendo, de maneira recorrente, tem citado índios e pererecas como fatores de tensão permanente nos canteiros de obras. Na lista de discursos disponibilizados no site da Secretaria de Imprensa da Presidência da República, pode-se identificar que pelo menos em doze ocasiões é feita essa referência.
Recentemente, num curto intervalo de cinco dias, por duas vezes denunciou publicamente esses vilões do PAC. A primeira por ocasião da assinatura do contrato de concessão da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em 26 de agosto, em Brasília e a segunda durante abertura da XVIII Feira Internacional da Indústria Sucroalcooleira (Fenasucro) em Sertãozinho-SP, no dia 31 do mesmo mês. Além da impropriedade da fala, chama-nos atenção a maneira como expressa sua indignação: em tom jocoso, com desdém e agressividade. Talvez essa recorrência ao tema e a repetida associação entre índios e pererecas carecesse uma análise psicanalítica por parte de profissional devidamente qualificado. Mas como esse não é nosso caso, limitaremo-nos apenas a expressar também a nossa indignação diante de tal comportamento.
Em seu último livro publicado no Brasil, O Medo dos Bárbaros, para além do choque das civilizações, Tzvetan Todorov, um dos mais importantes pensadores da atualidade, desenvolve uma profunda reflexão sobre o conceito de barbárie e civilização. Segundo o autor, “os atos e atitudes é que são bárbaros ou civilizados, e não os indivíduos ou os povos”. Dessa forma, é possível identificarmos uma atitude civilizada por parte de um membro de um povo indígena vivendo ainda em situação de isolamento e uma atitude bárbara praticada por um habitante natural de Paris.
Para Todorov, “a recusa de considerar visões de mundo diferentes da nossa separa-nos da universalidade humana e mantém-nos mais perto do pólo da barbárie”. Numa de suas recentes declarações, o presidente revelou sua incapacidade de reconhecer o direito à diferença. Ao se referir à construção da Hidrelétrica de Belo Monte, obra que provocará um impacto de grandes proporções no rio Xingu e reduzirá drasticamente seu potencial hídrico, afetando diretamente a vida dos povos indígenas da região, mais uma vez se reportou aos índios nos seguintes termos: “precisamos mostrar aos irmãos índios que não precisam pescar de flecha, podem criar em tanques”.
Alguns meses atrás Lula havia afirmado “que ninguém fez mais pelos nossos irmãos índios do que o nosso governo”. Ao que estaria se referindo ao afirmar que “fez mais”? Somos sabedores que durante seus dois mandatos os procedimentos de demarcação de terras indígenas ficaram paralisados, salvo raras exceções. As políticas de atenção à saúde indígena e educação escolar indígena, somente agora, ao término do segundo mandato, começam a dar sinais de reação. Por outro lado, a construção de empreendimentos que impactam territórios tradicionais indígenas e os atos de violência praticados por agentes do poder público contra comunidades indígenas continuam em elevado grau. Talvez esse “mais” refira-se às ações mitigatórias dos impactos causados pelas grandes obras, distribuição de cestas básicas nas aldeias, Bolsa Família etc.
O discurso presidencial parece traduzir uma compreensão de que “índio tem direito, mas tem que ser do meu jeito”. Uma expressão popular muito comum no agreste pernambucano, região em que nasceu o presidente, traduz bem esse entendimento: “cavalo dado não se olha os dentes”. Foram essas compreensões que marcaram as relações estabelecidas entre o Estado brasileiro e os povos indígenas desde o início da colonização. Evidentemente não queremos igualar Lula aos governantes brasileiros do período colonial, imperial ou até mesmo alguns de seus antecessores republicanos, que nutriam pelos povos indígenas sentimentos de ódio ou desprezo. Pelo contrário, presenciamos em alguns de seus encontros com líderes indígenas um tratamento gentil e atencioso.
Por outro lado, não podemos negar que o mesmo necessita abrir os olhos aos outros, ao diferente. Precisa entender que os costumes dos povos indígenas, os jeitos próprios de pescar, de caçar, de coletar, também se constituem em direitos, devidamente assegurados pela Constituição brasileira. Que a maneira de conseguir o alimento para matar a fome é tão importante quanto o próprio ato de matar a fome. A forma de fazer assegura a autonomia para poder fazer sempre. Por isso, é mais importante ter a terra indígena demarcada, com seus recursos naturais preservados do que a distribuição de cestas básicas nas comunidades indígenas.
Precisa entender ainda que pescar no rio é completamente diferente de pegar o peixe no tanque. Esses modos traduzem diferentes formas de pensar o mundo. O primeiro revela uma preocupação com a sobrevivência das futuras gerações e do próprio Planeta Terra. O segundo atende aos ditames do capital, onde o peixe se converte em mercadoria. Para tanto, é necessário ter dinheiro para adquirir o material necessário para fabricar o tanque e comprar os alevinos e daí segue-se a cadeia mercadológica. Antes disso, o rio já foi destruído, mais uma vez, atendendo à ditadura do capital.
Como vemos, apesar da boa vontade e do grande conhecimento demonstrado em várias áreas, Lula necessita ser auxiliado a empreender um processo de aprendizagem intercultural e dialógica, mesmo porque administra um país que se destaca por sua diversidade étnica e cultural. Para tanto, poderia buscar ajuda dentro de seu próprio governo, onde há pessoas qualificadas para fazê-lo. Durante a cerimônia de assinatura do contrato de concessão de Belo Monte, no momento em que fazia citações jocosas sobre a cultura indígena, tinha ao seu lado o presidente da FUNAI, o antropólogo Márcio Meira, que também é presidente da Comissão Nacional de Política Indigenista – CNPI. Destaque-se que naquela mesma hora, a referida comissão estava realizando mais uma de suas reuniões ordinárias. Márcio Meira abandonou a mesma para ir prestigiar a assinatura do contrato. Considerando-se os já mencionados prejuízos causados pela referida obra aos povos da região, podemos concluir que acima dos direitos indígenas estão os interesses governamentais.
E para não dizer que não falamos das pererecas, poderíamos recomendar ao Sr. Presidente que procurasse acompanhar os debates hoje existentes em torno da compreensão especista de mundo. Cada vez mais, nós humanos estamos percebendo a importância do valor da vida dos demais seres. Ademais, somos também sabedores do importante papel que cumprem nossas irmãs pererecas (um apanágio franciscano) para a manutenção do equilíbrio ecológico.
Por fim, cabe dizer que não se tem conhecimento de que qualquer obra tenha sido paralisada em razão da identificação da presença de pererecas ou indígenas em sua área de abrangência. Aliás, nem mesmo as várias mortes de operários ocorridas nos canteiros de obras das Usinas Hidrelétricas do Rio Madeira, a exemplo do que ocorreu com Francisco da Silva Melo, que em 21 de julho foi tragado pelas engrenagens de uma máquina da Usina Jirau, são considerados motivos suficientemente fortes para interromper qualquer obra do “todo poderoso” PAC.
Enquanto as obras prosseguem, novos relatos de violência vão surgindo, alguns deles sem comprovação até agora, como a notícia de que um trabalhador teria caído no meio da concretagem do vertedouro da Usina de Santo Antônio, ficando seu corpo concretado no paredão de cimento diante da recusa da empresa em suspender os serviços. Relatos como esse, trazem-nos imediatamente à memória a antiga prática de emparedamento que levou à morte milhares de pessoas ao longo da história da humanidade.
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