Nova legislação e política de cotas desencadeariam ascensão econômica e inclusão dos negros, diz professor Kabenguele Munanga

Bio por marcodede.

O racismo tal como ele se apresenta no Brasil tem diferentes facetas, entretanto, a mais cruel delas é aquilo que convencionou-se chamar de racismo cordial do brasileiro: todos sabem que o racismo existe mas ninguém se assume como racismo, é como se fosse algo que paira no ar. Numa tentativa história de reparação aos crimes racistas da sociedade Brasileira, os militantes negros conseguiram aprovar a lei 10639/03 no Ministério da Educação e também implemntaram com muita resistencia um sistema de quotas para alunos negros em universidades brasileiras. Esses avanços perigam terminar com a forte oposição da elite branca nacional. Kabenguele Munanga fornece-nos um quadro bem abrangente desta situação.

Até agora ausente das prateleiras de bibliotecas e das salas de aula, livros paradidáticos que levantam questões sobre o negro brasileiro sem reduzi-lo a objeto começam a aparecer. Se antes a temática não representava um mercado potencial para as editoras, a nova legislação já dá mostras de avanços concretos. Em vigor desde janeiro de 2003, a lei federal 10.639 torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as escolas de ensino fundamental e médio públicas e particulares.
O livro Para entender o negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas e caminhos (Global Editora/Ação Educativa) foi escrito pelo antropólogo Kabengele Munanga, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, e por Nilma Lino Gomes, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Voltado para Educação de Jovens e Adultos (antigo supletivo), a obra também está sendo usada em cursos de graduação de outras universidades.
Em entrevista ao USP Online, o professor Kabengele, que nasceu na República Democrática do Congo e leciona na USP desde 1980, conversou sobre a educação no Brasil, defendeu o sistema de cotas e apresentou algumas idéias de sua obra.
A aprovação da lei 10.639 ajuda a desconstruir o mito da democracia racial no Brasil?
Kabengele Munanga – A lei vem provar que o Brasil não era uma democracia racial, pois levou 115 anos para introduzir no ensino o estudo da matriz cultural africana. E ela não caiu do céu, mas é resultado da luta do movimento social negro. A nova lei tem tudo de positivo. Porém, é preciso que ela seja efetivamente implementada e que seja definido exatamente o conteúdo a ser ministrado. A África é um continente de 56 países e ilhas. A lei não disse que África e Brasil ensinar. Mas se não fosse a lei, ninguém se mobilizaria.
Como é o ensino da cultura afro-brasileira e africana na escola?
K. Munanga – A África que nós conhecemos é a do Tarzan, Simba Safári, Aids, fome, guerras, das tribos. Será que a África é só isso? Já viu algum livro didático mostrar que a África é o berço da humanidade, que as maiores civilizações se desenvolveram lá, que a civilização egípcia era negra? Nunca se viu na historiografia oficial, nos livros didáticos, os impérios e reinos africanos. A África é simplesmente tida como tribo. É isso o que a lei pretende corrigir. Além de introduzir a história da África no currículo, é uma nova história que será ensinada, em que a identidade africana e dos afro-descendentes é apresentada de maneira positiva.
O senhor explica que foi após a conferência de Berlim (1885) que se deu a passagem de uma imagem positiva do povo e continente africanos para uma negativa?
K. Munanga – Os primeiros viajantes na África, como os árabes, deixavam documentos sinceros sobre aquela sociedade, relatando as formas de organização política, expressão artística etc. Quando começou a colonização da África, essas memórias foram apagadas. Para se justificar a dominação através do discurso da Missão Civilizadora, foi preciso negar os atributos daquelas sociedades. Os livros escritos depois da colonização não trazem mais uma África autêntica, mas esteriotipada. É essa África que foi ensinada na historiografia oficial. Isso também tenta justificar a posição do negro na sociedade brasileira. O discurso é também um dispositivo de dominação, é ele que legitima a situação do “outro”, o nomeia. Não basta força militar, é preciso que o poder seja legitimado pelo discurso.
O senhor vê resquícios dos princípios da Missão Civilizadora em alguns trabalhos assistencialistas de organizações não-governamentais, que pretendem salvar o negro e pobre (já que no Brasil pobreza tem cor)?
K. Munanga – Seria uma injustiça dizer isso, pois não colaboro com ONGs e conheço muito pouco sobre elas. Parto do princípio de que muitas delas perceberam que o Estado não estava cumprindo suas obrigações. Nesse sentido, muitas organizações contribuíram com os países africanos, fazendo o que o governo não fazia no sistema de saúde e educação. Não creio que eles estavam fazendo isso com o espírito da Missão Colonizadora. Como membros da sociedade e conscientes das injustiças cometidas contra essas sociedades, eles acham que podem fazer algo, não cruzam os braços.
Qual a importância da Frente Negra Brasileira e do Teatro Experimental do Negro para a educação e inclusão dos negros?
K. Munanga – Foram tentativas. A Frente Negra Brasileira foi um movimento social fundado por uma elite negra dos anos 30. Ela foi a primeira a denunciar o mito da democracia racial, e só depois a academia foi estudá-lo. Aqueles negros colocaram o mesmo problema que hoje estamos colocando: a educação é um dos caminhos para poder integrar o negro no mercado de trabalho, no sistema de poder. A diferença é que os movimentos negros atuais, que surgiram em 1975, além de reivindicar a escola também querem que ela reconheça sua identidade, ensine a história e cultura dos negros africanos. Movimentos negros anteriores, como no caso específico da Frente Negra, queriam simplesmente se integrar na cultura dominante. Porém, ambos os movimentos lutam para que o negro faça parte do sistema educacional.
Quantos negros há na Universidade de São Paulo?
Como surgiu o debate sobre cotas?
K. Munanga – Chegou um momento em que movimentos sociais negros eles descobriram que o único caminho para garantir o acesso do negro à educação superior de boa qualidade era através de uma política pública, uma medida obrigatória. E se isso não for feito, se contar apenas com a boa vontade do cidadão, nada vai acontecer.
É claro que o sistema de cotas é uma experiência que já foi vivida por outros países do mundo. É o caso, por exemplo, dos EUA, onde os negros são cerca de 12% da população e, a partir das lutas pelos direitos cívicos nos anos 1960, uma parcela deles conquistou uma grande mobilidade social e econômica. Há uma classe média negra bastante notável, com intelectuais nas grandes universidades, médicos em grandes hospitais, engenheiros até na NASA. A experiência deles deu certo. Na Índia o governo também adotou a política das cotas para as castas dos “intocáveis” desde 1950, três anos após a independência do país.
Se essa política já existe em outros países, por que no Brasil ela tem um tom de novidade, como se não houvesse outras experiências em outros lugares?
K. Munanga – Justamente porque não há vontade política para mudar as coisas. Quantas coisas o Brasil copia dos Estados Unidos? Modelo econômico, ciência e tecnologia… Não copiam as cotas porque não querem. Muitos brasileiros ainda não acreditam na existência do racismo no Brasil. Eles acham que a questão é simplesmente econômica, de classes, ou uma questão social. Como se o machismo e a homofobia não fossem uma questão social. Todas as questões que tocam a vida do coletivo são sociais, mas o social não é algo abstrato, tem especificidade, tem endereço, sexo, religião, cor, idade, classe social.
Muitos acham que o caminho para corrigir as desigualdades sociais seria uma política universalista, baseada na melhoria da escola pública, o que tornaria todos os cidadãos brasileiros capazes de competir. Mas isso é um discurso para manter o status quo, porque enquanto se diz isso nada é feito. Não se esqueça que quando as escolas públicas no Brasil eram boas, os negros e pobres não tiveram acesso a ela. Havia uniformes caros e outros mecanismos que os excluíam. O pobre estudava nas escolas particulares, como foi o caso de José Corrêa Leite, um dos fundadores da Frente Negra Brasileira. Então não adianta dizer que basta melhorar o nível das escolas públicas. Mesmo porque isso significaria acabar com a clientela das escolas particulares, que possuem um forte lobby e não tem nenhum interesse em ver escola pública de boa qualidade.
Se o governo conseguisse fazer isso [melhorar a escola pública] seria ótimo. Mas a partir do momento em que pobres e ricos mandarem seus filhos para as escolas públicas, haverá outras formas de excluir o negro. O problema de cotas irá se colocar novamente.
Então haveria um círculo vicioso?
K. Munanga – Sim, mas há uma saída. Um aluno que entra pelas cotas e se forma, vai encontrar as mesmas barreiras do preconceito no mercado de trabalho. Mas a situação dele será diferente, pois ele terá sólida formação, que vai lhe abrir muitas portas. Ele certamente passará em um concurso público. E quando ele encontrar alguma porta fechada, saberá lutar por seus direitos, ou poderá ter emprego e dinheiro para contratar um advogado. É uma grande diferença. É como dizer que a sociedade deixou de ser machista. Não é verdade. A mulher está ocupando espaços públicos porque ela lutou e se capacitou. A competência abre muitas portas, embora muitas outras estejam fechadas. Como essa mulher também não tinha uma formação política, achava que seu lugar era na cozinha e na maternidade.
O senhor se refere às mulheres brancas?
K. Munanga – Sim, pois as mulheres negras são as maiores vítimas da discriminação. São duplamente discriminadas, enquanto mulheres e enquanto negras. Mas o acesso à educação propicia melhor conscientização e capacidade de lutar pelos seus direitos. Além do mais, a educação tem fator de multiplicação. Um jovem que foi para a escola, passou por uma boa universidade, tem consciência dos problemas da sociedade, não deixará seus filhos passarem pelo mesmo caminho. O acesso que ele tem a uma certa mobilidade social e ascensão econômica faz com que seus filhos possam estudar em uma boa escola. E ele pode também se tornar aquele referencial que o negro não tem.
O ProUni (Programa Universidade para Todos) teria os mesmos resultados que as cotas em universidades púbicas, no sentido de propiciar a conscientização política e ascensão econômica de pobres e negros?
K. Munanga – Creio que sim. Não sei como as escolas particulares trabalham as questões raciais, mas o aluno que entra pelo ProUni se informa sobre o programa e sabe porque está indo à universidade. Há faculdades particulares de qualidade. E todas têm o efeito multiplicador, tanto na educação dos filhos como na futura ascensão econômica deles. A expansão do ensino público leva tempo. Enquanto isso os jovens que terminaram o Ensino Médio não podem estudar? Graças ao ProUni, hoje se tem mais de 40 mil afro-descendentes que entraram nessas escolas particulares. Isso é um ganho.
Em seu livro e em outras obras, o senhor desconstrói o mito de um sistema escravista africano que justificaria e legitimaria as formas de escravidão que deram origem aos tráficos. Qual era o conceito de “escravo” na África antes dos tráficos liderados por europeus e árabes?
K. Munanga – Em primeiro lugar, a existência do chamado “escravo” não é razão para aceitar a escravidão. Em qualquer circunstância, a escravidão é uma instituição desumanizante e deve ser condenada. O homem nasce livre até que alguém o escravize. Portanto, o próprio conceito está errado. O correto é “escravizado”, não “escravo”. Não há uma categoria de escravo natural. Porém, esse conceito já está enraizado na literatura.
Em segundo lugar, o conceito de “escravo” vem de outra visão de mundo, diferente da africana. Como em outras sociedades, na África existia a categoria de cativos, que eram prisioneiros de guerra ou pessoas que cometiam algum delito na sociedade e eram levadas por outros grupos étnicos. Os homens trabalhavam como serventes dos reis, príncipes e guerreiros, enquanto as mulheres se tornavam esposas e reprodutoras das famílias reais. Todos os filhos dos cativos eram livres. Em outros casos, famílias penhoravam algum parente quando havia grandes calamidades. Esses parentes poderiam trabalhar em outras famílias temporariamente ou para sempre, caso sua família original não tivesse condições de adquiri-lo de volta. Em hipótese alguma havia um escravismo como sistema de produção, pois não era uma sociedade de acúmulo de capital, mas de subsistência.
Essa categoria de cativo africano foi traduzida como escravo. Mas não o é, pois o sistema escravista pressupõe que os escravizados sejam bem mais numerosos que os senhores. No Brasil, até século XVII, os negros eram cerca de 70% da população. Em compensação, algumas sociedades africanas não queriam nem guardar o cativo, achavam que ele não servia para nada. Por isso alguns eram enterrados vivos com reis, para servi-lo no outro mundo. Muitos reis e príncipes colaboraram com o tráfico negreiro para outros continentes, capturando negros de outros grupos étnicos para vendê-los como escravizados. Mas este fato também não justifica a escravidão.
Quando se fala de escravidão na África só se pensa no tráfico liderado pelos europeus. E a responsabilidade árabe com a escravidão através das rotas oriental e transaariana?
K. Munanga – Não se fala sobre isso porque a escravidão liderada pelos árabes é anterior à européia. Começou no século VI e terminou no século XX. Os escravizados foram deportados para os países do Oriente Médio. Talvez não se fale muito porque não se vê tantos negros mestiços nos países árabes como se vê nas Américas. Isso porque era freqüente a castração dos negros, muitos trabalhavam como eunucos. Apesar de as mulheres servirem como concubinas nos haréns, a taxa de mortalidade dos negros era alta. Inclusive quando as pessoas dizem que o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão, não é verdade. A Arábia Saudita a aboliu em 1962. É uma história que ninguém conhece.
*Kabenguele Munanda é professor da Universidade de São Paulo, Brasil, e um ativista pelas discussões das quotas raciais no Brasil. Texto primeiro apareceu no portal de notícias da Usp.
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Até agora ausente das prateleiras de bibliotecas e das salas de aula, livros paradidáticos que levantam questões sobre o negro brasileiro sem reduzi-lo a objeto começam a aparecer. Se antes a temática não representava um mercado potencial para as editoras, a nova legislação já dá mostras de avanços concretos. Em vigor desde janeiro de 2003, a lei federal 10.639 torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as escolas de ensino fundamental e médio públicas e particulares.

O livro Para entender o negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas e caminhos (Global Editora/Ação Educativa) foi escrito pelo antropólogo Kabengele Munanga, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, e por Nilma Lino Gomes, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Voltado para Educação de Jovens e Adultos (antigo supletivo), a obra também está sendo usada em cursos de graduação de outras universidades.

Em entrevista ao USP Online, o professor Kabengele, que nasceu na República Democrática do Congo e leciona na USP desde 1980, conversou sobre a educação no Brasil, defendeu o sistema de cotas e apresentou algumas idéias de sua obra. (mais…)

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Uma história (real) de pescador

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Principal líder de resistência à instalação da empresa TKCSA na baía de Sepetiba, no Rio, o cadeirante Luís Carlos vive há um ano escondido, sob ameaça de morte

Texto de Gilka Resende (RJ) para Brasil de Fato

Refugiado em seu próprio país. Assim se sente Luís Carlos de Oliveira, de 59 anos. Este pescador não vê a mãe, o pai, irmãos e filhos há exatamente um ano. Longe do local onde nasceu, cresceu e começou a exercer sua profissão, ainda aos nove anos, ele tenta se fortalecer e fugir da solidão tomando nota de pensamentos em um caderninho.
“A vida parece uma pista de corrida cheia de desejos e obstáculos. Basta ultrapassá-los. Nunca fui muito de escrever, mas agora tenho sentido vontade. É importante registrar a luta contra os desmandos dessa empresa”, conta, referindo-se à ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), cuja construção na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro, vem afetando seriamente o meio ambiente e a comunidade local, segundo movimentos sociais da região.
Sair de Jesuítas, no bairro Santa Cruz, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, não foi uma escolha, mas sim uma imposição do atual modelo de desenvolvimento implantado no país. Desde o início das obras da TKSCA, ele e outros pescadores foram responsáveis por motivar a população local a reivindicar seus direitos.
Ameaça de morte
À frente da Associação dos Pescadores dos Cantos dos Rios (Apescari), Luís Carlos organizou manifestações no mar e na porta da transnacional.  Com as denúncias sobre o envolvimento de milicianos na segurança da empresa, a devastação ambiental e o uso privado de locais que eram excelentes viveiros de pesca, o pescador passou a ser ameaçado de morte.
A coerção, que primeiro era feita cotidianamente por telefone, passou a ser presencial. Certa vez, ao sair de casa, um carro encostou-se no dele, o vidro baixou e lhe mostraram uma arma. “Senti como um aviso de morte e tive que sair de casa de vez. Depois que fui embora, eles foram até a minha casa três vezes, perguntaram por mim no entorno. Chegaram a entrar e queimar roupas no quintal. O preço de enfrentar a destruição que essa empresa trouxe tem sido muito alto. Com certeza esse é o maior obstáculo que eu já enfrentei na vida”, admite, com a voz embargada.
Emoção e coragem são características bem perceptíveis neste pescador, que precisa usar cadeira de rodas para se locomover. As pernas secas por uma paralisia infantil, adquirida aos dois anos, nunca o impediram de levar uma vida de conquistas, mesmo com tanto sofrimento. Esteve internado dos sete aos 12 anos e teve que estudar no hospital.
Mas ele não traz à memória apenas lembranças tristes da juventude. Imagens de uma baía de Sepetiba farta e bonita não faltam. “Quando era pequeno, o médico me recomendou passar a lama medicinal do mangue e das praias nas pernas. Ficava de lama até a cintura. Era ótimo, muito bom para circulação. Agora está tudo contaminado de metal pesado, tudo sujo, os peixes estão mais uma vez morrendo”, compara.
Proteção federal
Hoje, Luís Carlos faz parte do Programa Federal de Defensores dos Direitos Humanos, que, além de um local seguro de moradia, disponibilizou um salário mínimo para sua sobrevivência. “Eu mando todo o dinheiro do Programa para a minha família. Por ser cadeirante, também recebo um salário mínimo pela Previdência. É com ele que tenho vivido, já que ainda não consegui reestruturar minha vida”.
Antes de ter sua atividade econômica totalmente inviabilizada com a chegada da empresa, o pescador chegou a obter, apenas com a pesca, renda de cinco salários mínimos. O barco de trabalho, construído por ele mesmo com a ajuda de um companheiro de profissão, hoje está danificado. “Fora da baía meu barco rachou, não serve mais. Gostaria de conseguir um novo, arrumar outro local para poder pescar. Não gostaria de ficar por muito mais tempo nessa situação. Foi com trabalho que consegui tudo na vida”, conta.
Invisível
O desrespeito aos modos de vida dos pescadores dentro de seu próprio país deixa Luís Carlos inconformado. Mesmo tendo participado de audiências públicas no Rio e em Brasília, mandado cartas ao Ministério Público e conversado com jornalistas de grandes meios de comunicação, suas denúncias contra a empresa nunca ganharam a devida visibilidade.
“O que se passa na baía de Sepetiba foi parar nos jornais da Alemanha. Tive mais voz no parlamento alemão do que no brasileiro. Já fui duas vezes a Brasília, tentei falar com o presidente Lula e ele nunca me recebeu. Tentei falar com o ministro da Pesca e mandaram o secretário conversar comigo. Pedi que olhassem para a baía de Sepetiba, para a população que vai ficar doente com tanta poluição. Nada aconteceu”, relata.
Luís Carlos acredita que não mais poderá voltar a viver em Santa Cruz. Longe da baía de Sepetiba, sente saudade de sua rotina: levantar todos os dias às cinco da manhã, sair para pescar e voltar apenas no final da tarde com o barco cheio de tainhas, corvinas, pescadas, guaibiras e piraúnas. A diferença entre esta e as outras histórias de pescador é que ela não é engraçada, não possui floreios ou traços de ficção. Quem dera tivesse.

Refugiado em seu próprio país. Assim se sente Luís Carlos de Oliveira, de 59 anos. Este pescador não vê a mãe, o pai, irmãos e filhos há exatamente um ano. Longe do local onde nasceu, cresceu e começou a exercer sua profissão, ainda aos nove anos, ele tenta se fortalecer e fugir da solidão tomando nota de pensamentos em um caderninho.

“A vida parece uma pista de corrida cheia de desejos e obstáculos. Basta ultrapassá-los. Nunca fui muito de escrever, mas agora tenho sentido vontade. É importante registrar a luta contra os desmandos dessa empresa”, conta, referindo-se à ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), cuja construção na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro, vem afetando seriamente o meio ambiente e a comunidade local, segundo movimentos sociais da região. (mais…)

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La situación del racismo en el Perú

(Texto extraído de palestra de Valeska Ruiz, da ONG peruana Coordinadora Nacional de Derechos Humanos, realizada no Museu Afroperuano de Zaña e enviada pela autora)

Sobre la situación del racismo en el Perú:

La publicación El mundo indígena 20094 muestra como novedad la estadística en la entrega de los resultados del II Censo de Comunidades Indígenas, realizado en 1 786 comunidades amazónicas en el año 2007, el cual recogió información sobre 51 etnias de las 60 existentes en la selva. En el documento se informa que no se empadronó a nueve de ellas “debido a que algunas etnias ya no conforman comunidades al ser absorbidas por otros pueblos, además de existir etnias que, por su situación, es muy difícil llegar a ellas”. Se registra una población indígena amazónica de 332 975 habitantes, en su mayoría perteneciente a los pueblos Ashaninka (26,6%) y Awajún (16,6%).

El 47,5% es menor de 15 años y un 46,5% no cuenta con ningún tipo de seguro de salud. El 19,4% de la población indígena amazónica declaró no saber leer ni escribir pero, en el caso de las mujeres, este índice se eleva al 28,1% en un grupo humano donde solo el 47,3% de la población de 15 o más años de edad cursó algún grado de educación primaria. Por otro lado, el Censo registra que 3 360 331 personas aprendieron a hablar en la lengua quechua y 443 248 lo hicieron en lengua aymara, lenguas indígenas predominantes en el área costa–andes del Perú, país que ha suscrito y ratificado el Convenio sobre Pueblos Indígenas 169 de la OIT.

Sobre la población afrodescendiente, en términos reales, no existen datos estadísticos oficiales relevantes. Para el Estado peruano, la población afrodescendiente está invisibilizada, mucho más aun que la población indígena; no forma parte de la historia oficial del país y es representada desde una perspectiva exótica o folclorizada. Se ha obtenido la información sobre la real problemática afro de organizaciones que justamente trabajan atendiendo y promoviendo los derechos específicos de esta población, como el Centro de Desarrollo Étnico-CEDET, Makungu para el Desarrollo y el Centro de Estudios y Promoción Afroperuana, los mismos que fueron recogidos para el informe alternativo ante el Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial-CERD de las Naciones Unidas, sobre el cumplimiento del Estado peruano en la implementación del Convenio. (mais…)

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”Um governo que se preocupa com seus cidadãos nunca deveria apoiar Belo Monte”, diz ambientalista

Na semana passada, 140 entidades, dos quatro cantos do planeta, redigiram uma carta, endereçada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para lembrar o governante de uma promessa feita por ele, em julho de 2009, a lideranças indígenas e ribeirinhas da região possivelmente afetada pela hidrelétrica de Belo Monte, prevista para o Rio Xingu, no Pará. “Belo Monte não será forçada goela abaixo de ninguém”, disse Lula na ocasião.
Porém, mesmo após manifestações da população do entorno do rio Xingu, contrárias à obra, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu licença ambiental prévia ao empreendimento, que já tem até a data do seu leilão, agendado para 20 de abril.
Diante disso, a carta assinada por entidades da sociedade civil em defesa de direitos humanos, indígenas e ambientais, entre outros, que serão desrespeitados com a construção da usina, faz oposição ao projeto e propõe alternativas de desenvolvimento energético ao Brasil.
O coordenador do Programa do país da Amazon Watch, uma das organizações signatárias do documento, Christian Poirier, concedeu entrevista exclusiva ao site Amazonia.org.br, em que fala sobre a iniciativa e o retorno esperado para essa campanha.
A entrevista é de Fabíola Munhoz e publicada por Amazonia.org.br, 22-03-2010.
Eis a entrevista.
De quem partiu a ideia de redigir esta carta de oposição a Belo Monte?
A ideia da carta veio não só da Amazon Watch, mas de uma rede de organizações internacionais.  Essa rede se formou para ajudar os brasileiros a salvar o rio Xingu e para parar a barragem desastrosa de Belo Monte.  Essas organizações são signatárias da carta e todas elas contribuíram com a sua redação.
A ideia da carta é expressar a nossa grande indignação com o governo do Lula e oferecer nossa solidariedade à sociedade civil brasileira, que está insistindo para que o empreendimento seja impedido devido aos riscos sociais, ambientais e econômicos que o projeto representa para a região amazônica.
Diante do fato de que já foi definida uma data para o leilão da usina, as organizações signatárias da carta ainda esperam uma resposta favorável de Lula?
Na verdade, a gente não tem essa esperança.  Acho que o anúncio do leilão é a indicação de que o governo está optando por ignorar não somente a nossa carta, mas muitas outras da sociedade brasileira.  O governo brasileiro é a favor de forçar esse projeto goela abaixo de todos nós, especialmente as comunidades que serão afetadas no rio Xingu.  Então, vendo que a data do leilão saiu, não temos essa esperança.
Então, qual é o retorno esperado para esta iniciativa?
Primeiro, queremos dizer ao governo do Brasil que estamos trabalhando em conjunto com outros grupos brasileiros para lutar firmemente contra esse projeto. Estamos conscientes de que o governo Lula é sensível a sua imagem no exterior e queremos deixar claro que essa imagem sofrerá se ele insistir em apoiar o projeto. Também, com isso, queremos chamar outros apoiadores a esse movimento de oposição a Belo Monte.
Para as organizações que assinaram a carta contra Belo Monte, por que o projeto não deve ser apoiado pelo governo brasileiro?
Existem muitas razões. Um governo que se preocupa com os direitos de seus cidadãos, sustentabilidade financeira e energia limpa renovável nunca deveria apoiar um projeto tão irresponsável.  Os povos indígenas, ribeirinhos, e também a população urbana de Altamira (PA) foram excluídos das audiências públicas e do debate sobre Belo Monte. Os direitos dos povos indígenas também foram desrespeitados, em relação à Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], da qual o Brasil é signatário, que garante aos povos indígenas uma consulta livre prévia e informada com relação aos projetos de desenvolvimento que os impactarão.
Também, em especial, o desvio da Volta Grande do Xingu, de maneira nenhuma, pode ser compensado pela energia que Belo Monte vai produzir. O desvio do fluxo do rio Xingu, da Volta Grade, deixaria sem água comunidades indígenas e tradicionais, numa extensão de 100 km.
Além disso, o Brasil pretende financiar 80% de Belo Monte com recursos brasileiros, e essa intenção é muito irresponsável.  Esse é um projeto muito arriscado, de viabilidade técnica e econômica duvidosa, e, por meio desse financiamento, o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] dará subsídio, com dinheiro público, a um projeto de interesse público questionável. Belo Monte não é só um problema para a população do Xingu, mas também um péssimo investimento para o Brasil.  E, finalmente, isso tudo está acontecendo quando existem alternativas, como a eficiência energética e fontes renováveis de energia, como, por exemplo, a eólica e a solar.
Pode-se dizer que Lula tem hoje pouco poder de decisão quanto à realização desses empreendimentos, ditados, em sua maioria, por empresas que financiaram as campanhas eleitorais do presidente?
Eu compartilho essa opinião, que é também a da maioria dos meus colegas brasileiros.  É claro que Belo Monte está sendo empurrada para encaixar um calendário político num ano eleitoral, a fim de solidificar o apoio econômico de um grupo de companhias incrivelmente bem financiadas no setor de energia, construção e mineração.  Essa é sem dúvida uma tentativa de reforçar o apoio econômico a Dilma Roussef, a mãe do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento], do qual Belo Monte é o maior projeto.
E como as organizações ambientalistas podem enfrentar esse cenário?
Temos várias estratégias para tratar esse contexto.  A Amazon Watch, como parte de uma rede de organizações internacionais, pode ter ações junto às empresas internacionais que buscam se envolver em Belo Monte.  Podemos fazer campanhas de responsabilidade corporativa para atacar empresas possivelmente interessadas em Belo Monte, como a norte-americana Alcoa, a francesa Suez – que está construindo Jirau, no rio Madeira -, e também os bancos privados internacionais que queiram financiar o projeto.  Outra estratégia é levar o questionamento de toda a imagem do PAC e também de Dilma, não somente ao Brasil, mas também ao mundo inteiro, em ano eleitoral, quando vai ter muito mais interesse no Brasil do que em qualquer outro ano.
Vamos questionar o PAC porque Belo Monte contraria totalmente a imagem de desenvolvimento sustentável e benefícios sociais com que o plano se compromete.  Também tem outras estratégias judiciais que estamos tentando apoiar, como a ações legais na OEA [Organização dos Estados Americanos] e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e organizar protestos em várias cidades do mundo para mostrar ao governo e às empresas que procuram construir Belo Monte que a nossa organização se opõe a esse projeto.  Queremos mostrar que haverá um custo alto a ser pago pelo governo e por essas empresas se eles continuarem com o projeto de Belo Monte.
Num momento em que já se formam os consórcios que irão participar do leilão de Belo Monte, ainda há expectativa de que as empresas interessadas na obra sejam influenciadas por esse tipo de campanha?
Acho que as empresas têm preocupação com suas imagens.  A Alcoa, por exemplo, tem toda uma campanha de sustentabilidade ambiental e social. A gente poderia atacar essa imagem facilmente, mostrando ao povo internacional que ela está contrariando sua imagem, com a participação em Belo Monte, e assim estamos fazendo com a Suez. E pretendemos fazer isso também com bancos privados.  Acho que essas companhias têm medo desse tipo de campanha, e podemos lograr algum efeito com isso.  Podemos influenciar as empresas internacionais. Quanto às companhias do Brasil, para fazermos esse tipo de campanha, é mais difícil.  Não é nosso papel fazer isso.  Isso é para nossos parceiros do Brasil, que estamos apoiando.
A carta diz que houve pouca participação popular nas audiências públicas sobre Belo Monte.  Que outro tipo de discussão sobre o projeto as organizações que assinaram o documento defendem?
Defendemos outra maneira de debate. Durante minha experiência na Volta Grande do Xingu, quando fui falar com as pessoas que sofreriam impactos com Belo Monte, percebi que eles foram excluídos de qualquer decisão e de informações sobre o projeto. As pessoas simplesmente não sabem o que virá com a obra e como serão afetadas. Para um projeto dessa dimensão avançar, é preciso ter muito mais participação do público, bem antes de qualquer licença ambiental prévia ou edital para o leilão.  A mobilização que a população próxima ao Xingu está fazendo agora tem como objetivo pedir mais discussão com o governo e a sociedade brasileira. Essa é a única maneira de sermos ouvidos e mostrarmos todos os problemas com o empreendimento, para tentar impedi-los.
O governo respondeu a carta até o momento?
Não houve resposta do governo para a carta e não estamos esperando realmente.  Tenho a impressão de que o governo não está preocupado com as críticas a Belo Monte e também a outros projetos, como as usinas do Madeira.  Eles estão se comportando de uma maneira criminal, em minha opinião, quando se ausentam do debate com o público brasileiro e também com o internacional.
Eu gostei do fato de que a carta está sendo bem recebida por nossos parceiros no Brasil. Teria gostado de uma resposta do governo brasileiro, mas não esperávamos esse diálogo porque vemos que, se ele não tem compromisso com seu próprio povo, como é que vai ter compromisso com os estrangeiros?  Eu gostaria que essas ações dos grupos brasileiros e internacionais influenciassem o governo brasileiro, mas, na verdade, acho que essa carta terá mais impacto para fortalecer a campanha já existente contra Belo Monte.
Já não era esperada uma resposta formal do governo Lula.  Mas, esperamos que haja uma resposta mais sutil do governo, no sentido de se revisarem os planos deles e as alternativas de desenvolvimento, ou do dito desenvolvimento. Com a carta, estamos não só dizendo que somos contra o projeto, mas também propomos alternativas. Não é papel das organizações internacionais dizerem aos brasileiros que não podem se desenvolver do jeito deles, mas estamos em solidariedade com os grupos do Brasil que não aceitam esse tipo de desenvolvimento desastroso, que está acabando com rios e povos. Estamos aqui para apoiar a luta dos brasileiros.

Na semana passada, 140 entidades, dos quatro cantos do planeta, redigiram uma carta, endereçada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para lembrar o governante de uma promessa feita por ele, em julho de 2009, a lideranças indígenas e ribeirinhas da região possivelmente afetada pela hidrelétrica de Belo Monte, prevista para o Rio Xingu, no Pará. “Belo Monte não será forçada goela abaixo de ninguém”, disse Lula na ocasião.

Porém, mesmo após manifestações da população do entorno do rio Xingu, contrárias à obra, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu licença ambiental prévia ao empreendimento, que já tem até a data do seu leilão, agendado para 20 de abril.

Diante disso, a carta assinada por entidades da sociedade civil em defesa de direitos humanos, indígenas e ambientais, entre outros, que serão desrespeitados com a construção da usina, faz oposição ao projeto e propõe alternativas de desenvolvimento energético ao Brasil.

O coordenador do Programa do país da Amazon Watch, uma das organizações signatárias do documento, Christian Poirier, concedeu entrevista exclusiva ao site Amazonia.org.br, em que fala sobre a iniciativa e o retorno esperado para essa campanha. A entrevista é de Fabíola Munhoz e publicada por Amazonia.org.br, 22-03-2010. (mais…)

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A privatização da água nega o direito humano de ter acesso a ela. Entrevista especial com Riccardo Petrella

Na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, Riccardo Petrella  italiano radicado na Bélgica, analisa o problema da água no mundo. Antes de refletir sobre a “crise da água”, ele enfatiza que “a rarefação da água, da qual atualmente todo o mundo não pára de falar, não é uma rarefação da quantidade de água em si”, isso porque a quantidade de água doce que temos hoje é a mesma de 200 milhões de anos atrás“. A rarefação é antes uma rarefação da qualidade de água para usos humanos em condições técnicas, econômicas e sócio/políticas ‘abordáveis’ e aceitáveis”, disse.
Além da questão da qualidade da água, Petrella refletiu sobre problemas como a privatização da água, saneamento básico e Copenhague. “O direito à água para todos se confirma não ser uma prioridade principal das classes dirigentes mundiais. Sua prioridade é saber quem vai ganhar, no decurso dos próximos 15 anos, a batalha para a conquista e a supremacia do mercado de um bilhão de novos carros ‘verdes’, bem como aquela das novas moradias ‘verdes’”, afirmou.
Riccardo Petrella nasceu na Itália, mas hoje vive na Bélgica. É economista e cientista político, e já esteve diversas vezes no Brasil, inclusive, a convite do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, duas vezes na Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como avalia, de maneira mais geral, a qualidade da água no mundo?
Riccardo Petrella – No que se refere à água doce acessível e utilizável para usos humanos, a qualidade da água continua a se deteriorar. Isso ocorre mesmo depois dos dirigentes do mundo inteiro tomarem consciência, pelo fim dos anos 1960 e começo dos anos 1970, da amplitude e da gravidade dos problemas da água. Na verdade, a rarefação da água, da qual atualmente todo o mundo não pára de falar, não é uma rarefação da quantidade de água em si (a quantidade da água doce sobre a terra não muda. Ela é a mesma que aquela de 200 milhões de anos atrás, como ela será a mesma daqui a 100 milhões de anos ou mais). A rarefação é antes uma rarefação da qualidade de água para usos humanos em condições técnicas, econômicas e sócio/políticas ‘abordáveis’ e aceitáveis.
As razões do agravamento do estado qualitativo da água são múltiplas e variadas. As principais são as retiradas ou extrações excessivas e os fenômenos de contaminação e de poluição. É preciso considerar, além disso, a má gestão dos solos e das bacias hidrográficas, notadamente transnacionais.
IHU On-Line – Qual é sua opinião sobre a privatização da água, considerando que ela deveria ser um bem público universal?
Riccardo Petrella – Eu sou contrário à privatização da água por duas razões principais: primeiro, porque ela se traduz pela mercantilização da água e, por conseguinte, pela mercantilização da vida. Assim, todo mundo reconhece que a água é sinônimo de vida, ou seja, “fonte” de vida. Ora, privatizar os serviços de água significa tratar a água como mercadoria, mesmo que determinados poderes públicos tentem dizer que se trata de uma mercadoria diferente das outras. A segunda razão que mostra que sou contrário é porque a privatização também implica na privatização do poder político, das decisões em matéria de salvaguarda da água, de seus usos e do direito à água. A água é um bem essencial e insubstituível à vida, e não se pode, por isso, confiar o poder de decisão a seu respeito a indivíduos privados.
É escandaloso pensar que a água possa ser fonte de lucro, e que os objetivos de rentabilidade financeira ditem as escolhas e as prioridades da gestão dela. Além disso, sendo a gestão da água necessariamente organizada sobre bases de monopólio natural, é inimaginável que o acesso à água possa gerar lucros.
No quadro da privatização, o acesso à água é subordinado ao poder de compra dos indivíduos e das organizações. Os seres humanos deixam de ser cidadãos para se tornarem consumidores e clientes de água. Ora, o acesso à água é e deve ser considerado e concretizado enquanto direito humano, a saber, um direito universal, indivisível e imprescritível. A sociedade, e as autoridades públicas em particular traem sua função e abandonam suas responsabilidades procedendo à privatização da água.
Opor-se à privatização não significa ignorar a existência dos custos que comporta pôr a água à disposição para os usos humanos vitais e a questão de sua cobertura e financiamento. Os custos, que são importantes, devem ser assumidos pela coletividade através dos processos fiscais gerais e específicos. O financiamento dos investimentos referentes a todo serviço público relativo à satisfação de um direito humano é de responsabilidade comum dos membros da comunidade, do nível local aos níveis nacional e internacional. Confiar tal financiamento ao consumidor para o pagamento de um preço é esvaziar de sentido o direito humano à vida e mudar a própria natureza da água.
No que se refere à água mineral engarrafada, convém denunciar a mistificação mundial operada no decurso dos últimos 30 anos. Por definição, a água mineral natural não é uma água potável, pois ela não pode ser tratada, mas deve ser engarrafada tal como ela sai da fonte, sob pena de perder suas características. Somente se pode reduzir ou acrescentar anidrido carbônico. Uma água potável é a que sofreu um tratamento que corresponde aos critérios (nacionais ou internacionais) de potabilidade. Por esta razão, as águas minerais naturais engarrafadas podem ser objeto unicamente de um uso temporário, descontínuo e específico, por sua relação a certas características em sais minerais que atribuem a essas águas propriedades para-terapêuticas.
Ora, uma vasta campanha publicitária conduzida nestas últimas décadas conseguiu fazer a opinião pública crer que a água mineral natural é melhor que a água da torneira, que é preciso beber água mineral para garantir melhor saúde, que as águas minerais engarrafadas são mais puras do que a água potável etc. Isso é estritamente falso. O sucesso das águas minerais naturais é devido principalmente à publicidade e a uma estratégia voluntarista de marketing da parte das companhias multinacionais das bebidas gasosas doces, que chegou a transformar as águas minerais num gigantesco mercado mundial muito sumarento.
Há também outra razão, de natureza socioeconômica, ligada ao fato que nossas sociedades se tornaram sistemas de altíssima mobilidade das pessoas. As garrafas de água mineral em plástico, em múltiplos formatos, têm sido uma resposta muito eficaz aos “imperativos” de um modo de vida muito móvel.
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios no mundo atual em relação à questão do saneamento básico?
Riccardo Petrella – O principal desafio é, evidentemente, a saúde. Ainda hoje, uma das principais causas da mortalidade infantil no mundo é a ausência de água doce ou o recurso inevitável a uma água de má qualidade bioquímica, bem como a ausência de serviços higiênicos e sanitários adequados. É vergonhoso que 2,6 bilhões de seres humanos ainda não saibam o que é uma toalete ou um sanitário público. É inaceitável que, em 2010, haja 4900 crianças com menos de seis anos que morrem a cada dia no mundo por causa de doenças devidas especificamente à ausência de água e de serviços higiênicos.
O que é inaceitável, em particular, é que a mortalidade citada não é devida ao fato das crianças e mulheres habitarem em regiões onde a água esteja faltando. Isso também existe, mas a causa principal é representada pelo fato dessas pessoas serem pobres. O empobrecimento atual de amplas fatias das populações da África, da Ásia e da América Latina está na origem das desigualdades no acesso à água e, por conseguinte, à saúde e à vida.
É importante destacar que uma responsabilidade direta desse estado de coisas cabe também às classes dirigentes dos países dessas regiões, pois elas não utilizam nem os recursos financeiros limitados de que dispõem, nem os recursos naturais dos quais seus países são frequentemente muito ricos. Assim, os investimentos nas infraestruturas e serviços referentes ao tratamento das águas usadas e sua reciclagem são, de longe, inferiores àqueles destinados a manter ou reforçar seus poderes e seus privilégios no contexto de uma subordinação da economia do país aos interesses dos fortes poderes das empresas multinacionais e dos Estados ex ou neocolonizadores.
IHU On-Line – Em sua opinião, quem deveria cuidar da gestão do setor hídrico?
Riccardo Petrella – Permita-me, aqui, acrescentar algumas observações a propósito de um tema interessante, emblemático das ambiguidades e mistificações existentes em matéria de água, alimentadas pelos grupos sociais dominantes. Refiro-me ao conceito de PPP (Partilha Pública Privada) que, segundo esses grupos, devia representar o modelo ideal para conjugar harmoniosamente os objetivos, de um lado, do acesso à água para todos e o tratamento da água enquanto bem comum, e, de outro lado, de uma gestão eficaz e eficiente dos serviços de água no interesse dos prestadores e dos “consumidores”. Observe que o Banco Mundial assume o conceito de PPP desde 1993 e utiliza a obrigação de sua aplicação como condição da outorga de sua parte de empréstimos para o financiamento no domínio da água aos países do Sul.
A experiência demonstrou que o PPP se tornou, sobretudo, um instrumento de subordinação do desenvolvimento dos serviços de água aos imperativos de rentabilidade financeira das empresas multinacionais privadas estrangeiras – francesas e britânicas, notadamente – às quais a gestão da água tem sido confiada, após sua inserção no mercado em obediência ao princípio de liberalização dos serviços públicos imposta pelo Banco Mundial. De fato, o PPP se traduziu pela Privatização do Poder Político, verdadeiro apossamento do controle dos recursos naturais do país pelos grandes grupos industriais, comerciais e financeiros mundiais (chineses e indianos incluídos). Os numerosos casos recentes de abandono do PPP parecem indicar o fim da mistificação.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta o fato de Copenhague não ter debatido a questão da água?
Riccardo Petrella – A recusa de incluir a problemática da água nas negociações sobre o desenvolvimento e o meio ambiente iniciadas no Rio de Janeiro, em 1992 e, em particular, no quadro da United Nations Framework Convention on Climatic Change (UNFCCC) iniciada no Rio de Janeiro e aprovada em 1994, data deste período. Depois, não se conseguiu mais convencer os Estados fortes da ONU (EUA, China, França, UK, Alemanha, Canadá, Brasil, Egito, Japão, Rússia etc) de considerarem a água como parte integrante das negociações sobre o clima. Portanto, todos os trabalhos do Grupo intergovernamental de Estudo sobre o Clima (GIEC) puseram sistematicamente em evidência os elos fundamentais entre a mudança climática e a água, simultaneamente no que se refere às causas e efeitos da mudança climática.
A razão principal dessa recusa, a meu ver, é dupla. Primeiro, o direito à água para todos se confirma não ser uma prioridade principal das classes dirigentes mundiais. Sua prioridade é saber quem vai ganhar no decurso dos próximos 15 anos a batalha para a conquista e a supremacia do mercado de um bilhão de novos carros ‘verdes’, bem como aquela das novas moradias ‘verdes’ (de energia passiva e ativa).
Foi assim que, em Copenhague, ignorou-se totalmente a questão da necessária transformação profunda das enormes favelas onde estão “recolhidos” e “se depositam” centenas de milhões de seres humanos considerados como “rejeitos” e “matérias-primas produtivas” de preço vil.
Segundo, as classes dirigentes estão conscientes que, se introduzissem a água nas negociações sobre o clima, deveriam se engajar para operar transformações radicais da economia dominante e de seus modos de vida.
IHU On-Line – O senhor acredita que a água em penúria poderá vir a ser uma das principais causas de guerra no século 21?
Riccardo Petrella – Se os grupos sociais dominantes continuarem a aplicar os princípios políticos e a manter as escolhas econômicas fundamentais atuais, as “guerras” da água se tornarão frequentes e cada vez mais “mortíferas”. Não poderia ser de outra maneira na base da aplicação dos princípios de soberania nacional absoluta sobre os recursos hídricos e da segurança nacional no aprovisionamento de água, garantia da segurança alimentar, energética e econômica em geral do país.
Os cenários das guerras da água serão inevitáveis se as políticas de mitigação e de adaptação à mudança climática forem dominadas pelas estratégias de sobrevivência do “cada um por si”. Enfim, as guerras da água terão lugar se os grupos sociais dominantes continuarem a impor, no domínio da água e da vida, o paradigma econômico hoje dominante, mercadológico, produtivista e financeiramente utilitarista. Inversamente, as guerras da água não são nem inelutáveis nem inevitáveis se outra concepção da água e da vida se afirmar no decurso dos próximos 20 anos no sulco do paradigma de uma sociedade justa, durável e eficaz em escala mundial. Em suma, as guerras da água só terão lugar se nossas classes dirigentes o quiserem.
IHU On-Line – Como vai o trabalho do Contrato Mundial da Água? Quais são os principais avanços e objetivos a serem obtidos?
Riccardo Petrella – Os trabalhos que conduziram à criação, em 1997, do Comitê Internacional para o Contrato Mundial da Água remontam aos anos de 1994-95 em torno da reação do “Manifesto da Água. Por um Contrato Mundial”. Uma das principais contribuições do Contrato Mundial da Água foi não somente o de ter contribuído, com outros grupos, associações e movimentos, à sensibilização e mobilização culturais sobre as questões da água, mas principalmente de ter feito sair a problemática da água do domínio da política ambiental para inscrevê-la principalmente no domínio da política da vida, do modelo de sociedade.
Tal tem sido o papel específico, inovador sob diversos aspectos, das diferentes Associações para o Contrato Mundial da Água (ACME) que se constituíram na Bélgica, na Itália, na França, em Quebec, na Suíça, no Marrocos, entre outros países. O movimento nascido com o Contrato Mundial da Água contribuiu para fazer tomar consciência dos estreitos elos entre o direito humano à água e o regime econômico de propriedade e de gestão da água e, notadamente, o elo entre a pobreza/empobrecimento e o não acesso à água. Diante do Manifesto da Água, a tese sobre o não acesso à água e a desigualdade no acesso eram “explicados” pela injustiça da natureza e pelo fator demográfico. Foi somente em 2006 que, pela primeira vez, uma agência das Nações Unidas reconheceu que a principal causa do não acesso e das desigualdades no acesso à água são a pobreza e a desigualdade no poder.
Creio, também, que o Contrato Mundial da Água participou ativamente da luta contra a privatização e a mercantilização, evitando, em certos países, que elas se afirmem, e, contribuindo, em outros, para que a pressão em favor da re-publicização da água produza resultados concretos. É de assinalar, enfim, seu papel desempenhado no desenvolvimento de “faculdades da água” na Itália, na França, no Brasil, na Argentina etc., e, mais recentemente, no nascimento de novas formas de diálogo inter-religioso e de grandes tradições morais em favor de uma mobilização conjunta pelo direito da água para todos e da água como bem comum e patrimônio da humanidade e de todas as espécies vivas.

É vergonhoso que 2,6 bilhões de seres humanos ainda não saibam o que é uma toalete ou um sanitário público. É inaceitável que, em 2010, haja 4900 crianças com menos de seis anos que morrem a cada dia no mundo por causa de doenças devidas especificamente à ausência de água e de serviços higiênicos.

Na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, Riccardo Petrella  italiano radicado na Bélgica, analisa o problema da água no mundo. Antes de refletir sobre a “crise da água”, ele enfatiza que “a rarefação da água, da qual atualmente todo o mundo não pára de falar, não é uma rarefação da quantidade de água em si”, isso porque a quantidade de água doce que temos hoje é a mesma de 200 milhões de anos atrás“. A rarefação é antes uma rarefação da qualidade de água para usos humanos em condições técnicas, econômicas e sócio/políticas ‘abordáveis’ e aceitáveis”, disse.

Além da questão da qualidade da água, Petrella refletiu sobre problemas como a privatização da água, saneamento básico e Copenhague. “O direito à água para todos se confirma não ser uma prioridade principal das classes dirigentes mundiais. Sua prioridade é saber quem vai ganhar, no decurso dos próximos 15 anos, a batalha para a conquista e a supremacia do mercado de um bilhão de novos carros ‘verdes’, bem como aquela das novas moradias ‘verdes’”, afirmou. (mais…)

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