Antropólogas e Procuradora do MPF divulgam direito de resposta ao artigo “A criação de Quilombos”

Antropólogas e Procuradora do MPF divulgam direito de resposta ao artigo de Denis Lerrer Rosenfield, “A criação de Quilombos”

As antropólogas Deborah Stucchi, Angela Maria Baptista, Kênia Cristina Martins Alves, Rebeca A Campos Ferreira e Maria Luiza Grabner, Procuradora Regional da República/Ministério Público Federal, produziram um texto resposta ao artigo de Denis Lerrer Rosenfield, “A criação de Quilombos”, publicado em 15 de fevereiro de 2010. O texto foi enviado ao Estadão para publicação, a título de direto de resposta, mas o jornal não fez a publicação. Vale a pena lembrar que Rosenfield tornou-se o porta-voz da campanha anti-quilombola desenvolvida pelo jornal O Globo.

Leia a resposta na íntegra a seguir:

O artigo de Denis Lerrer Rosenfield, denominado “A Criação de Quilombos”, publicado em 15 de fevereiro de 2010 no Estadão, expressa a perplexidade do autor frente ao processo de ressemantização do conceito de quilombo, acusando um grupo de antropólogos, com o apoio oficial do INCRA, da Fundação Cultural Palmares e da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, de agir “ideológica e politicamente” no sentido de produzir novas realidades e sujeitos políticos a partir da legitimação de identidades simbólicas construídas em base à  “suposta  comunidade de raça, religião e sentimentos”.

O texto é construído sob a lógica perversa que considera como única verdade válida aquela expressa no dicionário, segundo a qual o quilombo histórico corresponderia a uma realidade incontestável por ter sido “atestado”, “reconhecido”, “aceito” e “tornado válido” pela sociedade brasileira em suas instituições administrativas.

Segundo o autor do editorial, o verdadeiro e único quilombo existente no Brasil seria o quilombo histórico, aquele que é encontrado fossilizado, inerte e lembrado nos livros didáticos como símbolo da luta e da resistência de negros fugidos sublevados contra o sistema escravista brasileiro. Ainda, segundo o autor, seria esta a formação social a ser abrangida pelo artigo 68 do ADCT.

Em contraponto ao quilombo histórico, tido pelo autor como o “verdadeiro”, estaria o “quilombo conceitual”, falsamente construído por antropólogos como uma alegoria da realidade, produto da ressemantização de um termo criado para incluir na agenda das políticas de reconhecimento do Estado a mais ampla e variada gama de sujeitos que se autoatribuam quilombolas.

O autor alega inversão produzida conscientemente  pelos antropólogos com o único intuito de conferir a símbolos culturais e religiosos medidas em ares e hectares para forçar o reconhecimento do Estado e a implantação da nova reforma agrária baseada na raça.

São necessários alguns parágrafos para recolocar o debate em termos mais adequados.

Primeiro, é falsa a oposição criada pelo autor entre quilombo histórico e quilombo conceitual. Isso porque o significado das palavras – e das próprias instituições – se transforma com o tempo. É o caso do termo quilombo, que foi construído num contexto de dominação dos negros e que foi, ele mesmo, resultado dessa condição. Assim, o adjetivo “histórico” demarca que a percepção das autoridades, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, vislumbrava qualquer reunião mais ou menos estável de negros, necessariamente fugidos, composta por número variado de indivíduos, como perigo e risco às instituições, devendo ser aniquilada. Essa definição não dava e não dá conta de descrever um conjunto de situações diversificadas ocorridas no interior do sistema escravista brasileiro.

Inúmeras pesquisas realizadas por historiadores revelam que grupos formados majoritária mas não exclusivamente por negros, muitos escravizados, se organizavam dentro ou ao lado de grandes propriedades, em núcleos estáveis onde havia intensa vida social, econômica e religiosa, com manutenção de relações e laços com a sociedade escravista em vários aspectos. Podiam ser tolerados pelas autoridades por fornecer produtos agrícolas aos fazendeiros a preços competitivos ou ainda por manter alianças políticas ou familiares com a sociedade em geral.

É curioso perceber que alguns desses núcleos, que congregavam negros fugidos ou não, mantiveram-se colados a determinados espaços de referência, que se convencionou denominar territórios, já que nesses espaços puderam se reproduzir em torno de algumas gerações, mas também conseguiram preencher de sentido sua própria existência, considerando-se e sendo considerados como integrantes de grupos sociais diferenciados, portadores de identidades peculiares constituídas em base a uma origem comum.

Trata-se aqui de reconhecer a reprodução material e física, mas também cultural, simbólica e religiosa de certos grupos com existência contemporânea inequívoca. Portanto, não há que se falar em “metáfora” ou “produção propriamente simbólica” da realidade “seguida de existência”.  A existência atual desses grupos é condição prévia do reconhecimento por parte do Estado, não o inverso. É a partir da constatação da concretude desses grupos, como sujeitos de práticas sociais peculiares que compartilham um repertório de representações, que emana o reconhecimento do Estado que gera os direitos constitucionais mencionados.

As comunidades negras atualmente abrangidas por um conjunto de direitos territoriais e culturais são, portanto, a expressão viva e concreta do conceito, daí a necessidade de sua ressemantização. Não é o termo ressignificado que cria novas realidades, mas é a própria realidade que subsidia a ressemantização do conceito de quilombo.

Segundo, não são os antropólogos que se travestem de constituintes, mas o autor que se reveste de autoridade para, ao lançar mão da cultura de dicionário, esvaziar o sentido de uma realidade complexa e diversificada que emerge pela sua própria existência e capacidade de se manter e reproduzir.

A tarefa do antropólogo é descrever e revelar os mecanismos postos em ação pelo conjunto social vivo e concreto representado pelas comunidades negras, com suas práticas, símbolos e representações, tomando-se por base a autoatribuição e a autodefinição, simplesmente porque não se pode impor a ninguém a assunção de qualquer identidade. A autoatribuição e a autodefinição são o ponto de largada, não o ponto de chegada. Os relatos orais constituem-se apenas como uma das ferramentas consagradas pela boa pesquisa antropológica, havendo, além desta, um conjunto sofisticado de procedimentos de investigação capazes de colher, descrever e interpretar consistentemente dados de realidade. Não caberia aqui enumerá-los.

Terceiro, o termo quilombo corresponde a uma categoria jurídica cujo alcance remete a situações sociais concretas e diversas que têm por suposto comum o fato de terem sido geradas no interior de uma sociedade escravocrata, e que vão muito além dela, desafiando e atravessando os conceitos patrimonialistas de propriedade e de terra.

Por fim, as atuais comunidades que remanesceram de antigos quilombos estão vivas repletas de concretude, independentemente do reducionismo interpretativo de quem, ao denunciar ideologias, comete deslizes semânticos tais que o revelam nada mais que ideológico. É inescapável reconhecer que, apesar de certas interpretações baseadas na cultura de dicionário insistirem em negar a realidade, ela não deixa de existir.

3 de março de 2010.

Deborah Stucchi  – Antropóloga

Ângela Maria Baptista  – Antropóloga

Kênia Cristina Martins Alves  – Antropóloga

Rebeca A Campos Ferreira – Mestranda em Antropologia Social

Maria Luiza Grabner – Procuradora Regional da República/Ministério Público Federal

Fonte: Observatório Quilombola – http://www.koinonia.org.br/oq/noticias_detalhes.asp?cod_noticia=6299&tit=Not%C3%83%C2%ADcias

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