A reportagem é de Plínio Fraga e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 30-05-2010.
“Achei que não devia levar adiante”, afirma o juiz Jaílson Macedo de Freitas, 39. Em atividade no Campeonato Brasileiro deste ano, Jaílson reconhece que na Bahia é comum ouvir e falar expressões como “Qualé, negão?” para cumprimentar ou se referir carinhosamente a alguém como “pretinho” ou “neguinho”. Mas não teve dúvidas em relatar na súmula que o dirigente do Fluminense de Feira de Santana, negro como grande parte da Bahia, chamou-o de “negro preto” ao reclamar de sua arbitragem em partida de 2008.
“Ele teve intenção de ofender”, diz Jaílson. Sobre o porquê de não ir à Justiça, é seco: “Preferi me preservar. Podia ficar marcado”.
Somente 1 em cada 5 baianos se declara branco, fazendo da Bahia o Estado com o maior contingente de autodeclarados negros do país. É a terra natal de Gleidionor Figueiredo Pinto Junior, 23, conhecido como Junior Negrão, atacante que joga hoje no Figueirense, o clube mais tradicional de Santa Catarina, Estado em que, em cada 10 habitantes, somente 1 se declara não branco.
“Posso falar pouco disso. Nunca sofri nenhum tipo de preconceito racial. Isso é coisa do passado para quem tem a cabeça muito pequena em pleno século XXI. Na Bahia, é maior o costume de ver negros. Mas aqui nunca vi nenhum tipo de racismo. Santa Catarina é o Estado que mais tem branco, mas recebe bem os negros”, declara Junior.
“O EMOCIONAL”
Na obra clássica “O Negro no Futebol Brasileiro” (ed. Mauad), cuja primeira edição é de 1941, o jornalista Mario Filho (1908-66) relata uma frase que ouviu de Róbson, então jogador do Fluminense, para demonstrar um processo de embranqueci mento na ascensão social dos atletas: “Eu já fui preto e sei o que é isso”.
Quase 70 anos depois do lançamento do livro de Mario Filho, jogadores de futebol relatam uma suposta paz racial em campo, limitando às arquibancadas as expressões racistas.
“O torcedor às vezes xinga. Atrapalha, temos nossa vida pessoal. Chamar de preto, de macaco acaba atingindo o emocional da pessoa”, declara Edson Santos Reis, 20, atacante do Vitória da Bahia.
Mas o dia a dia do esporte ainda acolhe queixas graves. No mês passado, em jogo pela Copa do Brasil entre Palmeiras e Atlético-PR, o zagueiro Manoel, do time paranaense, acusou o também zagueiro Danilo, do clube paulista, de chamá-lo de “macaco” em partida disputada no Parque Antarctica.
“O Danilo cuspiu em mim e me chamou de macaco. Ser chamado de macaco é a pior coisa que tem”, disse o jogador do Atlético, que pisou no rival durante o segundo tempo da partida como forma de revidar. “Realmente pisei nele, porque estava muito chateado, e faria novamente. Confesso que pisei porque ele me chamou de macaco.”
Manoel prestou queixa em uma delegacia da capital paulista.
Em jogo de 2005 entre Juventude e Internacional pelo Campeonato Brasileiro, a cada vez que o volante Tinga, então no time colorado, pegava na bola, a torcida imitava um macaco.
A ação racista foi tão estridente que o jogo chegou a ser paralisado para que dirigentes do Juventude (Caxias do Sul) pedissem respeito à torcida. O clube foi multado em R$ 200 mil e perdeu o mando de campo por dois jogos.
O atacante Grafite, da seleção brasileira, protagonizou outro episódio de racismo em joga da Libertadores. Desábato, então jogador do argentino Quilmes, foi preso sob acusação de chamar Grafite de “macaco”.Em um jogo da seleção brasileira em São Paulo, o atacante voltou a ser alvo de preconceito. Torcedores brasileiros jogaram uma banana em campo com a inscrição: “Grafite macaco”.
No ano passado, em partida entre Cruzeiro e Grêmio, outra vez pela Libertadores, Elicarlos acusou o argentino Maxi López , que também foi levado para a delegacia, de tê-lo chamado de macaco.
“Uma coisa é a revolta da torcida, outra é a ofensa vir de algum outro jogador adversário. Nunca senti nenhum tipo de preconceito, mas a lei diz que é crime inafiançável. Sou a favor de ir à polícia”, diz Júnior Negrão.
O jogador conta que jogava em Manaus, em time que contava com outros dois jogadores chamados de Júnior. “Como eu era o mais escuro, virei Negrão. Mas, na Bahia, sou mais para moreno do que para negro”, relativiza ele. “Mas não me incomodo não.”
Entre os 70 jogadores atuais dos dois principais clubes baianos, Vitória e Bahia, a grande maioria é de morenos, mulatos e negros. O único loiro, o centroavante Júnior, do Vitória, pinta os cabelos.
No elenco dos dois principais clubes catarinenses, Avaí e Figueirense, aparecem brancos, louros, mas muitos morenos, mulatos e negros – apesar de a maioria destes últimos terem como origem outros Estados, em razão da peregrinação profissional própria da categoria.
DIFÍCIL DE COMBATER
Ex-jogador do Belenenses de Portugal, Júnior afirma que brasileiros em geral -não especificamente só negros- enfrentam mais problemas de discriminação em território europeu. “Se falar que é brasileiro no supermercado ou no banco, o tratamento não é igual não.”
O juiz Jaílson Macedo de Freitas afirma que, de modo geral, os “boleiros” o respeitam. “Em campo, jogador me chama de “professor”, “mestre”, “chefe”. Não me sinto discriminado não.”
Pelo último censo da Fifa, o Brasil tem 13,2 milhões de praticantes de futebol, sendo 2,14 milhões de atletas registrados. Não há uma contabilização por cor da pele. A CBF estima que o futebol movimente R$ 32 bilhões e alarga para 30 milhões o total de praticantes do esporte.
Entre os mais de 15 mil profissionais, 60% ganham até um salário mínimo e apenas 4% ganham mais de 20 salários mínimos.
Para o pesquisador Victor Andrade de Melo, coordenador do Laboratório de História do Esporte e Lazer da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o esporte é uma forma de ascensão social.
“Assim, os negros ascendem socialmente pelo esporte. O futebol não está além da sociedade, não está imune ao preconceito racial. Pode ser obliterado pelo racismo à brasileira, uma crença de que a miscigenação impede o racismo, o que na realidade só o deixa mais difícil de ser combatido”, declara.
O pesquisador questiona por que são raros os dirigentes negros no futebol. “Não é uma coincidência”, aponta, lembrando que os cartolas têm sua origem nas elites sociais e econômicas. “Todo torcedor xinga o juiz. Mas será que o torcedor xinga o juiz negro da mesma forma que o juiz branco?”, questiona.
Alguém já ouviu no estádio um torcedor gritar: “Juiz branco filho da puta” ou “Seu branco safado”?
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