Na Assembleia Legislativa de SP, parlamentares, agentes públicos, dirigentes sindicais e membros de entidades civis atacaram superficialidade e exigiram ações que possam resultar em melhorias efetivas às vítimas de exploração
Por Maurício Hashizume
São Paulo (SP) – Depois do pedido público de desculpas no Congresso Nacional, executivos que representam a marca Zara, do grupo espanhol Inditex, foram pressionados para que sejam tomadas providências mais efetivas diante da exploração de trabalho escravo de estrangeiros em oficinas de costura que fabricavam peças de roupa da grife internacional.
Em reunião da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) na semana passada, parlamentares, representantes do poder público, dirigentes sindicais e membros de entidades que atuam junto aos imigrantes que vivem na maior cidade do país atacaram medidas superficiais e cobraram mudanças que possam resultar em reparações e melhorias efetivas às vítimas da exploração criminosa.
Vice-presidente da comissâo e autor do convite aos representantes da empresa, Carlos Bezerra Jr. (PSDB) manifestou “estranheza enorme” diante das respostas evasivas de Enrique Huerta González, presidente da Zara Brasil que não atendeu ao primeiro convite feito pela mesma comissão legislativa, e de Jesus Echevarría, diretor global de comunicação da Inditex.
Os dois ocuparam a bancada para reiterar que “nada sabiam” não só a respeito da subcontratação que acabou revelando condições desumanas no processo de confecção de itens da marca, mas também dos possíveis riscos de envolvimento diante dos conhecidos casos de trabalho escravo contemporâneo, principalmente de imigrantes latino-americanos em situação de vulnerabilidade, em oficinas de costura precárias e informais.
Causou indignação aos parlamentares a discrepância entre o alegado “desconhecimento” quanto às condições oferecidas a quem confeccionava peças da grife e o rígido controle exercido pela Zara em outros aspectos, como na aferição da qualidade dos produtos e dos lucros obtidos com as vendas. “[A mera justificativa de que “nada sabiam”] Subestima a nossa inteligência [dos membros eleitos da Alesp] e a da sociedade”, criticou Carlos Bezerra Jr. No modelo adotado de fast fashion, toda a produção (padrões, tendências, quantidades etc.) é ditada pelas redes varejistas, que são onipresentes na cadeia. “É quase impossível o maior beneficiário não saber de nada”.
“Se os senhores não sabiam, alguém na empresa deveria saber”, pontuou o vice-presidente da comissão. Segundo o deputado, o interesse da Casa “não é prejudicar ninguém”, mas apenas exigir que sejam respeitadas “as regras do jogo” dentro da lógica capitalista, de competição de mercado, e que formas “inaceitáveis” de obtenção de lucro não possam se repetir.
Durante sessão realizada no dia 14 de setembro em Brasília (DF), mais precisamente na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados, os mesmos executivos ligados à Zara anunciaram um pacote de medidas em parceria com organizações empresariais, sindicais e sociais. A Repórter Brasil apurou que diversos desses “acordos” não tinham sequer sido firmados. A disponibilização de uma linha telefônica gratuita (0800-7709242) para receber denúncias de problemas na cadeia produtiva da marca foi a principal ação prática apresentada pela empresa.
Carlos Bezerra Jr. cobrou, entretanto, uma postura mais ativa por parte da companhia envolvida. “Disponibilizar um disque-denúncia é muito pouco”, avaliou. Para ele, a Zara Brasil deveria calcular os lucros auferidos por meio da usurpação das vantagens decorrentes do trabalho escravo e “devolver” todo o montante acumulado diretamente ao grupo de escravizados.
As causas da histórica rotina de explorações dos migrantes residem justamente no lucro e no modelo de produção e consumo, adicionou o padre Mario Geremia, do Centro Pastoral do Migrante (CPM), que também fez uma exposição sobre o tema na Alesp. Na busca por melhores condições de vida, uma quantidade enorme de pessoas excluídas acaba ficando exposta a violações de direitos básicos na origem, no trânsito e no destino final da migração. Enquanto diversos setores econômicos se valem economicamente dessa situação, as vítimas, colocou Mário, são criminalizadas. “E a culpa acaba sendo dos migrantes”.
O trabalho desenvolvido pela CPM em iniciativas como a Casa do Migrante, prosseguiu o padre, busca justamente reconhecer o migrante “não só como mão de obra para trabalhar”, mas como um ser humano dotado de direitos. Para que outras dimensões também sejam levadas em conta, ele defendeu a aprovação de uma nova lei de estrangeiros que sibstitua o estatuto em vigor, elaborado na ditadura militar. Cerca de 300 mil latino-americanos vivem na Região Metropolitana de São Paulo. Às autoridades, o religioso lembrou que mais de cinco milhões de brasileiros estão fora do país.
Pouco
Já Luís Alexandre de Faria, auditor fiscal da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP) que coordenou a fiscalização da cadeia produtiva da marca Zara, ressaltou que trabalhadores dispensados de outras oficinas ligadas à intermediária AHA têm procurado o órgão para pedir auxílio. De acordo com o relato deles, as encomendas da Zara foram retiradas após a divulgação do flagrante e famílias inteiras de estrangeiros que vivem na capital estão perdendo a sua única fonte de renda.
As duas oficinas fiscalizadas faziam parte de um rol de 33 subcontratadas da AHA, que “produziu” 46 mil peças somente nos meses de abril e maio deste ano. “O que será feito com relação aos demais trabalhadores das outras oficinas não inspecionadas? Eles deixaram de servir para a Zara ou continuarão servindo?”, interrogou Luís Alexandre, que estimou em até 300 as pessoas que faziam parte apenas do “guarda-chuva” da AHA. Além da fornecedora em questão, a grife possui outras 50 apenas no Brasil. Em 2010, foram costuradas em território brasileiro 5 milhões de peças com a marca espanhola.
A ausência de sinais de contratação direta também foi alvo de comentários do auditor. Segundo ele, não foi possível verificar alterações no quadro de funcionários com carteira assinada entre os fornecedores da Zara.
O disque-denúncia, advertiu Luís Alexandre, tende a não contar com a adesão das vítimas, que preferem permanecer na condição de clandestinidade com receio de gerar a perda do próprio posto de trabalho.
Entre as medidas, está prevista também a intensificação do monitoramento – com a participação das mesmas empresas de auditoria (Intertek e SGS) que já vinham atuando antes da divulgação dos flagrantes. “Ainda é pouco. A empresa precisa ser mais arrojada no campo da responsabilidade social empresarial e mais criativa quanto a respostas diante do ocorrido”, analisou o integrante do grupo especial de fiscalização de trabalho escravo urbano da SRTE/SP. “As ações não podem se limitar ao plano da propaganda”.
O atendimento às vítimas, sublinhou o auditor, ainda inexiste e deve ser priorizado. Alguns dos libertados trabalhavam nas oficinas flagradas há dois anos, completou. Sindicatos, pastorais religiosas e a Defensoria Pública da União de São Paulo (DPU/SP) se encarregaram de acolher as 15 pessoas resgatadas de condição de trabalho escravo.
Luís Alexandre também exibiu material jornalístico sobre um incêndio acidental que ceifou a vida de duas crianças bolivianas (uma de dois e outra de quatro anos de idade) que ficaram presas dentro de uma oficina de costura em chamas.
Em sua participação na reunião, a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB) realçou a necessidade de que as respostas dadas pela Zara por ocasião dos flagrantes possam se converter em benefícios diretos aos trabalhadores estrangeiros na forma do atendimento em creches e também com iniciativas na área de alimentação, saúde e educação.
Da parte do diretor-executivo da União Geral dos Trabalhadores (UGT) e vice-presidente do Sindicato dos Comerciários de São Paulo, José Gonzaga da Cruz exigiu que o conjunto de trabalhadores que fazem parte da cadeia produtiva da Zara no Brasil receba o mesmo tratamento dado aos empregados da Inditex, um dos maiores grupos do mundo, em seu país de origem (Espanha).
Replay
Na Alesp, os executivos da Zara repetiram o posicionamento apresentado na Câmara dos Deputados. Com formação na área financeira, o diretor-presidente Enrique disse que tem oito anos de empresa, já trabalhou pela empresa em Hong Kong e está há quatro anos no Brasil. Mesmo com todo esse tempo em território nacional, negou que tenha tido qualquer tipo de conhecimento a respeito de ocorrências de exploração de mão de obra escrava de imigrantes sul-americanos em oficinas de costura precárias e ilegais.
“Pagamos os preços de mercado”, insistiu Enrique. Perguntado sobre a fatia de lucro proveniente a produção brasileira e, em especial, do retorno obtido por meio das peças fabricadas nas oficinas que foram palco da escravidão, ele se limitou a responder que, em função do mercado de ações, cláusulas de confidencialidade restringem a divulgação desregulada de dados sobre resultados financeiros. Mas o próprio grupo difundiu, em comunicado que veio a público também na semana passada, que o lucro no primeiro semestre do ano fiscal 2011/2012 (fevereiro a julho) foi de € 717 milhões.
À comissão, o executivo da Zara Brasil reafirmou que as auditorias realizadas nos últimos anos no Brasil mostraram “resultados positivos” e que os flagrantes dizem respeito a um problema “velado”. “Lamentamos terrivelmente por não termos identificado [a prática de trabalho escravo]”, complementou. Sobre a qualidade do acompanhamento por meio de auditorias, reiterou a “confiança” no sistema, que conta com a participação direta das empresas Intertek e SGS – esta última também contratada pela rede varejista Pernambucanas, cuja cadeia também apresentou ilícitos semelhantes.
Para tentar sensibilizar os presentes à reunião, os representantes da companhia exibiram imagens de outras oficinas e até um vídeo em que o alemão Klaus Priegnitz, secretário geral da Federação Internacional de Trabalhadores do Setor Têxtil, de Vestuário e de Couro (ITGLWF), dá um depoimento de suporte à parceria firmada pela entidade com a Inditex.
Entretanto, a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias do Setor Têxtil, Vestuário, Couro e Calçados (Conaccovest), que representa a ITGLWF no Brasil, ressaltou que nenhum acordo foi efetivamente firmado e que ainda não há nada definido sobre como os sindicatos dos trabalhadores deverão acompanhar e rastrear as condições oferecidas na produção e no fluxo de suprimentos.
Em meio aos diversos questionamentos respondidos de modo protocolar, o diretor Jesus polemizou ao afirmar que “rechaçaria” a empresa que fosse flagrada explorando mão de obra escrava.
Mesmo sem ter atendido o pedido da Repórter Brasil por informações mais detalhadas acerca do relacionamento com suas fornecedoras e terceirizadas, o executivo deu algumas informações adicionais reveladoras sobre o ocorrido. A principal delas foi a de que a grife decidiu nos últimos anos aumentar as encomendas da fornecedora AHA, envolvida nas inspeções que encontraram trabalho escravo, por causa da “muito boa fama” da confecção quanto à qualidade da produção e ao tratamento dos funcionários.
A relação comercial entre a Zara Brasil e a AHA teve início em 2006. O sistema de auditorias de monitoramento vinculado ao código de conduta da Inditex foi criado em 2001 e revisado em 2007. O diretor global de comunicação do grupo têxtil estimou que mais de 80 inspeções de cunho inicial foram realizadas nos últimos cinco anos no Brasil. Nos relatórios anuais da empresa, é possível contabilizar pouco mais de 40 – somente nove delas no ano de 2010, período em que 5 milhões de peças da Zara foram confeccionadas no país.
Além disso, não há registros de que nenhuma auditoria de monitoramento tenha sido realizada até hoje no Brasil. Apenas em 2010, a Inditex promoveu 322 auditorias de monitoramento em todo o mundo. Conforme justifica Jesus, muitos processos são concluídos apenas com as averiguações primárias e não se desdobram em verificações complementares.
O diretor assegurou ainda que fez um convite para que três das 15 pessoas libertadas de oficinas que produziam peças da marca possam se integrar à equipe de logística da Zara Brasil. Correm, paralelamente, as negociações junto ao Ministério Público do Trabalho (MPT) e à DPU/SP em decorrência do relatório das fiscalização da SRTE/SP. As denúncias colhidas por telefone, repetiu Jesus, serão compartilhadas com o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Consultado pela reportagem, o Ethos informou que as ações em parceria com a Zara serão anunciadas quando forem definidas.
Responsabilização
“Nenhuma das perguntas [feitas durante a reunião] foi respondida [pelos representantes da empresa]”, analisou o presidente da comissão, Adriano Diogo (PT). Para ele, as respostas ensaiadas incorporadas pelos executivos do grupo espanhol podem ser entendidas como uma “desmoralização”.
Também membro da Alesp, Alencar Santana (PT) viu “descaso” por parte dos representantes da empresa e admitiu ter cogitado até em pedir o cancelamento da reunião. Citou ainda que falsos testemunhos podem gerar sanções graves nas Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instância com prerrogativa até de, em determinadas circunstâncias, dar voz de prisão.
A necessidade de instalação da CPI do Trabalho Escravo foi ratificada mais uma vez pelo autor da proposta, Carlos Bezerra Jr. (PSDB). Ocorre que o regimento da Casa prevê um limite de funcionamento concomitante de cinco CPIs. Frente às preocupações externadas pelo líder do governo Samuel Moreira (PSDB) quanto à quebra de normas organizadoras e à abertura de precedente, Carlos Bezerra Jr. também apresentou uma proposta de mudança no regimento para viabilizar a instalação da CPI diante da urgência e relevância do assunto.
Na definição do deputado Major Olímpio (PDT), a postura do “porta-voz” do governo Geraldo Alckmin (PSDB) consiste em “manifestação tacanha” que vai de encontro à concordância dos demais líderes partidários.
Enquanto a proposta da CPI permanece em compasso de espera, membros da comissão devem apresentar proposta legislativa que visa punir empresas que tenham as suas cadeias ligadas à escravidão com a perda da licença de funcionamento. Proposição com finalidade similar – cassação de alvará municipal daqueles que se “sujam” por fazer parte de um ciclo produtivo em que o trabalho escravo foi detectado – já foi apresentada na Câmara dos Vereadores de Sâo Paulo (SP) pelo vereador Ítalo Cardoso (PT).
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