O sol nem bem raiou e milhares de homens já estão espalhados pelos canaviais da cidade de Leme, um dos muitos polos produtores de cana-de-açúcar do estado de São Paulo. Com equipamentos de segurança rudimentares no corpo e foices afiadas nas mãos, os trabalhadores cortam enormes feixes de cana queimada a cada golpe. Eles têm pressa. Sabem que sua remuneração está diretamente ligada à produtividade. Os melhores cortadores chegam a empilhar até 8 toneladas de cana-de-açúcar num único dia de trabalho.
A jornada é dura e desgastante, mas o contracheque médio de 1.100 reais serve de estímulo para esse grupo de trabalhadores, formado em sua maioria por migrantes nordestinos. O dinheiro ganho em São Paulo garante a sobrevivência de famílias inteiras no Nordeste e faz prosperar a economia de pequenas cidades encravadas no sertão. Nos últimos tempos, porém, um clima de tensão tem pairado sobre os canaviais paulistas.
Desde 2007, quando um acordo firmado entre as usinas produtoras de etanol e o governo estadual antecipou de 2021 para 2014 o fim das queimadas nos canaviais, os homens têm perdido espaço para as máquinas. Nas últimas três safras, o número de vagas tem caído em média 15% ao ano. No mesmo período, a quantidade de colheitadeiras em atividade quadruplicou. Hoje existem cerca de 140 000 cortadores de cana em São Paulo, número que cairá para zero em quatro anos.
É ótimo que as queimadas sejam eliminadas e que um trabalho degradante desapareça. É assim que o país evolui, tanto social quanto ambientalmente. Mas o fato é que, sem qualificação, os trabalhadores hoje envolvidos no corte de cana dificilmente conseguirão manter o já modesto padrão de vida de sua família. O exemplo do paraibano Antônio Sabino, de 38 anos, reflete bem o drama. Nascido em Princesa Isabel, município distante 450 quilômetros de João Pessoa, Sabino trabalha há 12 anos no corte de cana em Leme. Todo ano embarca em um dos muitos ônibus que transportam a mão de obra de pequenas cidades nordestinas até as usinas paulistas. A passagem custa 300 reais, mas o retorno é garantido. Com um salário de 1 500 reais por mês – conquistado graças a um desempenho muito acima da média -, ele sustenta os pais, a mulher e dois filhos na Paraíba e consegue economizar até 400 reais por mês.
Terminada a safra, Sabino receberá a rescisão contratual e a participação nos lucros da usina, o que deverá lhe render o equivalente a quatro salários. Em novembro, voltará para casa com mais de 10 000 reais no bolso, uma fortuna para os padrões da região. “A economia de Princesa Isabel é movida pelo dinheiro da cana paulista”, diz o prefeito Thiago Pereira. “São mais de 2 000 pessoas daqui que partem para São Paulo todo ano. A mecanização das lavouras vai nos trazer grandes problemas.” Uma pesquisa elaborada pela engenheira Márcia Azanha, da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, mostra que quase 20% dos cortadores de Leme vêm de Princesa Isabel. Segundo Pereira, a expansão do setor sucroalcooleiro nos últimos anos surgiu como uma tábua de salvação para a economia local, já que na cidade não há indústrias e a grande maioria vive de emprego público e de programas sociais do governo federal.
Num pequeno sítio na zona rural de Princesa Isabel, as mulheres da família Sabino estão apreensivas. Neste ano, além de Antônio, outros cinco homens da família embarcaram rumo aos canaviais de São Paulo. A matriarca, Maria Cristina, de 77 anos, sabe que a atividade que hoje garante o sustento de todos está com os dias contados. Sem disfarçar a preocupação com o futuro, lembra-se dos tempos difíceis em que a agricultura local era a única fonte de renda e da ascensão social conquistada na última década graças à cana.
“Construímos tudo o que temos com o dinheiro que os meninos trazem no fim do ano”, diz Maria Cristina, apontando as três casas erguidas por seus filhos no sítio. Os comerciantes locais também lamentam. Nos últimos anos, o número cada vez menor de vagas disponíveis para o corte tem afetado as vendas, especialmente no final do ano – embora não haja estatísticas, pois o comércio é majoritariamente informal. “É só perguntar. Todos os lojistas da cidade já estão sentindo a queda nas vendas”, afirma Manoel Francisco Santos Neto, presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas de Princesa Isabel.
Por mais que afete a vida de milhares de brasileiros, a mecanização do setor sucroalcooleiro é um processo inevitável – e, olhado à distância de dramas pessoais, extremamente positivo. Assim como já ocorreu com a indústria automobilística a partir dos anos 70 e, mais recentemente, com as lavouras de soja brasileiras, o uso desse tipo de tecnologia é fundamental para aumentar a competitividade do produto final. No caso específico do etanol, é ainda mais importante, pois serve para atestar a sustentabilidade do combustível, uma vez que as queimadas lançam todos os anos milhões de toneladas de monóxido de carbono na atmosfera.
Desde 2007, quando o Protocolo Agroambiental Paulista foi assinado, cerca de 2,6 milhões de hectares de cana deixaram de ser queimados, evitando a emissão de 7,6 milhões de toneladas de monóxido de carbono – volume equivalente à emissão de uma frota de 23 000 ônibus movidos a óleo diesel durante um ano. Na atual safra, 54% do total colhido no estado já está mecanizado. Nas últimas quatro safras, o número de máquinas em operação nos canaviais passou de 645 para 2 031.
Estima-se que cada máquina que chega ao campo tire o emprego de até 100 homens. Por outro lado, gera 18 vagas para trabalhadores mais qualificados, como operadores, mecânicos, eletricistas e soldadores, que recebem um salário até três vezes maior. O grande problema é a falta de qualificação da maioria dos cortadores. “Mais de 90% dessas pessoas não sabem sequer ler e escrever”, afirma Sandoval Brito, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Leme. “Não somos contra a mecanização, mas é preciso mais tempo para treinar esse pessoal.”
Para a união da indústria da Cana- de-Açúcar de São Paulo (Unica), no entanto, o prazo é suficiente. Em 2009, a Unica lançou um programa de qualificação que pretende formar até 7 000 homens por ano. A ideia é transformar os cortadores em trabalhadores qualificados não só para as usinas mas também para a construção civil, setor que tem vivido um crescimento acima da média nos últimos anos e que carece de mão de obra. “Quando lançamos o protocolo, já sabíamos do problema do desemprego.
Os programas visam reduzir o impacto social, dando a possibilidade de crescimento profissional ao trabalhador”, afirma Marcos Jank, presidente da Unica. Os projetos devem dar ênfase aos moradores do estado de São Paulo, deixando de fora os cortadores nordestinos, cerca de 40% do total. O governo federal nem sequer possui estatísticas sobre a migração temporária no campo, o que evidencia a falta de políticas públicas para encarar o problema. No Nordeste, um cortador de cana não ganha mais que 2 reais por dia de trabalho. Para muitos, a saída será partir para outras culturas, como a de café ou a de mandioca, bem menos rentáveis que a de cana. Outros cortadores, no entanto, têm usado os últimos momentos em São Paulo para juntar o máximo de dinheiro possível e tentar montar um negócio próprio perto da família.
É o caso de Alex Laurindo, de apenas 19 anos, morador da cidade serrana de Triunfo, em Pernambuco. Franzino, seu biótipo em nada se parece com o de um cortador de cana padrão. Com um português impecável, conta que terminou o ensino médio há dois anos e foi obrigado a partir para São Paulo por falta de oportunidades. Este é seu segundo ano em Leme. Em 2009, juntou quase 10 000 reais, o suficiente para comprar uma moto – sonho de consumo de dez entre dez cortadores. Desta vez, a meta é mais ousada: ao lado do irmão Claudecir, que também trabalha nas lavouras de Leme, quer comprar a casa onde moram seus pais e o terreno ao lado do imóvel, avaliado em 1 500 reais, onde pretendem iniciar uma lavoura de milho e feijão.
O pai, Cleidinaldo Laurindo, de 44 anos, um ex-cortador que teve de abandonar a profissão devido a problemas nos joelhos causados pelas longas jornadas nos canaviais, afirma que essa é a única forma de viver dignamente em Triunfo. “Aqui não existe emprego”, diz. “Meus dois filhos mais velhos estão na cana por falta de emprego. Minha outra filha vai fazer 18 anos e também não tem trabalho. O fim do corte manual vai prejudicar muita gente por aqui.”
Segundo o prefeito de Triunfo, Luciano Bonfim, mais de 2 000 dos 17 000 habitantes deixam a cidade todos os anos atrás do dinheiro da cana. Quando voltam, fazem a alegria dos comerciantes locais. “O mês de dezembro é uma loucura aqui. Eles chegam de São Paulo e aquecem o comércio”, diz o prefeito. Josélia Fonseca, dona da única concessionária Honda da cidade, conta que vende em média 20 motos por mês durante o ano. A partir de novembro, no entanto, o número sobe para 120 unidades. “Se tivesse mais motos, venderia ainda mais”, afirma. “Agora, não sei como vai ficar.”
A esperança recai justamente sobre os ex-cortadores que já conseguiram montar um negócio e se estabelecer em definitivo na cidade. Leandro Bezerra, de 27 anos, é um exemplo de sucesso. Com o dinheiro que ganhou trabalhando na região de Novo Horizonte entre 2006 e 2009, montou um bar. Hoje, fatura em média 1 500 reais por mês e emprega uma funcionária.
O caso de Ginaldo Patriota, de 32 anos, é ainda mais intrigante. Nascido em Serra Talhada, cidade na divisa entre Pernambuco e Paraíba, partiu para o corte em São Paulo aos 18 anos. Não tinha sequer o dinheiro para comer nos três dias de viagem a Leme. Nove safras depois, havia juntado 130 000 reais, o suficiente para comprar, à vista, um ônibus de turismo que hoje usa para transportar os cortadores de cana do Nordeste para São Paulo. “Agora sou um empresário do setor de transportes”, diz ele, que cobra 240 reais a passagem e só neste ano já levou quase 1 000 trabalhadores para as usinas paulistas.
“Tenho contatos em São Paulo e conheço muita gente aqui em Pernambuco. Faço o recrutamento do pessoal e entrego direto nas usinas.” Em 2014, Patriota, o “headhunter do sertão”, terá de encontrar um novo itinerário para seu ônibus. Os milhares de nordestinos que hoje trabalham nos canaviais de São Paulo também.
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