“Os novos escravos do capitalismo”, de Patrick Herman – resenha

Jean-Pierre Leroy

O camponês jornalista francês Patrick Herman, com a experiência adquirida no início dos anos 90, quando trouxe a público o escândalo escondido da contaminação pelo amianto, inicia em 2002 uma investigação que o leva a descobrir e fazer “emergir” “um mundo até então invisível”. Fruto dessa pesquisa, ele publica em 2008 “Les nouveaux esclaves do capitalismo”1, ainda não traduzido para o português. Esse mundo é o da produção intensiva no sul da Europa e, secundariamente, no norte da África, de frutas e legumes, com seus trabalhadores assalariados migrantes: “os novos escravos do capitalismo”. À busca deles, o autor transporta o leitor em ambientes que o turista nunca encontrará, no sudeste da França, na Provença; na Andaluzia, na província de Almeria e em Huelva; e no Rif, no Marrocos, regiões de clima mediterrâneo, propícias à produção agrícola – frutas e legumes – fora de estação.

Algumas décadas atrás, o consumidor europeu, situado majoritariamente em países temperados ou frios, caracterizados por estações bem definidas, contentava-se com os legumes e frutas produzidos cada um na sua hora, que começava com a primavera. O saber do produtor e sua localização, que o beneficiava com micro-climas ou com facilidades de transportes, faziam com que conseguisse se antecipar a produção. Ervilhas, morangos ou batatas chegavam ao mercado e ao consumidor endinheirado com dias ou semanas de antecedência ao mercado. Fruto de um conjunto de fatores analisados ao longo do livro, essa tendência explodiu. O consumidor espera agora encontrar a sua disposição nas gôndolas do seu supermercado frutas e legumes na maior parte do ano e, até mesmo, no inverno.

A centenas e mesmo milhares de quilômetros deste consumidor, o autor nos faz encontrar os artífices desse luxo: homens, vindo em particular de Marrocos, mas também da Tunísia, do Mali, da Costa do Marfim e outros países da África negra; mulheres do Marrocos e, da Europa do Leste, polonesas, búlgaras, romenas; e, mais recentemente, latino-americanos, em particular colombianos e equatorianos. Com persistência, Patrick Herman levanta o véu que os mantém numa cômoda invisibilidade. Quem gostaria de ser reconhecido como Senhor de escravos ou cúmplice da moderna escravidão?

O que caracteriza a sua situação, da sobre-exploração do trabalho ao trabalho escravo? São empregos sazonais. Mesmo quando estes se transformam em trabalho permanente ou semipermanente, mantém-se a ficção da sazonalidade, para manter o trabalhador em situação precária, o que facilita a sua docilidade. Pois, é como aqui com os cortadores de cana vindos do Maranhão ou do Jequitinhonha ou os desbravadores da Amazônia, pois lhes parece melhor aceitar condições sub-humanas de vida e de trabalho do que voltar ao seu país.

O leitor brasileiro, a par minimamente do que acontece no Brasil, não demora em se sentir em terreno conhecido. Os contratos de trabalho não são respeitados: roubo das horas trabalhadas, horas extras não pagas, trabalho sem dias de descanso, retenção abusiva sobre o salário para alojamento, comida; ferramentas a serem compradas pelo trabalhador etc. Predominam segregação habitacional, condições de moradia indignas, falta de acesso à água potável, falta de equipamentos para proteção contra os pesticidas, vigilância armada, não declaração dos acidentes, não reconhecimento das doenças. Há retenção de passaporte, devolvido somente no fim da colheita e mesmo empréstimo de trabalhador por um patrão a outro, mediante “certificado de liberdade”. Se o trabalhador se endividou com o patrão, pagou somas importantes que endividaram sua família na sua terra natal; isto o mantém preso a seu contrato e a seu patrão mais seguramente do que se fossem grilhões. Enfim, o autor menciona que jovens mulheres da Europa do Leste, escolhidas por sua aparência (jovens e bonitas), são presas fáceis para a prostituição.

Embora a mídia atraia a nossa atenção sobre a imigração clandestina através do mundo, a maioria desses trabalhadores e trabalhadoras chega com contratos oficiais. Na realidade, esses contratos assumem a precariedade do seu estatuto. São marcadas as diferenças com os direitos trabalhistas e sociais dos trabalhadores franceses ou espanhóis. O autor e os estudiosos, que cita, falam de “exclusão jurídica”. Os trabalhadores migrantes vêem-se presos num emaranhado de normas e leis que reforçam essa exclusão. Entre eles e elas, há muitos ilegais, ou porque seu contrato terminou ou porque chegaram como clandestinos. Essa situação de abundância da oferta de mão de obra interessa aos patrões e se beneficia da cumplicidade do poder público.

Num episódio que nos remete ao assassinato até hoje impune de inspetores do trabalho em Minas Gerais, o autor nos relata o fuzilamento, em 2004, de dois inspetores, sendo uma inspetora do Trabalho, realizado por um produtor, na França. Na ocasião, o ministro da agricultura francês evocou “as dificuldades extremas do mundo agrícola”, o que seria uma circunstância atenuante. Ao longo do livro, o autor ressalta a cumplicidade do poder público com a situação de escravidão ou semi-escravidão dos migrantes, o que, mais uma vez, nos lembro do “corpo mole” do governo frente ao escândalo da não aprovação da lei que desapropriaria os fazendeiros culpados de usar trabalho escravo. Os eleitos localmente representam os interesses dessa agricultura e atuam mancomunados com os lobbies dos produtores. Eles não hesitam em ameaçar publicamente – e com sucesso – de ações violentas o poder público. Este retribui com ajudas e facilidades a essa agricultura industrial. Ironia e hipocrisia: a vinda de trabalhadoras da Europa do Leste permitiu na Espanha que a União Européia atribuísse subvenções para a “gestão ética da imigração sazonal”!

Como se chegou a essa situação? O autor desmonta a lógica da acumulação capitalista no campo a partir dos anos 60 e 70, com a promoção do mercado global, sob a lei férrea de Planos de ajuste estrutural. A agricultura se moderniza. “Mecanização, intensificação do modo de produção, aumento do tamanho das propriedades”, especialização das produções voltadas não mais para o abastecimento local, mas para o mercado regional ou mundial levam à hemorragia do campo e à substituição do camponês pelo empresário rural, seja pessoa física ou empresa. Vale notar que no caso dos produtores de Almeria, mantiveram-se os produtores familiares, especializando-se e conseguindo se desenvolver às custas primeiramente da exploração da mão de obra familiar, e, posteriormente, graças aos imigrantes. A melhoria das técnicas de circulação da informação e do transporte e a multiplicação dos supermercados facilitaram o consumo de frutas e legumes não produzidos localmente.

Paralelamente, a concentração na distribuição (o autor sublinha que 5 grupos de distribuição controlam a venda de mais de 90% dos produtos de grande consumo na França), junto com o peso das grandes redes de supermercados forçam a “diminuição constante dos preços pagos ao produtor  e o esmagamento dos salários dos operários agrícolas”. As áreas de produção na Europa mediterrânea (Itália, França e Espanha) entram em concorrência não só entre elas, mas com os países da África do Norte e até com a América Latina. Na produção agrícola industrial, como na indústria, a deslocalização faz parte do jogo do mercado.

No Marrocos, visitado pelo autor em busca das origens dos imigrantes , trata-se de “ter desempregados de menos e divisas a mais”. Em 1983, sob a pressão do FMI e do Banco Mundial, o Marrocos inicia um Plano de Ajuste Estrutural: prioridade à exportação e abertura dos mercados. A produção local não resiste ao trigo europeu e norte-americano. Os camponeses migram em massa para a cidade. O país perde a auto-suficiência alimentar. Consolida-se um desemprego maciço, não só no campo (é assim que ocorre nas estufas de Almeria; ao lado de camponeses, encontram-se agrônomos e licenciados em direito). Empresas espanholas se instalam, reproduzindo no Marrocos, o mesmo sistema de produção e  exploração da mão de obra.

A análise de Patrick Herman não é abstrata. Ele nos faz encontrar homens e mulheres, apesar do clima de violência e de ameaças que cerca os visitantes. Conhecemos com ele em particular duas mulheres: a marroquina Naïma, na Provença, e, em Almeria, Mercedes, espanhola que milita na defesa dos migrantes. Pois, se são poucos e poucas, há pessoas e algumas organizações, dos próprios migrantes ou que se colocam ao seu lado, numa luta sempre desigual. Violência e racismo permeiam as histórias de vida desses homens e mulheres, que estão à margem de qualquer estado de direito. O autor nos remete aos tempos do colonialismo, como nós aqui nos reportamos aos tempos da escravidão. E, com ele, podemos dizer que o capitalismo moderno se combina muito bem com os séculos passados. Mais do que isso, ele se perpetua porque incorpora esses tempos e produz neocolonialismo e uma nova escravidão.

Para terminar, vale mencionar a questão ambiental que permeia o livro. Este modelo de agricultura industrial é extremamente dependente de sementes industriais, de insumos químicos e de água. Os trabalhadores são as primeiras vítimas do uso de agrotóxicos. Como aqui, menciona-se o uso de produtos químicos proibidos; a pulverização, área ou manual, na hora da colheita; a não declaração de doenças devidas ao contato com esses produtos. Não são somente os e as trabalhadoras que são as vítimas desse sistema de produção. A água é preciosa nessas áreas já submetidas a um grande estresse hídrico. A exigência de agrotóxicos e de água cresce, preparando a decadência, e, mais do que isso, a contaminação e a desertificação futura das zonas de produção. Quanto aos consumidores, somente a propaganda, mentirosa, mas altamente eficiente, tanto a que promove, como aquela que esconde, e o boicote às alternativas, pode conseguir o objetivo de perpetuar esse tipo de agricultura.

É uma luta desigual. Mas contra a profunda injustiça ambiental e a negação dos direitos fundamentais, sofridos pelos novos escravos do capitalismo, e contra um sistema de produção, que vitima toda a sociedade, ergue-se como única alternativa a retomada do campo pelo campesinato e, com ele, de uma agricultura de proximidade com o consumidor, amistosa com o meio ambiente. Patrick Herman, ao falar da Europa, fala do Brasil, fala do mundo.

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